Anestesia espiritual

Quando li a expressão “anestesia espiritual”, lembrei-me das vezes que levei na carne uma dose de anestesia e do seu efeito imediato. A carne não sente nada, as dores desaparecem, os sentidos já não existem e tudo parece dissipar-se da dura realidade humana. Como não entender que esta anestesia humana pode contaminar a vida espiritual?

Já não se sente a capacidade de amar, o gosto de orar ficou esquecido; o caminho do bem desapareceu dos pés; a rotina do trabalho sem respeitar o dia do Senhor se tornou normal; os tempos fortes do cultivo do espírito como a quaresma e Semana Santa se transformaram em tempos de turismo; a atenção que se deve dar ao outro foi substituída por aquilo que eu gosto e quero; a busca insaciável do ter e do prazer só termina quando termina a vida; o pecado já não existe mais, pois foi incorporado no comportamento cotidiano como normal. Tudo isso é resultado da citada anestesia espiritual.

O coração humano anestesiado de si mesmo e da presença do outro perde o sentido de viver. A doença que mais mata é o individualismo apaixonado por si mesmo, rodeado da insaciabilidade humana que jamais acabará, a não ser no túmulo do absoluto egoísmo. Carta aos Hebreus 10,24: “Olhemos uns pelos outros para estimularmos a caridade e as boas obras”. O outro já não nos interessa. É apenas um número que passa perto, um fantasma e não uma pessoa a ser amada, parte de nós mesmos. Atenção ao outro exige que se deseje para o outro todo o bem.

As pessoas não podem ser felizes por pedaços, como pedras de mosaico separadas umas das outras. É necessário que a felicidade seja construída em conjunto. Não há felicidade quando falta o pão na mesa, o trabalho, os meios para curar-se das doenças, o alimento cultural que gera desenvolvimento. É preciso uma revolução a partir de dentro de nós mesmos, que nos coloque diante do outro como nosso irmão e fazer ao outro o que nós gostaríamos que ele fizesse a nós.

A anestesia espiritual deixa-nos cegos perante os sofrimentos alheios. Atitudes de indiferença estão entrando na cultura do nosso mundo atual como algo cultural. Já não me interessa o que está acontecendo ao meu redor. Não dar importância ao outro que está caído se tornou recorrente. O mais importante sou eu e meus desejos.

Este tempo quaresmal em que vivemos é uma oportunidade de refazer em nós os relacionamentos verdadeiros, como nos disse o apóstolo Paulo: “Olhemos uns para os outros para estimular-nos na prática da caridade e das boas obras”. Não precisa fazer nada mais do que olhar. O olhar está carregado de si mesmo e da atenção que o outro precisa. Acordar da anestesia, sentindo a dor das próprias feridas e dos outros.

A vida cristã não é uma filosofia apenas; um viver alienado dos outros e da própria realidade. Por isso que exige do cristão ação concreta, compromisso social para que aconteçam verdadeiras mudanças das estruturas e dos estilos de vida.

Dobrar os joelhos diante de Deus e sujar as mãos com o pó da realidade nos leva a sair da anestesia espiritual e deixar correr, mesmo na dor, o sangue restaurador de uma vida no Espírito Santo. Este é o tempo de acordar, de deixar-se tomar pelos sentimentos mais humanos, olhar ao nosso redor e se dar conta de que não estamos sozinhos. Juntos e mais humanos podemos construir uma sociedade mais digna.

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Dom Anuar Battisti
Arcebispo de Maringá (PR)

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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