47. Alguns
teólogos recentes são de parecer que o fogo que simultaneamente queima e salva
é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador. O encontro com Ele é o acto decisivo do
Juízo. Ante o seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que,
queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós
mesmos. As coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca,
pura fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor deste encontro, em que o
impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação. O seu
olhar, o toque do seu coração cura-nos através de uma transformação certamente
dolorosa « como pelo fogo ». Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do
seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos no final sermos totalmente nós
mesmos e, por isso mesmo totalmente de Deus. Deste modo, torna-se evidente
também a compenetração entre justiça e graça: o nosso modo de viver não é
irrelevante, mas a nossa sujeira não nos mancha para sempre, se ao menos
continuámos inclinados para Cristo, para a verdade e para o amor. No fim de
contas, esta sujeira já foi queimada na Paixão de Cristo. No momento do Juízo,
experimentamos e acolhemos este prevalecer do seu amor sobre todo o mal no
mundo e em nós. A
dor do amor torna-se a nossa salvação e a nossa alegria. É claro que a «
duração » deste queimar que transforma não a podemos calcular com as medidas de
cronometragem deste mundo. O « momento » transformador deste encontro escapa à
cronometragem terrena: é tempo do coração, tempo da « passagem » à comunhão com
Deus no Corpo de Cristo.[39] O Juízo de Deus é esperança quer porque é justiça,
quer porque é graça. Se fosse somente graça que torna irrelevante tudo o que é
terreno, Deus ficar-nos-ia devedor da resposta à pergunta acerca da justiça –
pergunta que se nos apresenta decisiva diante da história e do mesmo Deus. E,
se fosse pura justiça, o Juízo em definitivo poderia ser para todos nós só
motivo de temor. A encarnação de Deus em Cristo uniu de tal modo um à outra, o
juízo à graça, que a justiça ficou estabelecida com firmeza: todos nós cuidamos
da nossa salvação « com temor e tremor » (Fil 2,12). Apesar de tudo, a graça
permite-nos a todos nós esperar e caminhar cheios de confiança ao encontro do
Juiz que conhecemos como nosso « advogado », parakletos (cf. 1 Jo 2,1).
48. Há ainda um motivo que deve ser mencionado aqui, porque é importante para a
prática da esperança cristã. No antigo judaísmo, existe também a ideia de que
se possa ajudar, através da oração, os defuntos no seu estado intermédio (cf.
por exemplo, 2Mac 12,38-45: obra do I século a.C.). A prática correspondente
foi adoptada pelos cristãos com grande naturalidade e é comum à Igreja oriental
e ocidental. O Oriente não conhece um sofrimento purificador e expiatório das
almas no « além », mas conhece diversos graus de bem-aventurança ou também de
sofrimento na condição intermédia. Às almas dos defuntos, porém, pode ser dado
« alívio e refrigério » mediante a Eucaristia, a oração e a esmola. O facto de
que o amor possa chegar até ao além, que seja possível um mútuo dar e receber,
permanecendo ligados uns aos outros por vínculos de afecto para além das
fronteiras da morte, constituiu uma convicção fundamental do cristianismo
através de todos os séculos e ainda hoje permanece uma experiência
reconfortante. Quem não sentiria a necessidade de fazer chegar aos seus entes
queridos, que já partiram para o além, um sinal de bondade, de gratidão ou
mesmo de pedido de perdão? Aqui levantar-se-ia uma nova questão: se o «
purgatório » consiste simplesmente em ser purificados pelo fogo no encontro com
o Senhor, Juiz e Salvador, como pode então intervir uma terceira pessoa ainda
que particularmente ligada à outra? Ao fazermos esta pergunta, deveremos
dar-nos conta de que nenhum homem é uma mônada fechada em si mesma. As nossas
vidas estão em profunda comunhão entre si; através de numerosas interacções, estão
concatenadas uma com a outra. Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se
salva sozinho. Continuamente entra na minha existência a vida dos outros:
naquilo que penso, digo, faço e realizo. E, vice-versa, a minha vida entra na
dos outros: tanto para o mal como para o bem. Deste modo, a minha intercessão
pelo outro não é de forma alguma uma coisa que lhe é estranha, uma coisa
exterior, nem mesmo após a morte. Na trama do ser, o meu agradecimento a ele, a
minha oração por ele pode significar uma pequena etapa da sua purificação. E,
para isso, não é preciso converter o tempo terreno no tempo de Deus: na
comunhão das almas fica superado o simples tempo terreno. Nunca é tarde demais
para tocar o coração do outro, nem é jamais inútil. Assim se esclarece melhor
um elemento importante do conceito cristão de esperança. A nossa esperança é
sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é
verdadeiramente esperança também para mim.[40] Como cristãos, não basta
perguntarmo-nos: como posso salvar-me a mim mesmo? Deveremos antes
perguntar-nos: o que posso fazer a fim de que os outros sejam salvos e nasça
também para eles a estrela da esperança? Então terei feito também o máximo pela
minha salvação pessoal.
Maria, estrela da esperança 49. Com um hino do século VIII/IX, portanto com
mais de mil anos, a Igreja saúda Maria, a Mãe de Deus, como « estrela do mar »:
Ave maris stella. A vida humana é um caminho. Rumo a qual meta? Como achamos o
itinerário a seguir? A vida é como uma viagem no mar da história, com
frequência enevoada e tempestuosa, uma viagem na qual perscrutamos os astros
que nos indicam a rota. As verdadeiras estrelas da nossa vida são as pessoas
que souberam viver com rectidão. Elas são luzes de esperança. Certamente, Jesus
Cristo é a luz por antonomásia, o sol erguido sobre todas as trevas da
história. Mas, para chegar até Ele precisamos também de luzes vizinhas, de
pessoas que dão luz recebida da luz d’Ele e oferecem, assim, orientação para a
nossa travessia. E quem mais do que Maria poderia ser para nós estrela de
esperança? Ela que, pelo seu « sim », abriu ao próprio Deus a porta do nosso
mundo; Ela que Se tornou a Arca da Aliança viva, onde Deus Se fez carne,
tornou-Se um de nós e estabeleceu a sua tenda no meio de nós (cf. Jo 1,14).
50. Por isso, a Ela nos dirigimos: Santa Maria, Vós pertencíeis àquelas almas
humildes e grandes de Israel que, como Simeão, esperavam « a consolação de
Israel » (Lc 2,25) e, como Ana, aguardavam a « libertação de Jerusalém » (Lc
2,38). Vós vivíeis em íntimo contacto com as Sagradas Escrituras de Israel, que
falavam da esperança, da promessa feita a Abraão e à sua descendência (cf. Lc
1,55). Assim, compreendemos o santo temor que Vos invadiu, quando o anjo do
Senhor entrou nos vossos aposentos e Vos disse que daríeis à luz Àquele que era
a esperança de Israel e o esperado do mundo. Por meio de Vós, através do vosso
« sim », a esperança dos milénios havia de se tornar realidade, entrar neste
mundo e na sua história. Vós Vos inclinastes diante da grandeza desta missão e
dissestes « sim ». « Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua
palavra » (Lc 1,38). Quando, cheia de santa alegria, atravessastes
apressadamente os montes da Judeia para encontrar a vossa parente Isabel,
tornastes-Vos a imagem da futura Igreja, que no seu seio, leva a esperança do
mundo através dos montes da história. Mas, a par da alegria que difundistes
pelos séculos, com as palavras e com o cântico do vosso Magnificat, conhecíeis
também as obscuras afirmações dos profetas sobre o sofrimento do servo de Deus
neste mundo. Sobre o nascimento no presépio de Belém brilhou o esplendor dos
anjos que traziam a boa nova aos pastores, mas, ao mesmo tempo, a pobreza de
Deus neste mundo era demasiado palpável. O velho Simeão falou-Vos da espada que
atravessaria o vosso coração (cf. Lc 2,35), do sinal de contradição que vosso
Filho haveria de ser neste mundo. Depois, quando iniciou a actividade pública
de Jesus, tivestes de Vos pôr de lado, para que pudesse crescer a nova família,
para cuja constituição Ele viera e que deveria desenvolver-se com a
contribuição daqueles que tivessem ouvido e observado a sua palavra (cf. Lc
11,27s). Apesar de toda a grandeza e alegria do primeiro início da actividade
de Jesus, Vós, já na Sinagoga de Nazaré, tivestes de experimentar a verdade da
palavra sobre o « sinal de contradição » (cf. Lc 4,28s). Assim, vistes o
crescente poder da hostilidade e da rejeição que se ia progressivamente
afirmando à volta de Jesus até à hora da cruz, quando tivestes de ver o
Salvador do mundo, o herdeiro de David, o Filho de Deus morrer como um falido,
exposto ao escárnio, entre os malfeitores. Acolhestes então a palavra: «
Mulher, eis aí o teu filho » (Jo 19,26). Da cruz, recebestes uma nova missão. A
partir da cruz ficastes mãe de uma maneira nova: mãe de todos aqueles que
querem acreditar no vosso Filho Jesus e segui-Lo. A espada da dor trespassou o
vosso coração. Tinha morrido a esperança? Ficou o mundo definitivamente sem
luz, a vida sem objectivo? Naquela hora, provavelmente, no vosso íntimo tereis
ouvido novamente a palavra com que o anjo tinha respondido ao vosso temor no
instante da anunciação: « Não temas, Maria! » (Lc 1,30). Quantas vezes o
Senhor, o vosso Filho, dissera a mesma coisa aos seus discípulos: Não temais!
Na noite do Gólgota, Vós ouvistes outra vez esta palavra. Aos seus discípulos,
antes da hora da traição, Ele tinha dito: « Tende confiança! Eu venci o mundo »
(Jo 16,33). « Não se turve o vosso coração, nem se atemorize » (Jo 14,27). «
Não temas, Maria! » Na hora de Nazaré, o anjo também Vos tinha dito: « O seu
reinado não terá fim » (Lc 1,33). Teria talvez terminado antes de começar? Não;
junto da cruz, na base da palavra mesma de Jesus, Vós tornastes-Vos mãe dos
crentes. Nesta fé que, inclusive na escuridão do Sábado Santo, era certeza da
esperança, caminhastes para a manhã de Páscoa. A alegria da ressurreição tocou
o vosso coração e uniu-Vos de um novo modo aos discípulos, destinados a
tornar-se família de Jesus mediante a fé. Assim Vós estivestes no meio da
comunidade dos crentes, que, nos dias após a Ascensão, rezavam unanimemente
pedindo o dom do Espírito Santo (cf. Act 1,14) e o receberam no dia de
Pentecostes. O « reino » de Jesus era diferente daquele que os homens tinham
podido imaginar. Este « reino » iniciava naquela hora e nunca mais teria fim.
Assim, Vós permaneceis no meio dos discípulos como a sua Mãe, como Mãe da
esperança. Santa Maria, Mãe de Deus, Mãe nossa, ensinai-nos a crer, esperar e
amar convosco. Indicai-nos o caminho para o seu reino! Estrela do mar, brilhai
sobre nós e guiai-nos no nosso caminho!
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 30 de Novembro, festa de Santo André
Apóstolo, do ano 2007, terceiro de Pontificado.
BENEDICTUS PP. XVI
[1] Corpus Inscriptionum Latinarum, Vol. VI, n. 26003.
[2] Cf. Poemas dogmáticos, V, 53-54: PG 37, 428-429.
[3] Cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1817-1821.
[4] Summa Theologiae, II-IIae, q. 4,
a. 1.
[5] H. Köster em: ThWNT, VIII (1969) 585.
[6] De excessu fratris sui Satyri, II, 47: CSEL 73, 274.
[7] Ibid., II, 46: CSEL 73, 273.
[8] Cf. Ep. 130 Ad Probam 14, 25 – 15,28: CSEL 44, 68-73.
[9] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1025.
[10] Jean Giono, Les vraies richesses (1936) Préface, Paris 1992, pp. 18-20,
em: Henry De Lubac, Catholicisme. Aspects sociaux du dogme, Paris 1983, p. VII.
[11] Ep. 130 Ad Probam 13, 24: CSEL 44, 67.
[12] Sententiae III, 118: CCL 6/2,215.
[13] Cf. ibid. III, 71: CCL 6/2, 107-108.
[14] Novum Organum I, 117.
[15] Cf. ibid., I, 129.
[16] Cf. New Atlantis.
[17] Cit. em Werke IV,
coordenado por W. Weischedel (1956), 777.
[18] E. KANT, Das Ende aller Dinge, cit. em Werke VI, coordenado por W. Weischedel (1964),
190.
[19] Capítulos sobre a caridade, Centúria 1, cap. 1: PG 90, 965.
[20] Cf. ibid.: PG 90, 962-966.
[21] Conf. X. 43, 70: CSEL 33,279.
[22] Sermo 340, 3: PL 38, 1484; cf. F. Van der Meer, Augustinus der Seelsorger,
(1951), 318.
[23] Sermo 339, 4: PL 38, 1481.
[24] Conf. X, 43,69: CSEL 33, 279.
[25] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2657.
[26] Cf. In 1 Joannis 4,6: PL 35, 2008s.
[27] Testemunhas da esperança, Città Nuova 2000, 156s.
[28] Breviário Romano, Ofício das Leituras, 24 de Novembro.
[29] Sermones in Cant., Serm. 26,5: PL 183, 906.
[30] Negative Dialektik (1966), Terceira parte, III, 11, em: Gesammelte
Schriften Vol. VI, Frankfurt/Main 1973, 395.
[31] Ibid., Segunda parte, 207.
[32] DS 806.
[33] Cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 988-1004.
[34] Cf. ibid., n. 1040.
[35] Cf.Tractatus super Psalmos, Sal 127, 1-3: CSEL 22, 628-630.
[36] Gorgia, 525a-526c.
[37] Cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1033-1037.
[38] Cf. ibid., nn. 1023-1029.
[39] Acerca do Purgatório, veja-se o Catecismo da Igreja Católica, nn.
1030-1032.
[40] Cf. Catecsimo da Igreja Católica, n. 1032.
Fonte: © 2007 Libreria Editrice Vaticana