Argentina pode romper o muro antiaborto na América Latina

A presidente argentina Cristina Kirchner, durante discurso na 66ª Assembleia Geral da ONU

Pode depender de uma mulher, Cristina Kirchner, nas próximas semanas que a descriminalização do aborto, tema que continua sendo objeto em toda a América Latina de um permanente vaivém, dê um grande passo adiante ou fique mais uma vez empacado. “A presidente argentina se manifestou em público contra o aborto, mas não quer dizer que ela tenha que votar a favor, senão simplesmente que dê liberdade de voto aos deputados de seu grupo, a Frente Para a Vitória”, explica esperançosa a deputada Cecilia Merchán, promotora do projeto de lei que deve ser discutido em 1º de novembro.

“Nesse caso, tenho certeza de que haverá maioria a favor da descriminalização e que daremos um passo decisivo na melhora das condições de vida da mulher, não só argentina como latino-americana”, afirma. Cristina Kirchner, que se confessa religiosa e que contou há pouco tempo que sofreu em sua juventude um aborto espontâneo que a “marcou”, se mantém por enquanto em silêncio.

Em 2008 o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, deu um formidável retrocesso nas esperanças de todos os grupos que lutam na América Latina para pôr fim a uma situação que custa a cada ano a vida de 4 mil mulheres, vítimas de abortos ilegais, e que leva dezenas de milhares dos 4 milhões que se submetem anualmente a cirurgias clandestinas a sofrer graves sequelas. Vázquez confrontou o voto majoritário do Parlamento de Montevidéu, que pela primeira vez havia aprovado uma lei descriminalizadora, e impôs seu veto presidencial. Ninguém acredita que a presidente argentina, que entre outras coisas defendeu o casamento homossexual, deseje fazer algo semelhante no país.

As consequências da decisão de Vázquez foram duríssimas, porque o veto, para o qual alegou sua condição de médico, animou todos os movimentos antiaborto na América Latina, que contam com um apoio sem fissuras, não só da Igreja Católica, como também de todas as igrejas evangélicas que crescem dia a dia no continente.

Há poucas semanas, a Colômbia viveu uma nova tentativa de deixar para trás inclusive a legislação que desde 2006 permite abortar nos três casos clássicos: de risco para a vida da mãe, violação ou malformações do feto incompatíveis com a vida. Mobilizadas pela igreja, 5 milhões de pessoas assinaram uma petição para modificar um artigo da Constituição para que “se defenda a vida desde a própria concepção”. Por 9 votos contra 7, a comissão correspondente do Senado se negou a “blindar” essa obrigação. O voto decisivo foi de uma mulher, a senadora Karime Motta, que originalmente ia aprovar a medida e no último minuto mudou de decisão.

No caso do México, a batalha se decantou justamente do lado contrário que na Colômbia. Em 23 de setembro passado, a Suprema Corte pronunciou uma decisão que validava uma reforma legal introduzida nos estados de Baja California e San Luis Potosí, segundo as quais “o direito à vida fica protegido desde a concepção”.

Diversas associações de mulheres tinham pedido que essas reformas fossem declaradas inconstitucionais (que se realizaram até o momento em 18 das 31 entidades federativas mexicanas) por ser contrárias ao Estado laico mexicano, mas sua demanda obteve um voto a menos que o necessário para prosperar. Assim, o aborto continuará sendo proibido em toda parte, exceto no Distrito Federal, onde uma lei de abril de 2007 permite interromper a gravidez até a 12ª semana. O debate também foi cercado de escândalo, porque dele participou o próprio presidente da República, Felipe Calderón, que falou de seu “compromisso com o direito à vida”.

A crescente pressão que os grupos religiosos exercem na América Latina também ficou clara no Brasil, onde outra mulher, Dilma Rousseff, chegou pela primeira vez à presidência em janeiro deste ano. Rousseff, que ao contrário da maioria dos brasileiros nunca ostentou qualquer crença religiosa, chegou a dizer em 2007, quando ainda não era candidata, que “o aborto deve ser descriminalizado”.

Mas essa opinião desapareceu como por encanto durante a campanha eleitoral, pois seus assessores garantiram que poderia lhe trazer sérias consequências não só com os católicos (o Brasil tem a maior população católica do mundo, mais de 125 milhões) como com as muito ativas igrejas evangélicas, que já representam 20% dos brasileiros. Nem sequer um líder tão carismático e adorado como Lula abordou o tema. De fato, durante seu mandato a comissão correspondente na Câmara dos Deputados votou avassaladoramente contra um projeto de descriminalização apresentado por um pequeno grupo de parlamentares. As coisas ficaram como estão: de 2 a 4 anos de prisão para as mulheres que abortem sem ter sido violadas ou correrem perigo de morte.

Nesse panorama de quase regressão das legislações mínimas aprovadas por muitos países latino-americanos nos anos 1930, a influência da Argentina poderia ser decisiva, opinam diversas associações de mulheres, especialistas e médicos preocupados com o enorme número de abortos clandestinos que são praticados na América Latina e por suas graves consequências na saúde pública. “Na América Latina, inclusive na imensa maioria dos casos de gestações produzidas por violações, não é possível realizar os abortos, que seriam legais, porque as autorizações são adiadas e retardadas por médicos e juízes que antepõem suas crenças e que deixam passar os prazos até que a mulher ou a menina esteja condenada a ter o filho”, queixa-se a deputada Merchán.

Ninguém esquece dois casos que não são absolutamente únicos, nem sequer infrequentes, mas que se transformaram em paradigmas: a menina colombiana de 13 anos violentada por um vizinho que foi rejeitada em sete hospitais e à qual um juiz negou proteção jurídica; e a menina brasileira de 9 anos violentada por seu padrasto e grávida de gêmeos à qual a Igreja excomungou e que teve de recorrer à justiça diante da evidência de que alguns médicos preferiam que corresse o risco de morrer.

O debate na Argentina vai coincidir com um novo e terrível caso: muito poucos jornais publicaram a história de uma jovem de 24 anos, mãe de três filhos, que se encontra há dias entre a vida e a morte em um hospital de Puerto Madryn (ao sul de Buenos Aires), depois de ter praticado um aborto clandestino. Como tantas outras, a jovem, vítima de uma infecção brutal, foi submetida a uma operação para extirpação do útero. “N.M.S. está em condições desesperadoras, com falência renal, hepática e respiratória”, comunicou um entediado coordenador do serviço de maternidade do centro hospitalar. “É mais uma vítima de um aborto inseguro. São as mulheres pobres que não podem pagar um aborto nas clínicas privadas e que caem nas mãos de gente sem escrúpulos”, criticou o médico. “Poucos dias antes ingressou nesse hospital uma menina de 11 anos grávida. Felizmente, vão lhe fazer um aborto legal”, comunica a “El País” um jornalista local.

Segundo dados oficiais, na Argentina morrem a cada ano cerca de cem mulheres e meninas vítimas de abortos clandestinos, que se transformaram na primeira causa de morte materna. Calcula-se que em todo o país sejam praticados anualmente cerca de 460 mil abortos inseguros. É possível que mais de 70 mil acabem no hospital.

O projeto de lei defendido por Cecilia Merchán, uma deputada de Córdoba, de 40 anos, mãe de uma filha de 20, que representa o Coletivo Juana de Azurduy, contempla a descriminalização do aborto até a 12ª semana, como propõe a campanha pelo aborto gratuito. Conta com o apoio de 16 universidades de todo o país e de grupos católicos a favor de uma nova legislação. No Congresso, relata Merchán, “foram apresentados outros quatro projetos, mas todos eles não propõem a descriminalização, e sim modificar o atual artigo 86 do Código Penal, que estabelece os três casos em que o aborto não é punido”. Na prática, esses quatro projetos representariam adiar mais uma vez o debate.

“Conseguimos instalar pela primeira vez o debate no Congresso, com 50 deputadas e deputados que o apoiam. Estamos certos de poder reunir os votos necessários. Só falta que a presidente Cristina Kirchner assuma que este é um problema exclusivo do Congresso e conceda liberdade de ação a seus deputados, assim como dentro da coalizão radical”, afirma Merchán. Afinal, lembra, esse mesmo Congresso aprovou há menos de um ano o casamento igualitário que regularizou a situação de casais homossexuais.

“Eu mesmo sofri um aborto clandestino quando tinha 20 anos e estive prestes a morrer e de não poder ter mais filhos. Precisamos avançar. Esse é o momento, senão tudo ficará emperrado outra vez e continuaremos sofrendo casos parecidos”, explica Merchán.

Um crime na maior parte do continente

Argentina: Desde 1921 o aborto é permitido em casos de violação de mulheres incapacitadas mentalmente e quando está em perigo a vida da mulher

Bolívia: Só é legal com autorização prévia do juiz, se a gravidez for resultado de “uma violação, rapto não seguido de casamento, estupro ou incesto”, e se a vida da mãe correr risco

Brasil: O aborto é punido com 1 a 4 anos de prisão, exceto se a saúde da mãe estiver em perigo ou se a gravidez for fruto de violação

Chile: O aborto é ilegal, sem exceções. É penalizado com 3 a 5 anos de prisão. Desde 2007 pode-se fornecer a “pílula do dia seguinte” para as jovens a partir dos 14 anos, e os médicos têm obrigação de atender e não denunciar as vítimas de abortos clandestinos

Colômbia: Em 2006 foi descriminalizado em três condições: risco para a saúde da mãe, violação e quando o feto vai morrer

Cuba: Desde 1965 a mulher pode interromper a gravidez nas 12 primeiras semanas de gestação sem justificar seus motivos

Equador: É ilegal salvo em caso de ameaça à vida ou saúde da mulher, ou se a gravidez for resultado de violação de uma mulher com deficiência psíquica

México: No Distrito Federal pode-se abortar até a 12ª semana. No restante do país só é autorizado nos três casos clássicos

Nicarágua: Desde outubro de 2006 é penalizado sob qualquer condição

Paraguai: Desde 1937 só é permitido quando a vida da mulher grávida corre risco

Peru: O aborto é legal quando está em risco a vida da mulher. Na prática também não está garantido o aborto terapêutico

Uruguai: Em 2008 o Parlamento aprovou a lei integral que descriminaliza o aborto. Mas o presidente Tabaré Vázquez a vetou, contrariando sua própria força política (Frente Ampla) e a opinião dos cidadãos: 60% são a favor da descriminalização

Venezuela: O aborto é considerado crime, mas existe um anteprojeto de norma que propõe a descriminalização por prazos

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Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2011/10/18/argentina-tenta-romper-o-muro-antiaborto-na-america-latina.jhtm


Soledad Gallego-Díaz
Em Buenos Aires (Argentina)

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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