As restrições da Santa Sé – EB

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 406 – Ano 1996 – p. 130

Em síntese: Nas páginas subsequentes são publicados os trechos de um discurso proferido pela Sra. Profa. Mary Ann Glendon, no final do Congresso de Pequim (15/09/95) a fim de expor as reservas da Santa Sé aos documentos do referido Congresso. Têm em vista os conceitos de gênero humano, relacionamento entre homem e mulher…

No decorrer do Congresso de Pequim, mencionado nas páginas anteriores deste fascículo, esboçou-se, com nitidez crescente, a distinção entre “Estados  religiosos”, aqueles tachados de tradicionalistas, fundamentalistas, adversários da evolução do estatuto das mulheres, enquanto os liberais eram tidos como vanguardeiros da emancipação da mulher e da modernidade de amanhã. Houve quem quisesse fundir o Estado do Vaticano e os países árabes numa “Santa Aliança” ou numa “Não-santa Aliança”, culpada de um complô contra as mulheres. Na verdade, tal pretensa fusão não existiu nem pode existir, pois a Igreja e os muçulmanos diferem entre si num ponto fundamental, que é a poligamia, aceita pelo islã.

Houve também, da parte de certas Organizações não Governamentais, um movimento que contestava o direito, da Santa Sé, de se fazer presente em Pequim como Estado-membro, sob a alegação de que a Santa Sé – como também a Suíça – na ONU não é um Estado-membro, mas um Estado observador. – Não há dúvida quanto a este último ponto, mas o fato é que, por ocasião das Conferências extraordinárias convocadas pela ONU, a Santa Sé tem sido convidada a participar, podendo então comparecer como Estado-membro ou como um Estado observador ou não comparecer. Assim está firmado um direito da Santa Sé pela prática internacional. Na verdade, como se sabe, a Santa Sé participou muito ativamente dos preparativos como também do decurso da Conferência de Pequim. Era chefe da delegação vaticana a Sra. Mary Ann Glendon, Professora de Direito da Universidade de Harvard (U.S.A.), católica fiel,¹ acompanhada por doze mulheres católicas de diversos continentes e culturas, assim como por dois sacerdotes – Mons. Renato Martino e Mons. Diarmuid Martin -, chefes adjuntos da delegação.

No dia 15 de setembro de 1995, por ocasião do encerramento da Conferência de Pequim, a Profa. Mary Ann Glendon pronunciou um discurso, que exprimiu nitidamente a posição da Santa Sé frente aos documentos promulgados pelo Congresso de pequim.¹

I. O Texto

Após considerações de ordem geral, lê-se quanto segue:

“A minha Delegação seria negligente no seu dever para com as mulheres, se não indicasse também diversas áreas críticas, onde ela discorda profundamente do teor do texto.

A minha Delegação lastima muito observar no texto um individualismo exagerado, onde são subestimadas várias afirmações fundamentalmente importantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos como, por exemplo, a obrigação de oferecer especial cuidado e assistência à maternidade. Assim, este caráter seletivo assinala um ulterior passo no caminho rumo à colonização da vasta e rica linguagem dos direitos universais, por parte de um empobrecimento e livre dialeto dos direitos. Este encontro internacional certamente poderia ter oferecido mais às mulheres e às jovens do que deixá-las sozinhas com os seus direitos!

Decerto devemos fazer mais pelas crianças de sexo feminino, nas nações pobres, do que prometer oferecer acesso à educação, à assistência à saúde e aos servidores sociais, enquanto subtilmente procuramos evitar qualquer compromisso concreto no sentido de oferecer, com esta finalidade, novos e ulteriores recursos.

Decerto podemos fazer mais do que simplesmente debater acerca das necessidades sanitárias das jovens e das mulheres, dando desproporcional importância à saúde sexual e reprodutiva. Além disso, uma linguagem ambígua acerca do controle impróprio da sexualidade e da fertilidade poderia ser interpretada como promotora do reconhecimento social do aborto e da homossexualidade.

Um documento que respeita a dignidade da mulher, deveria abordar a saúde da mulher toda. Um documento que respeite a inteligência da mulher, deveria dedicar pelo menos igual atenção ao alfabetismo e à fertilidade.

Senhora Presidente,

Em última análise, porque a minha Delegação espera que destes Documentos, que num certo sentido estão em desacordo entre si, sobressaia no fim o bem das mulheres, ela deseja associar-se ao consenso apenas nos mencionados aspectos dos Documentos que a Santa Sé considera positivos e ao serviço do concreto bem-estar da mulher.

Infelizmente, a participação da Santa Sé no consenso só pode ser parcial, devido aos inumeráveis pontos presentes nos Documentos, que são incompatíveis com o que a Santa Sé e outros Países consideram favorável para o verdadeiro progresso das mulheres. Estes pontos são indicados nas reservas que a minha Delegação anexou a esta declaração.

A minha Delegação está convencida de que as próprias mulheres hão-de superar os limites destes Documentos, haurindo deles o que há de melhor. Como João Paulo II justamente diz, “o caminho que se nos apresenta será longo e difícil; contudo, devemos ter a coragem de começar a percorrê-lo e de chegar ao seu termo”.

Eu desejaria solicitar que o texto desta intervenção, as reservas formalmente indicadas embaixo e a declaração da interpretação do termo “gênero” sejam incluídos no relatório da Conferência.

Reservas e declarações interpretativas da Santa Sé

A Santa Sé, em conformidade com a sua natureza e missão particulares, ao associar-se parcialmente ao consenso sobre os Documentos da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, deseja expressar a sua posição no que se refere aos mencionados Documentos, e apresentar reservas concernentes a alguns conceitos neles utilizados.

1. A Santa Sé quer reafirmar a dignidade e o valor das mulheres e os iguais direitos dos homens e das mulheres, e lamenta muito por a Plataforma de Ação ter deixado de reconfirmar este conceito.

2. A Santa Sé, em conformidade com a Declaração universal dos Direitos Humanos, salienta que a família é a unidade básica da sociedade e que está fundamentada sobre o matrimônio, como união igualitária entre marido e mulher, aos quais foi confiada a transmissão da vida. Ela lastima muito o fato de a “Plataforma de Ação” não ter feito referências a esta fundamental unidade social, a não ser com uma superficial linguagem qualificativa (cf. Objetivo estratégico L.9).

3. A Santa Sé só pode interpretar os termos: “o direito que as mulheres têm de controlar a própria sexualidade, o direito que as mulheres têm de controlar (…) a própria fertilidade”, ou “os casais e os indivíduos”, como relacionados ao uso responsável da sexualidade dentro do matrimônio. Ao mesmo tempo, a Santa Sé condena firmemente todas as formas de violência e exploração das mulheres e das jovens.

4. A Santa Sé volta a afirmar as reservas expressas na conclusão da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, de 5 a 13 de Setembro de 1994, as quais estão incluídas no Relatório daquela mesma Conferência, referentes à interpretação dada aos termos “saúde reprodutiva”, saúde sexual” e “direitos reprodutivos”. Em particular, a Santa Sé reitera que não considera o aborto, ou os serviços que promovem o aborto, uma dimensão da saúde  reprodutiva ou dos serviços que têm em vista a saúde reprodutiva. A Santa Sé não dá o próprio consenso a qualquer forma de legislação que reconhece o aborto.

5. A propósito dos termos “planificação familiar” ou “uma mais vasta gama de serviços de planificação familiar”, bem como outros termos concernentes aos serviços de planificação familiar ou à regulação da fertilidade, as intervenções da Santa Sé durante esta Conferência não devem absolutamente ser interpretadas como uma mudança da sua conhecidíssima posição no que se refere aos métodos de planificação familiar, que a Igreja Católica considera moralmente inaceitáveis, ou com relação aos serviços de planificação familiar ou os direitos humanos das pessoas interessadas. A Santa Sé não aceita de modo algum a contracepção ou o uso de preservativos, nem como medida de planificação familiar, nem como parte de programas de prevenção contra o HIV/SIDA.

6. A Santa Sé reitera que nenhuma parte da Plataforma de Ação, ou das referências a outros documentos nela citados, deve ser interpretada como uma exigência imposta aos agentes no campo da saúde ou às estruturas sanitárias, para que trabalhem, cooperem, se refiram ou predisponham serviços contrários à sua crença religiosa ou às suas convicções morais ou éticas.

7. A Santa Sé interpreta todas as referências ao termo “gravidez forçada” como um instrumento específico do conflito armado, assim como este termo aparece na Declaração de Viena e no Programa de Ação (II § 38).

8. A Santa Sé interpreta o termo “gênero” como é descrito na declaração que foi anexada a estas reservas.

9. A Santa Sé não se associa ao consenso sobre todo o capítulo IV, seção “C”, concernente à saúde; ela deseja estabelecer uma reserva no que se refere a toda esta seção, e pediria que a reserva geral fosse anotada no capítulo. Esta seção dedica uma atenção completamente desproporcional à saúde sexual e reprodutiva, em comparação com as outras necessidades sanitárias das mulheres e, inclusivamente, os modos de abordar a mortalidade materna e a enfermidade. Além disso, a Santa Sé não pode aceitar uma terminologia ambígua a propósito da sexualidade e da fertilidade, particularmente no caso em que ela pode ser interpretada como uma aceitação social do aborto ou da homossexualidade. Todavia, a reserva neste capítulo não comporta qualquer redução no compromisso da Santa Sé em relação à promoção da saúde das mulheres e das crianças de sexo feminino.

10. A Santa Sé não se associa ao consenso e exprime uma reserva a propósito do par. 232 (f), com a sua referência a um texto (par. 97) sobre o direito das mulheres ao “controle da própria  sexualidade”. Este termo ambíguo poderia ser compreendido como aceitação do relacionamento sexual fora do matrimônio heterossexual. Ela pede que esta reserva seja anotada no parágrafo. Por outro lado, contudo, a Santa Sé deseja associar-se à condenação da violência contra as mulheres, como é afirmado no par. 97, e à importância da reciprocidade e da responsabilidade conjunta, do respeito e do livre consentimento nas relações conjugais, como é afirmado nesse mesmo parágrafo.

A Santa Sé, a propósito de toda a seção sobre os direitos humanos, com exceção das citações ou referências originarias de outros documentos sobre os direitos humanos, exprime a sua preocupação no que se refere ao excessivo individualismo no seu tratamento dos direitos humanos. Além disso, a Santa Sé recorda que o mandato da IV Conferência Mundial sobre a Mulher não inclui a afirmação de novos direitos humanos.

11. Com relação à frase: “Os direitos das mulheres são direitos humanos”, a Santa Sé interpreta-a como se as mulheres tivessem que gozar plenamente de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

12. Quanto a todas as referências aos acordos internacionais, a Santa Sé reserva a própria posição neste sentido, em particular no que se refere a qualquer acordo internacional já realizado, mencionado nos Documentos, em conformidade com o seu modo de os aceitar ou de não os aceitar.

A Santa Sé pede que estas reservas, juntamente com a anexada declaração de interpretação acerca do termo “gênero”, sejam incluídas no relatório da Conferência.

Declaração interpretativa da Santa Sé
sobre o termo “gênero”

Ao aceitar que a palavra “gênero” neste Documento seja compreendida em conformidade com o seu uso ordinário no contexto da Organização das Nações Unidas, a Santa Sé associa-se ao comum significado de tal palavra nas línguas em que esta existe.

O termo “gênero” é compreendido pela Santa Sé como fundamentado na identidade sexual biológica, masculina e feminina. Além disso, a própria Plataforma de Ação (cf. n. 193c) utiliza claramente a expressão “ambos os gêneros”.

Deste modo, a Santa Sé exclui interpretações dúbias, baseadas em perspectivas mundanas segundo as quais a identidade sexual pode ser adaptada indefinidamente, a fim de se ajustar a novos e diferentes objetivos.

Ela também não se associa à noção determinista biológica, segundo a qual todos os papéis e relacionamentos dos dois sexos são estabelecidos num único padrão estático.

O Papa João Paulo II insiste sobre o caráter distintivo e a complementaridade das mulheres e dos homens. Ao mesmo tempo, encoraja as mulheres a assumirem novos papéis, põe em evidência como os condicionalismos culturais têm representado um obstáculo para o progresso das mulheres e exorta os homens a participar no “grande processo de libertação da mulher” (Carta às Mulheres, 6).

Na sua recente Carta às Mulheres, o Papa explicou a visão matizada da Igreja, da seguinte forma: “É possível acolher também, sem conseqüências desfavoráveis para a mulher, uma certa diversidade de papéis, na medida em que tal diversidade não é fruto de arbitrária imposição, mas brota da peculiaridade do ser masculino e feminino” (Carta às Mulheres, 11)”.

II. Em suma…

Em suma, podem-se apontar oito itens sobre os quais a Santa Sé ou faz nítidas restrições ou deseja maior clareza:

1) a família, estruturada sobre o matrimônio, é o fundamento da sociedade, devendo a maternidade merece apoio decidido (nº 2 do discurso atrás transcrito):

2) As expressões “saúde sexual”, saúde reprodutora, direitos reprodutores” são ambíguas, podendo encobrir homossexualismo e libertinismo sexual (nº 3).

3) O planejamento familiar há de ser promovido por vias naturais, ficando excluídos os meios artificiais e os preservativos (nº 4).

4) Toca ao pessoal sanitário o direito de objeção de consciência a práticas moralmente ilícitas (nº 5).

5) Seja dito Não ao abortamento e ao homossexualismo (nº 9).

6) Seja dito Não ao sexo fora do matrimônio heterossexual (nº 10).

7) Seja dito Não ao uso do sexo concebido em termos individualistas e hedonistas (nº 10).

8) A expressão gênero humano designa homem e mulher colocados em papel de complementaridade, respeitadas as diferenças biológicas e psicológicas existentes entre o masculino e o feminino.

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¹ Mais precisamente: a Profa. Mary Ann Glendon tem 56 anos; é mãe de três filhos e avó de dois netos. Membro da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, é autora de nove livros, entre os quais Aborto e Divórcio na legislação Ocidental, obra contrária ao aborto.

¹ Já antes da Conferência de Pequim, em entrevista concedida ao periódico Newsweek de 4/9/59, a Sra. Mary Ann Glendon observava que faltava equilíbrio nos documentos finais a ser propostos à Conferência: nas secções sobre a saúde da mulher, quase toda a atenção estava voltada para as questões reprodutivas, ao passo que eram apenas mencionados os temas “desnutrição, higiene e doenças infecciosas”, que afetam 850 milhões de pessoas por ano, principalmente nos países pobres. Afirmava também que os documentos subestimavam o matrimônio, a maternidade, a família e a religião; que são centrais na vida da maioria das mulheres do mundo, mas que eram apresentados como obstáculos à sua realização. Asseverava outrossim que a mulher deve ter a escolha de trabalhar em casa e que esperava que se reconhecesse que o divórcio e a ruptura da estrutura familiar acarretam a feminização mundial da pobreza; as mulheres, dizia, não terão a verdadeira igualdade do mundo enquanto não houver um apoio à maternidade e à educação dos filhos.
 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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