Em síntese: A antropologia de autores modernos nega a distinção de corpo e alma humana, de modo que, quando alguém morre, morre todo e, para que não haja hiato na existência desse alguém, professa a ressurreição logo após a morte. – Ora tal teoria é contraditada tanto pela filosofia quanto pela fé; esta afirma a ressurreição no fim dos tempos (1Cor 15, 23; 1Ts 4, 17; 2Cor 5, 1-5). A morte não é a extinção do ser humano, mas é a separação de corpo e alma; a alma, imortal por sua natureza, aguarda no além a re-união à matéria.
Está sempre em foco a questão antropológica: quantos elementos constituem o ser humano? – A resposta clássica propõe corpo material e alma espiritual como componentes de um todo unitário. Outra corrente admite corpo, alma e espírito, enquanto mais recentemente se diz que não há distinção entre corpo e alma. É a esta última sentença que dedicaremos as páginas subseqüentes.
1. O problema
Na “Revista de Espiritualidade Inaciana”, junho de 2006, pp. 13s, o Pe. João Batista Libanio expõe a nova antropologia nos seguintes termos:
“Quadro da unidade radical indissociável entre corpo e alma
A mudança veio por influência das ciências naturais e da filosofia moderna. A concepção evolucionista e o avanço da microbiologia diminuíram o limiar entre matéria e espírito, entre corpo e alma, tanto no processo evolutivo quanto na realidade de cada ser. A unidade é pensada de tal modo que não se entende como se podem separar corpo e alma na morte, já que a alma é a matéria que tomou consciência de si e a matéria é a ama ‘congelada’. Morre-se todo ou se volta ao nada ou Deus ressuscita imediatamente o todo”.
Interessa-nos analisar mais atentamente tais noções de corpo e alma.
2. Alma humana: nova noção
A alma humana seria matéria que tomou consciência de si…
Imaginemos a matéria “rocha”. Pode ela chegar a ter consciência de si pelo processo evolutivo? Está nas potencialidades da rocha “obter consciência de si mesma”? – Para responder, digamos o que é “ter consciência do conhecimento; assim “escrevo e tomo consciência de que estou escrevendo”. Essa tomada de consciência leva a refletir, raciocinar, progredir no saber… coisas que ultrapassam as potencialidades da matéria. Esta é sempre confinada ao “aqui e agora”, incapaz de conceber noções universais, incapaz de falar algum idioma, incapaz de evoluir na sua “civilização”. Na verdade, o pensar não é produto de reações físicas e químicas; caso o fosse, poder-se-ia um dia produzir matéria pensante em laboratório. As citadas operações supõem haver dentro da matéria um princípio vital capaz de transcender as dimensões do concreto “aqui e agora”, ou seja, um princípio vital imaterial ou espiritual.
Destas ponderações se segue que o corpo humano só pode ser sujeito que reflete sobre si mesmo, se ele é penetrado por um princípio vital (alma intelectiva) que transcende o singular e concreto objeto dos sentidos (visão, audição, tato…).
3. Corpo humano = alma “congelada”
“Alma congelada” é expressão metafórica. Que significa essa locução? Parece ser um conjunto de palavras que não se podem concretizar.
As ciências empíricas têm evoluído mostrando que a matéria, densa como é, consta, em última análise, de partículas atômicas e subatômicas, que guardam certa distância (mínima) entre si. Tal estrutura não deixa de ser material. A ciência, por mais avançada que seja, não atinge a noção de espírito, de modo que não se pode dizer que a ciência moderna aproximou entre si matéria e espírito ou diminui a distância entre um e outro desses elementos. A distinção entre matéria e espírito é tema de filosofia e não pode ser anulada pelo progresso das ciências empíricas, que não chegam à noção de espírito.
4. Dualismo, dualidade e monismo
Os autores modernos repudiam o dualismo de corpo e alma como se a matéria corpórea fosse um ente mau e o espírito uma criatura boa por si mesma. Tais pensadores têm razão; não há ser algum que seja mau por sua própria índole; tal teoria seria o maniqueísmo. Todavia, para fugir do dualismo, não é necessário professar o monismo, que identifica entre si corpo e alma, matéria e espírito. Entre
dualismo e monismo, existe a dualidade, que admite dois princípios distintos um do outro, não porém antagônicos (como no dualismo) e sim complementares. Assim, por exemplo, entre homem e mulher não existe dualismo (oposição) nem monismo (o homem não é idêntico à mulher), mas dualidade (complementaridade). Desta maneira corpo e alma estão em dualidade, não em dualismo nem em monismo.
Até aqui falou a filosofia. Vejamos o que propõe a Teologia.
5. A Teologia que diz?
5.1. A mensagem bíblica
A Escritura é muito enfática ao afirmar a distinção de corpo e alma e a ressurreição no fim dos tempos:
Mt 10, 28: “Não temais aqueles que podem matar o corpo, mas não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode acabar com corpo e alma no fogo”.
Jo 6, 39: “Esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que Ele me confiou, mas os ressuscite no último dia”.
Jo 6, 44: “Ninguém pode vir a mim se o Pai… não o atrair, e eu o ressuscitarei no último dia”. Ver Jo 6, 54.
1Ts 4, 16: “Quando o Senhor… descer do céu, então os mortos em Cristo ressuscitarão”.
5.2. Aprofundamento teológico
A Teologia é a fé que procura compreender. Por conseguinte o teólogo é um homem de fé. A fé é a adesão à Palavra de Deus comunicada por seus órgãos oficiais, ou seja pela Escritura e a Tradição oral que a Igreja exprime de maneira autêntica por seu magistério assistido pelo Espírito Santo. Ora o magistério da Igreja formulou os dados da Revelação Divina referente à Escatologia nos seguintes termos:
“1. A Igreja crê na ressurreição dos mortos.
2. A Igreja entende que esta ressurreição se refere ao homem todo; para os eleitos, ela não é senão a extensão aos homens da própria Ressurreição de Cristo.
3. A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência [continuationem et subsistentiam], depois da morte, do elemento espiritual, dotado de consciência e de vontade, de tal modo que subsista [subsistat] o “eu humano”, ainda que temporariamente privado do complemento do próprio corpo. Para designar este elemento, a Igreja usa o termo “alma” [anima]. Consagrado pela Sagrada Escritura e pela Tradição. Embora não ignore que na Sagrada Escritura este termo tome significados diversos, julga, no entanto, que não há motivos válidos para rejeitá-lo.
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, Osb
Nº 532, Ano 2006, p. 453