Castigo até a terceira e quarta geração? – EB

pecado-300x225Em síntese: Os textos do Antigo Testamento que parecem afirmar a punição do pecado dos pais sobre os seus descendentes, representam a fase mais antiga da mentalidade de Israel, mentalidade à qual a pedagogia divina se quis adaptar a fim de educar o povo rude. Com o tempo, tal mentalidade foi corrigida em favor da afirmação da responsabilidade pessoal: o ímpio ¾ e tão somente ele ¾ carrega as consequências das suas faltas; e, se ele se converte, é recebido misericordiosamente pelo Senhor Deus.

Há quem afirme que Deus castiga o pecado de alguém na sua descendência, ou seja, até a terceira e a quarta geração. Para tanto, baseiam-se em Ex 20,5s:

“Não te prostrarás diante desses deuses não os servirás, porque eu, o Senhor teu deus, sou um deus ciumento que puno a iniquidade dos pais sobre seus filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos”.

Ver também Dt 5,9s; Nm 14,18s.

Em consequência, há pessoas que julgam estar sofrendo “maldições” por causa de faltas cometidas por seus antepassados. Sem dúvida, tal modo de pensar gera insegurança e aflição, pois quem sofre pode supor crimes fantasiosos cometidos pelos pais, avós e bisavós…, crimes que lhe acarretarão tormentos imprevisíveis.

Diante dessa interpretação de textos bíblicos, procuremos examinar exatamente o que diz a Escritura a respeito do assunto.

A Mentalidade do Clã na Antiguidade

Os antigos povos extra-bíblicos e o próprio povo de Israel (nos inícios de sua história) não tinham conceito claro de pessoa. Por isso também não valorizavam os indivíduos de um grupo como indivíduos. Por conseguinte, o sujeito portador de responsabilidade moral não era a pessoa singular, mas o grupo ou o clã a que pretendia. O bem e o mal que cada indivíduo praticava, acarretava a respectiva sanção para todo o povo. Esta mentalidade se exprimiu, por exemplo, no caso de Abraão, que intercedeu por Sodoma: o Patriarca não pediu a Deus que poupasse os justos da cidade, mas, sim, que poupasse a cidade em vista dos justos nela existentes; cf. Gn 18,22s

Exprimia-se também essa mentalidade nos citados textos de Ex 20,5s; Dt 5,9s; Nm 14,18s. Parecia normal que uma cidade ou uma tribo fosse castigada como um todo monolítico, incluindo justos e ímpios, como também parecia natural que a sorte dos filhos e de descendentes posteriores correspondesse à conduta dos pais.

A Responsabilidade pessoal

Com o tempo, o imperfeito modo de pensar foi sendo corrigido por obra dos autores sagrados. Na verdade, podia favorecer a hipocrisia: as pessoas antigas por algum mal atribuiam-no ao pecado dos antepassados, e se isentavam de fazer penitência, julgando-se vítimas de culpas alheias e não rés de culpas próprias. Foi o que se deu por ocasião do exílio de Israel na Babilônia (587-538 a.C.): os judeus deportados alegavam estar carregando as duras consequências dos pecados das gerações anteriores, em vez de reconhecerem devidamente as suas infidelidades. Ora contra tal atitude insurgiu-se, em nome do Senhor, o profeta Ezequiel:

“A palavra do Senhor me foi dirigida nestes termos: Que vem a ser este provérbio que vós usais na terra de Israel: ‘Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados’?

Por minha vida, oráculo do Senhor, não repetireis jamais este provérbio em Israel… Aquele que pescar, esse morrerá… Mas, se o ímpio se converter de todos os pecados que cometeu e passar a guardar os meus estatutos e a praticar o direito e a justiça, certamente viverá; ele não morrerá. Nenhum dos crimes que praticou, será lembrado. Viverá como resultado da justiça que passou a praticar” (Ez 18,1-4.21s).

O profeta Jeremias, que acompanhou os judeus por ocasião da guerra de Nabucodonosor contra Jerusalém, dizia a mesma coisa:

“Nesses dias já não se dirá: ‘Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos ficaram embotados’. Mas cada um morrerá por sua própria falta. Todo homem que tenha comido uvas verdes, terá seus dentes embotados”.

Estes textos valorizam devidamente a pessoa e a responsabilidade individual, mostrando que cada um colhe o que semeou. Pode alguém ser descendente de grandes pecadores; isto não afeta o seu relacionamento com deus; receberá a sorte correlativa à sua conduta pessoal.

A pedagogia divina, tão característica do Antigo Testamento, quis adaptar-se ao modo de pensar e falar dos educadores antigos, chamando a atenção para a responsabilidade coletiva ou para a solidariedade que existe naturalmente entre os membros de um clã. Este linguajar podia calar fundo na mente dos israelitas mais antigos; todavia foi sendo substituído por um tipo de discurso mais elevado e condizente com a mentalidade mais aprimorada do povo de Israel “adulto”. É assim que a “Bíblia de Jerusalém” formula a nova concepção:

“A salvação de um homem ou a sua perda não depende dos seus antepassados, nem dos seus próximos nem se quer do seu próprio passado. Só as disposições atuais do coração entram em linha de conta diante de lahweh” (nota d a Ez 14,12).

Esta doutrina persiste até hoje no povo de Deus cristão. Serve de referencial para a orientação de vida de cada membro da comunidade cristã.

Verdade é que, após o exílio, aflorou claramente em Israel o princípio da expiação pelos pecados alheios. O inocente poderia sofrer para reparar as faltas do próximo; isto, porém, não seria uma lei geral, mas se verificaria tão somente em casos isolados ou em figuras de escol; tal foi, sem dúvida, o caso do Servidor de Javé (o Messias), que, sem ter pecado, tomou sobre si os pecados dos homens e voluntariamente sofreu a sanção a eles devida, a fim de obter para sua gente a graça e a misericórdia de Deus; cf. Is 52,13-53,12 (o quarto cântico do Servidor de Javé).

E o pecado original?

O conceito de pecado original, por vezes desfigurado como é, parece alimentar a impressão de que as gerações posteriores podem sofrer maldições por causa do mau procedimento de seus antepassados. Daí a necessidade de se esclarecer tal conceito.

1) Antes do mais, distingam-se pecado original originante e pecado original originado. Somente o primeiro pode ser tido como pecado propriamente dito; é a falta cometida pelos primeiros pais em conhecimento de causa e vontade deliberada. Não há pecado propriamente dito sem a participação consciente e voluntária do sujeito.

O pecado original originado é o que se atribui aos descendentes dos primeiros pais. Está claro que não é pecado propriamente dito, porque a criança que vem ao mundo não é capaz de algum ato consciente e livre. Só impropriamente pode-se lhe atribuir o pecado.

2) Pergunta-se então: em que consiste o pecado original originado, se não é pecado propriamente dito?

¾ Não se trata de maldição de Deus, que quer castigar os filhos por causa dos pais.

O pecado original originado consiste na ausência da graça santificante e dos dons especiais que os primeiros pais receberam de Deus e deviam ter guardado, a fim de os transmitir à sua descendência. Essa ausência é ocasião de que as tendências naturais da pessoa venham à tona desregradamente, pois lhe faltam os dons que lhe proporcionariam harmonia e coerência. Tal carência não se deve a um desígnio punitivo de Deus, mas ao simples fato da solidariedade natural que existe entre os homens. Com efeito; toda criança nasce dentro de uma família e um povo, com os quais é solidária, herdando as prendas e as deficiências naturais que os genitores lhe podem transmitir; assim quem nasce nos Estados Unidos da América, nasce em condições diferentes de quem nasce na Somália; há aí dois tipos de solidariedade. Ora a solidariedade mais profunda que alguém possa ter, é a que se refere aos primeiros pais; por conseguinte, se estes perderam os dons originais, os seus descendentes só podem nascer privados de tais dons;1 essa privação explica a desordem de apetites naturais existente em todo homem e vem a ser uma deformidade em comparação com o modelo original. Não é necessário que Deus decrete alguma maldição sobre o gênero humano descendente dos primeiros pecadores.

Para ilustrar esta afirmação, pode-se ainda mencionar o fato de que uma criança descendente de pais alcoólatras carrega, sem culpa própria (mas por efeito de solidariedade natural), as consequências do alcoolismo. Paralelamente, os filhos de um pai que numa noite gaste  todos os seus bens em cassino, amanhecem pobres e sujeitos a sanções, embora não tenham cometido falta alguma; há como evitar a natural solidariedade ou comunhão que une os homens entre si tanto no plano vertical como no horizontal.

1 Tais dons eram:

¾ a graça santificante ou a filiação divina sobrenatural;

¾ os dons preternaturais: a capacidade de não morrer violentamente, a impassibilidade, a integridade (ou isenção de cobiça desregrada), a ciência moral infusa. Ver a respeito o Curso de Sagrada Escritura por Correspondência, 4a. Etapa, Caixa postal 1362, 20001 Rio de Janeiro (RJ).

Conclusão

Pode-se crer que estas considerações sejam aptas os mal-entendidos ocorrentes em certos grupos católicos; valem-se de Ex 20,5s e Dt 5,9s, esquecendo que tais textos representam uma fase ultrapassada do pensamento de Israel; por isto não podem ser tomadas como paradigmas, mas devem ceder às afirmações de Ez 18,2; Jr 31,29, que realçam a responsabilidade individual.

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 376, Ano 1993, p. 421/425

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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