Antropologia e Generalidades – EB Parte 5

A exceção, assim claramente admitida pelo Apóstolo, tinha certo significado outrora, quando se esperava para breve a segunda vinda de Cristo.  Em nossos dias, porém, já impressiona menos, visto que a ansiosa expectativa se dissipou.  Muito mais ênfase atualmente se deve atribuir ao encontro com Cristo no final da peregrinação terrestre de cada indivíduo.

Lição 3: Consequências prática

3.1. As misérias desta vida

O fato de que a morte e seus precursores (doenças, misérias desta vida) se tornaram, depois de Cristo, instrumentos de Redenção e glória, inculca aos cristãos o valor não somente da morte, mas também dos sofrimentos.

Aceite, pois, o cristão as misérias cotidianas (doenças, cansaço, penúria … ) em união consciente com Cristo; e tais misérias se lhe tornarão via para maior intimidade corn Deus.  Nenhuma e meramente casual.  Elas podem ser suportadas corn tibieza e pouco mérito, mas também podem ser precioso elemento de santificação para quem as abrace corn generosidade e amor.

3.2. Assistência aos gravemente enfermos

É de enorme importância assistir a uma pessoa gravemente enferma enquanto ainda está lúcida; trata-se de proporcionar-lhe os subsídios necessários para que morra no amor a Deus; o útimo ato consciente e livre, anterior a morte, decide de todo o futuro póstumo desse indivíduo.  Sem dúvida, o Senhor não falta ao moribundo corn auxilios especiais, a fim de que atravesse corn as devidas disposiçõe tão importante etapa, Registram-se casos de conversões maravilhosas no momento final desta peregrinação; a misericórdia de Deus, derramando-se pacientemente sobre o pecador, move por fim moribundos empedernidos.1

3.3. Morte correlativa ao tipo de vida

Muito temerário seria fazer da misericórdia divina um pretexto, mais ou menos consciente, para negligência e tibieza na vida espiritual. É sábio crer que cada um morre como viveu.  Quase cada ato do homem, no decorrer desta vida, deixa uma marca ou um vestígio em sua personalidade; e a morte não faz senão manifestar definitivamente esse tipo de personalidade do indivíduo.  Por conseguinte, os últimos instantes não são algo de essencialmente novo na vida do homem; mas, preparados pelas fases anteriores desta peregrinação, vêm a ser o seu desabrochamento normal e a sua última expressão.  Na morte a pessoa recapitula toda a sua vida e a entrega ao Pai Celeste; ora, a menos de uma intervenção extraordinária de Deus, não pode recolher senão o que tenha semeado dia-a-dia na terra.  Os atos cotidianos, aparentemente transitórios, pala morte se tornam imperecíveis, depondo para sempre em abono ou desabono do seu autor.
Surge então a pergunta:

3.4. Como nos preparamos para a morte?
Respondemos que a melhor preparação para a morte é a vida de cada dia, vivida.

1. São Paulo, ao falar dos acontecimentos finais, costuma reverse apenas a sorte dos justos. Quando estamos lúcidos ou precisamente quando a morte ainda parece distante. É nos dias bons que nos preparamos para os dias finais e para a morte, e não apenas quando as faculdades mentais e fisicas começam a desfalecer (pois então é mais difícil pensar, ler, orar… ). A ação de sedativos e analgésicos dificulta o raciocínio e obnubila a mente.  A tendência a afastar o pensamento da morte é paradoxal, pois na verdade “a morte é a única certeza que temos desde a infância”.

Cada qual viva como desejaria morrer, prestando atenção as coisas que realmente terão algum valor naquele momento e distinguindo-as bem de bagatelas e ninharias, que nada significarão no momento final, mas que muito empolgam e apaixonam no decorrer desta caminhada.  Procure o cristão julgar tudo como Deus julga, ou seja, a partir da eternidade; coloque-se assim na rota e na luz do definitivo, e a morte não será um susto nem uma desinstalação.  Assuma o cristão as provações desta vida como aprendizado para o instante terminal.  Trabalhe por deixar este mundo um pouco melhor do que o encontrou, pois este aspecto entrará na prestação de contas que cada qual fará a Deus.  Ame os irmãos corn sinceridae e benevolência.  E principalmente ore, pois o contato com Deus cultivado na oração é a mais viva antecipação do grande encontro final.

É tradicional pedir a Deus que nos preserve da morte súbita e imprevista. É para desejar que estejamos tão maduros na fé que vamos conscientemente ao encontro da morte.  A nossa vida de cada dia é como um livro, do qual escrevemos diariamente uma página; no fim da redação, é oportuno que tenhamos um espaço de tempo e lucidez de espírito para rever esse livro, corrigir o que nele esteja errado ou inadequado, e ainda melhorar o que precise de ser melhorado; assim o cristão poderá entregar aos p6steros o livro de sua vida emendado e rematado – o que será, sem dúvida, um grande presente.

Possa ainda cada qual morrer reconfortado pelos útimos sacramentos, exclamando as palavras finais da Escritura Sagrada: “Vem, Senhor Jesusf” (Ap 22,20).

A boa morte é fruto de graça especial ou do dom da perseverança final.  Nao é algo que se possa merecer, mas algo que o Senhor concede, atendendo as orações dos seus fiéis.  Merecer o dom da perseverança final seria o mesmo que merecer a graça – o que é contraditório (a graça é sempre gratuita).  A oração, porém, humilde e confiante obtém o grande dom; por isto, pedir a graça de uma boa morte é coisa frequentemente recomendada pelos santos e teólogos.  Aliás, ao invocarmos diariamente a Virgem Santíssima na “Ave Maria”, pedimos-lhe que rogue por nós “agora e na hora da nossa morte”.

MÓDULO 5: A MORTE (IV) – QUESTÕES COMPLEMENTARES

Abordaremos neste Módulo mais algumas questões complementares relativas a morte: 1) iluminação da mente na hora da morte 2) angústias anteriores A morte; 3) a nephesh do Antigo Testamento e as Testemunhas de Jeová.

Lição 1: Iluminação da Mente?

Alguns teólogos julgam que, no momento decisivo em que o ser humano deixa este mundo, a sua mente é iluminada corn claridade que nunca teve até então; essa iluminação singular lhe permite fazer uma opção final, consciente e radical como nunca, por Deus ou contra Deus a sua santa Lei.

1. Tal hipótese não se pode basear nem na Sagrada Escritura nem na Tradição cristã.  Ela se apóia, antes, em motivos de conveniência ditados pela fé e pela razão.  Tais razões vem a ser:

a) O momento exato da morte, sendo de importância decisiva para todo o futuro do indivíduo, deve ser especialmente lúcido, de modo que a pessoa possa fazer uma escolha tão convicta e voluntária como nunca.  Os autores lembram os casos frequentes de morte repentina, morte que colhe a pessoa talvez num estado de mais disposições éticas; por que não admitir que a Providência Divina conceda a esses individuos (e por que não a todos?) a ocasião de repensar suas disposições pecaminosas e, eventualmente, retratadas?

Tal iluminação da mente faria da morte do indivíduo uma autêntica consumação da sua existência anterior.  No decorrer da vida terrestre, nossas opções são imperfeitas e mutáveis; na hora da morte elas seriam plenamente confirmadas ou radicalmente contraditadas pela personalidade do moribundo. O pecado ou o amor anteriores receberiam solene chancela ou profunda desdita.

c) Existe uma desproporção entre os atos limitados e condicionados da nossa vontade nesta vida e as consequências vultosas e definitivas de tais atos no além.  Tal desproporção seria superada, se, no fim da nossa existência terrestre, nos fosse dada a oportunidade de fazer uma escolha plenamente lúcida e responsável.

Em útima instância, vê-se que os três argumentos dizem a mesma coisa: durante esta vida, não temos as condições ideais para fazer uma escolha que tenha repercussões para todo o sempre.

2. Ora tal afirmação pode ser impugnada por exagerar a indócil ou incapacidade do homem peregrino na terra.  Corn efeito; contra a teoria da iluminação da mente do moribundo apresentam-se as seguintes ponderações:

a) Não se pode negar que já durante a vida presente o ser humano possui a liberdade suficiente para cometer um pecado mortal; vejam-se, porexemplo, os catálogos de pecados que, segundo São Paulo, excluem do Reino de Deus o pecador: 1 Cor 6,9-1 1; 15,50; GI 5,19-21; Ef 5,5.  Supondo a responsabilidade do cristão, Jesus Cristo instituiu o Sacramento da Penitência, que é obrigatório nos casos de pecado mortal. O Direito Canônico, por sua vez, prescreve sanções contra os indivíduos que cometam culpas graves.  Além do mais, observemos: se a primeira escolha ainda é titubeante ou superficial e imperfeita, a repetição dos mesmos atos vai tornando tal escolha sempre mais intensa e consciente (admitem-se raras exceções).

Pode acontecer que, na hora da morte, o ser humano tome uma decição contrastante corn as decisões anteriores de sua vida, seja para melhor (em virtude do brilho da graça), seja para pior (ninguém está certo da sua perseverança final).  Mas tal opção contrastante e brusca parece constituir uma exceção; a natureza humana é lenta e progride paulatinamente em suas resoluções; a experiência ensina quanto custa praticar pequenas renúncias ou mudar os hábitos rotineiros, mesmo quando a pessoa percebe a grande necessidade de o fazer. É normal, pois, que na hora da morte a suprema decisão seja consciente com as decisões que marcaram o roteiro de vida do indivíduo.  Somente por intervenção extraordinária de Deus alguém pode “dar uma guinada de 1 80″‘ precisamente na hora da morte.  Ora não se deve postular o extraordinário como se fosse algo de ordinário.

Em vista disto, a hipótese da iluminação na hora da morte perde muito do seu poder atraente.  Seja ou não uma realidade, ela não dispensa o cristão de afirmar que todo o decorrer da sua vida terrestre tem a índole de um julgamento… e julgamento de consequências definitivas.  Diz-se sabiamente que cada um morre como viveu. É preciso que o homem se converta para Deus diariamente, e de maneira sempre mais coerente, a fim de que tenha condições naturais para dizer um Sim convicto e resoluto ao Pai na hora da morte. É mister que cada qual se prepare, mediante as muitas e pequenas decisões particulares, para a grande e útima decisão da morte.  Quem quer morrer santamente, viva de tal modo, e não se refugie na esperança de um dom extraordinário de Deus na hora da morte, pois isto seria tentar a Deus.

3. Em conclusão pode-se dizer: a hipótese de especial iluminação na hora da morte pode ser aceita; servirá de consolo para quem receie pela sorte das pessoas desaparecidas tragicamente; servirá também de apoio àqueles que, embora procurem viver corretamente, tem medo de ser colhidos pela morte num momento de fraqueza; enfim, ajudará todos a conceber grande confiança em Deus (que é sempre mais misericordioso do que nós ousamos imaginar).

Todavia a hipótese da iluminação não pode servir de amparo e indolência; no plano da salvação, qualquer oportunidade pode ser a útima e decisiva; não há de ser desperdiçada sob o pretexto de que outra chance ocorrerá ainda mais fecunda, posteriormente.  Todo e qualquer apelo da graça há de ser considerado como o útimo que Deus nos dirige.  Estas observações põem em plena luz a enorme seriedade da vida presente:

‘Nesta se decide de modo irremediável um destino etemo.  Cada dia, cada hora, cada minuto se inscreve indelevelmente na eternidade.  Cada ação, cada palavra, cada pensamento – em suma, qualquer ato nosso, exterior ou interior, que parece esvair sem deixar vestígio, no decurso de poucos instantes – molde algum traço da nossa personalidade definitiva’ (G.  Biffi, L’al di lb, p. 103).

Lição 2: As angústias anteriores à morte

No Módulo 3, ao propor o conceito cristão de morte, dizíamos que a morte violenta e dolorosa, como atualmente ocorre, é consequência do pecado dos primeiros pais. lsto implica que as doenças e os sofrimentos ligados à morte sejam derivados do pecado original.  A propósito convém observar:

1) Não se julgue que toda doença seja castigo de pecados pessoais do individuo enfermo; recair-se-ia na posição dos amigos de Jó, que, ao vê-lo prostrado, o intimavam a acusar seus pecados; tal posição, aliás, ainda era a dos Apóstolos, que, ao verem um cego de nascença, perguntaram a Jesus quem havia pecado: ou ele ou os pais dele? Cf.  Jo 9,1-3.  – Na verdade, o sofrimento pode ser provocado por outras criaturas (assim as guerras, as injustiças sociais… ); pode ser devido também a calamidades naturais incontroláveis (enchentes, secas, incêndios…); pode ter causa ainda na fragilidade física do ser humano, qua se cansa, contrai moléstias, etc.

2) O cristão sofre a semelhança do não-cristão. Pode ser que a perspectiva da morte o angustie; angustiou o próprio Cristo como homem (cf.  Mt 26,37s; Jo 12,27; 13,21; Mc 14,36s; Hb 5,7).  Procure, porém, superar a dor mediante uma visão de fé; todo sofrimento humano já foi assumido e resgatado por Cristo; tem valor salvífico e santificante para quem o suporta, a função co-redentora em prol dos irmãos; sofrendo com Cristo, o cristão “completa em sua carne o qua falta à Paixão de Cristo em favor do seu Corpo qua é a lgreja” (Cl 1,24); isto é, dá novo suporte a novo contexto A Paixão de Cristo, estendendo-a ate os dias atuais, afim de beneficiar os pecadores e carentes.  Consciente do rico sentido que o sofrimento e a morte podem assumir, o cristão dirá como São Paulo: “Para mim, morrer é um lucro… Desejo partir para estar com Cristo” (Fl 1121.23).

Lição 3: “Nephesh” (alma) e Testemunhas

1. As Testemunhas de Jeová afirmam qua a morte é o termo final da existência do homem.  Deus pode criar de novo a este (desde que seja Testemunha de Jeová). O fundamento desta tese é pretensamente a própria S. Escritura: no Antigo Testamento a palavra nephesh ocorre 750 vezes e tem, segundo as Testemunhas, o sentido de alma; ora como a nephesh morre, conforme textos do Antigo Testamento, a alma humana morre.  Esta doutrina é capital para as Testemunhas; entre outros exemplos, citam Ez 18,4: “Eis que todas as almas a mim pertencem.  Como a alma do pai, assim também a alma do filho a mim pertence.  A alma que pecar, essa morrerá”.

Ora a palavra nephesh tem vários significados em hebraico: pode ser traduzida por hálito, garganta, alma, ser vivo, cadáver… Em consequência, é falso ensinar qua a alma morre, corn base na interpretação das Testemunhas. Tanto o Antigo como o Novo Testamento professam sobejamente a sobrevivência de um núcleo da personalidade após a morte; esta sobrevivência é adormecida e inconsciente nos livros bíblicos mais antigos, tornando-se lúcida nos escritos mais recentes.  Basta citar alguns poucos textos: Gn 15,15: Deus promete a Abraão que, após a morte, o Patriarca se reunirá aos seus pais.

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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