A Virgindade Perpétua de Maria – Parte 1

Tratado de São Jerônimo contra Helvídio

Este tratado surgiu por volta do ano 383
dC, quando Jerônimo e Helvídio se encontravam em Roma, no tempo do papa Dâmaso.
As únicas informações contemporâneas que se conservam de Helvídio são estas,
fornecidas por Jerônimo.

A questão que
trouxe este tratado à luz foi: teria a Mãe de Nosso Senhor permanecido virgem
após o nascimento de seu Filho? Helvídio afirmava que os Evangelhos mencionando
os “irmãos” e “irmãs” do Senhor provavam que Maria teria
tido outros filhos, baseando sua opinião nos escritos de Tertuliano e Vitorino.

A conclusão
deste ponto de vista é que a virgindade se situa numa posição inferior ao
casamento. Jerônimo defende o outro lado, mantendo três proposições contra
Helvídio:

José era o
suposto marido de Maria, mas não o era de fato;

Os
“irmãos” do Senhor eram seus primos (parentes), não irmãos de
verdade; e

A virgindade é
superior ao estado de casado.

A primeira
proposição ocupa os capítulos 3
a 8. Baseia-se no registro de Mt 1,18-25, especialmente
nas palavras: “antes que coabitassem” (cap. 4) e “não a conheceu
até que” (caps. 5-8).

A segunda, gira
em torno da expressão: “filho primogênito” (caps. 9-10), que Jerônimo
afirma ser aplicável não apenas ao primeiro de uma série de vários filhos, mas
também ao filho único. Quanto à menção dos irmãos e irmãs de Jesus, Jerônimo
garante serem filhos de outra Maria, esposa de Cléofas ou Clopas (caps. 11-16);
para fundamentar sua posição, cita diversos escritores da Igreja (cap. 17).

Na terceira e
última parte, para sustentar a preferência da virgindade sobre o casamento,
Jerônimo afirma que não apenas Maria mas também José mantiveram seu estado
virginal (cap. 19); diz, também, que embora o casamento possa ser um estado santo,
apresenta grandes obstáculos para a oração (cap. 20) e que o ensinamento da
Escritura declara que o estado de virgindade e continência estão mais de acordo
com o desejo de Deus do que o casamento (caps. 21-22).

Parte I
Introdução

» CAPÍTULO I

Há algum tempo,
recebi o pedido de alguns irmãos para responder a um panfleto escrito por um
tal Helvídio. Demorei para fazê-lo, não porque fosse tarefa difícil defender a
verdade e refutar um ignorante sem cultura, que dificilmente tomou contato com
os primeiros graus do saber, mas porque fiquei preocupado em oferecer uma
resposta digna, que desmoronasse os seus argumentos.

Havia ainda a
preocupação de que um discípulo confuso (o único sujeito do mundo que se
considera clérigo e leigo; único também, como se diz, que pensa que a
eloquência consiste na tagarelice, e que falar mal de alguém torna o testemunho
de boa fé) poderia passar a blasfemar ainda mais, caso lhe fosse dada outra
oportunidade para discutir. Ele, então, como se estivesse sobre um pedestal,
passaria a espalhar suas opiniões em todos os lugares.

Também temia
que, quando caísse na realidade, passasse a atacar seus adversários de forma
ainda mais ofensiva.

Mas, mesmo que
eu achasse justos todos esses motivos para guardar silêncio, muito mais justamente
deixaram de me influenciar a partir do instante em que um escândalo foi
instaurado entre os irmãos, que passaram a acreditar nesse falatório. O machado
do Evangelho deve agora cortar pela raiz essa árvore estéril, e tanto ela
quanto suas folhagens sem frutos devem ser atiradas no fogo, de tal maneira que
Helvídio – que jamais aprendeu a falar – possa aprender, finalmente, a
controlar a sua língua.

» CAPÍTULO II

Invoco o
Espírito Santo para que Ele possa se expressar através da minha boca e, assim,
defenda a virgindade da bem-aventurada Maria. Invoco o Senhor Jesus para que
proteja o santíssimo ventre no qual permaneceu por aproximadamente dez meses,
sem quaisquer suspeitas de colaboração de natureza sexual. Rogo também a Deus
Pai para que demonstre que a mãe de Seu Filho – que se tornou mãe antes de se
casar – permaneceu Virgem ainda após o nascimento de seu Filho.

Não desejamos
entrar no campo da eloquência, nem usar de armadilhas lógicas ou dos
subterfúgios de Aristóteles. Usaremos as reais palavras da Escritura;
[Helvídio] será refutado pelas mesmas provas que empregou contra nós, para que
possa ver que lhe foi possível ler conforme está escrito, e, ainda assim, foi
incapaz de perceber a conclusão de uma fé sólida.

Parte II
José era o suposto marido de Maria; não era marido de fato

» CAPÍTULO III

Sua primeira
declaração é: “Mateus diz: ‘O nascimento de Jesus Cristo foi assim: quando
sua mãe Maria estava prometida a José, antes de coabitarem, encontrou-se
grávida pelo Espírito Santo. E José, seu marido, sendo um homem justo e não
desejando denunciá-la publicamente, pensou em repudiá-la em segredo. Mas enquanto
pensava essas coisas, um anjo do Senhor lhe apareceu em sonho e disse: ‘José,
filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua esposa, pois o que
nela foi gerado provém do Espirito Santo’. Notem” – continua ele –
“que a palavra empregada é ‘prometida’ e não ‘confiada’, como vocês dizem;
é óbvio que a única razão para estar prometida é porque deveria se casar um
dia. E o Evangelista não iria dizer ‘antes de coabitarem’ se eles não viessem a
coabitar no futuro, já que ninguém usaria a frase ‘antes de jantar’ se certa
pessoa não fosse jantar. Também o anjo a chama ‘tua esposa’ e se refere a ela
como unida a José. A seguir, somos chamados a ouvir a declaração da Escritura: ‘E
José despertou do seu sono e fez como o anjo do Senhor lhe havia ordenado,
tomando-a para si como esposa; e não a conheceu até que deu à luz a seu filho'”.

» CAPÍTULO IV

Consideremos
cada um desses pontos, pois seguindo o caminho dessa impiedade mostraremos que
ele [Helvídio] está se contradizendo. Admite que [Maria] estava
“prometida” e que o próximo passo seria se tornar esposa daquele
homem a quem estava prometida. Novamente, ele a chama de “esposa” e
diz que a única razão para estar prometida seria pelo fato de casar-se um dia.
E, temendo que não o compreendêssemos suficientemente bem, ainda diz: “a
palavra usada é ‘prometida’ e não ‘confiada’, isto é, ela ainda não se tornara
esposa, nem mesmo havia sido unida pelo contrato de casamento”.

Mas quando ele
continua: “o Evangelista jamais usaria tais palavras se eles não viessem a
se juntar futuramente, já que não se usa a frase ‘antes de jantar’ se certa
pessoa não for jantar”, sinceramente não sei se devo lamentar ou rir.
Deveria acusá-lo de ignorância ou de imprudência? Como se isto, supondo que uma
pessoa dissesse: “Antes de jantar no porto, naveguei para a África”,
significasse que tais palavras obrigatoriamente demonstrassem que essa pessoa
alguma vez já jantou no porto. Se eu preferisse dizer: “o apóstolo Paulo,
antes de ir para a Espanha, foi preso em Roma”, ou (como também acho
provável) “Helvídio, antes de se arrepender, morreu”; acaso teria
Paulo obrigatoriamente estado na Espanha [após a prisão], ou Helvídio se
arrependeria após a morte, ainda que a Escritura diga: “No Sheol quem vos
dará graças?”?

Não podemos
entender a preposição “antes” – ainda que muitas vezes signifique
ordem no tempo – como também ordem de pensamento? Portanto, não há necessidade
que nossos pensamentos se concretizem, se alguma causa suficiente vier a
evitá-los (sua concretização). Logo, quando o Evangelista diz “antes que
coabitassem”, indica apenas o tempo imediatamente precedente ao casamento,
e mostra que estava em estado bem adiantado, pois ela já estava prometida, a
ponto de estar próximo o momento de se tornar esposa. Conforme diz [o
Evangelista], antes de se beijarem e se abraçarem, antes da consumação do
casamento, ela se encontrou grávida. E ela foi determinada para pertencer a ninguém
mais a não ser José, que guardou com zêlo o ventre cada vez maior de sua
prometida, com olhar inquieto mas que, a esta altura, quase que com o
privilégio de um marido.

Ainda que possa
parecer – conforme o exemplo citado – que ele teve relações sexuais com Maria
após o seu parto, o seu desejo poderia ter desaparecido pelo fato dela já ter
concebido anteriormente. E, embora encontremos que foi dito a José em um sonho:
“Não temas em
receber Maria por tua esposa” e, de novo: “José
despertou do seu sono e fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a por sua
esposa”, não devemos nos preocupar com isto, pois ainda que seja chamada
“esposa”, ela somente deixou de ser prometida, pois sabemos que é
usual na Escritura dar esse título para aqueles que são noivos.

A seguinte
evidência, retirada do Deuteronômio, assim o indica: “Se um homem” –
diz o Escritor [sagrado] – “encontra uma mulher prometida no campo e a
violenta, deve ser morto porque humilhou a esposa do seu próximo”; e, em
outro lugar: “Se uma virgem é prometida a um marido, e um homem a encontra
na cidade e a violenta, então deveis trazê-los para fora do portão da cidade e
os apedrejareis até à morte; a mulher porque não gritou, estando na cidade, e o
homem porque humilhou a esposa do seu próximo. Fareis isto para eliminar o mal
do meio de vós”; e também, em outra parte: “Que tipo de homem é este
que possui uma esposa prometida e ainda não a recebeu? Que volte para sua casa,
para que não morra na batalha, e que outro homem a despose”.

Mas se alguém
guarda dúvidas do porquê a Virgem concebeu após estar prometida [a José], uma
vez que não estava prometida a mais ninguém, ou, para usar os termos da
Escritura, estava sem marido, deixe-me explicar três razões: [1ª] Pela
genealogia de José, Maria possuía parentesco com ele, e a origem de Maria
também precisava ser demonstrada; [2ª] Porque ela não poderia ser enquadrada na
Lei de Moisés para ser apedrejada como adúltera; [3ª] Porque em sua fuga para o
Egito ela precisava de segurança, o que poderia ser obtido com a ajuda de um
guardião, de preferência um marido.

Quem, naquele
tempo, acreditaria na palavra da Virgem, de que teria concebido pelo poder do
Espírito Santo, e que o anjo Gabriel lhe teria aparecido para anunciar o
propósito de Deus? Todos não a chamariam de adúltera, como fizeram com Suzana?
Ainda nos tempos presentes, quando praticamente toda a terra abraçou a Fé, não
vêm os judeus afirmar que as palavras de Isaías: “Eis que a ‘Virgem’
conceberá e dará à luz um filho” são equívocas porque o termo hebraico almah
que aparece na frase, significa mulher jovem, enquanto que o termo bethulah,
que significa virgem não é usado? Tal posição, abordaremos com mais detalhes
adiante.

Finalmente, com
exceção de José, Isabel e da própria Maria – e talvez de mais alguns poucos que
podemos supor ouviram a verdade da boca deles – todos supunham que Jesus era
filho de José. E de tal modo era essa a suposição que até mesmo os
Evangelistas, expressando a opinião corrente – que é a regra correta para
qualquer historiador – o chamavam de pai do Salvador, como, por exemplo: “Movido
pelo Espírito, ele (isto é, Simeão) veio ao Templo. Então os pais trouxeram o
menino Jesus para cumprir as prescrições da Lei a seu respeito”; e, em
outro lugar: “E seus pais iam todos os anos a Jerusalém por ocasião da
festa da Páscoa”; e, mais adiante: “Tendo completado os dias, eles
retornaram, mas o menino Jesus permaneceu em Jerusalém, e seus pais não sabiam
disso”.

Note-se que a
própria Maria respondeu ao [anjo] Gabriel com as seguintes palavras: “Como
se sucederá isso, se não conheço varão?”, dizendo isto a respeito de José;
e, mais: “Filho, por que fizeste isto conosco? Teu pai e eu estávamos à
tua procura”. Não fazemos uso aqui, como muitos fazem, do discurso dos
judeus ou dos escarnecedores. Os Evangelistas chamam José de “pai” e
Maria confessa que ele era pai. Não – como já disse antes – que José fosse
realmente o pai do Salvador, mas, preservando a reputação de Maria, todos o
viam como sendo o pai [de Jesus], pois ouvira a advertência do anjo: “José,
filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua esposa, pois o que
nela foi gerado provém do Espírito Santo”, pois pensava em repudiá-la em
segredo; tudo isto bem demonstrando que o filho não era dele.

Ao dizermos tudo
isto, mais com o objetivo de oferecer uma instrução imparcial do que responder
a um oponente, mostramos o porquê José era chamado de pai de Nosso Senhor e o
porquê Maria era chamada de esposa de José. Isto também responde ao porquê de
certas pessoas serem chamadas de “seus irmãos”.

» CAPÍTULO V

Entretanto, este
último ponto encontrará seu lugar apropriado mais adiante.

Vamos agora
abordar outros tópicos. A passagem que discutiremos agora é: “E José
despertou de seu sono e fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a como sua
esposa; e não a conheceu até que deu à luz a um filho, e ele lhe colocou o nome
de Jesus”. Aqui, antes de mais nada, é absolutamente inútil para o nosso
oponente querer demonstrar, de forma tão elaborada, que essas palavras se
referem à cópula sexual, especialmente na compreensão intelectual: qualquer um
pode negar isso e toda pessoa de bom senso pode imaginar a estupidez da
refutação que Helvídio se esforçou por sustentar. Ele quer nos ensinar que o
advérbio “até que” implica um tempo fixo e definitivo que, ao se
completar, ocorre o evento que até então não se realizara; como neste caso: “e
não a conheceu até que deu à luz um filho”.

Segundo ele, é
claro que ela [Maria] foi conhecida depois, e que apenas aguardara o tempo
necessário para o nascimento de seu filho. Para defender sua posição,
[Helvídio] amontoa textos e mais textos sem qualquer critério, comportando-se
como um gladiador cego que fica movimentando sua espada a esmo, dizendo
asneiras com sua língua barulhenta e terminando sem ferir ninguém, a não ser a
si próprio.

» CAPÍTULO VI

Nossa resposta é
brevemente esta: as palavras “conhecer” e “até que”, na
linguagem da Sagrada Escritura, possuem duplo significado. Do primeiro [quanto
a “conhecer”], ele mesmo [Helvídio] nos ofereceu uma dissertação para
mostrar que pode se referir a relação sexual, como também ninguém duvida que
pode ser usada para significar percepção (entendimento, saber), como, por
exemplo: “o menino Jesus permaneceu em Jerusalém e seus pais não tinham
conhecimento disso”.

Já que provamos
que ele seguiu o uso da Escritura neste caso, com relação à expressão “até
que” será completamente refutado pela autoridade da mesma Escritura, pois
várias vezes significa um certo tempo sem limitação, como quando Deus diz a
certas pessoas pela boca do profeta: “Até à vossa velhice Eu sou o
mesmo”; acaso Ele deixará de ser Deus após essas pessoas envelhecerem? E,
no Evangelho, o Salvador diz aos Apóstolos: “Estarei convosco até a
consumação do mundo”; será que quando chegar o fim dos tempos o Senhor
abandonará Seus discípulos e estes, quando estiverem sentados sobre os doze
tronos para julgar as doze tribos de Israel, estarão privados da companhia de
seu Senhor?

Também Paulo, ao
escrever aos Coríntios, declara: “[Cada um, porém, na sua ordem:] Cristo,
as primícias; depois os que são de Cristo, na sua vinda. Então virá o fim
quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio
e toda autoridade e todo poder. Pois é necessário que Ele reine até que haja
posto todos os inimigos debaixo de seus pés”. Certos de que a passagem
relata a natureza humana de Nosso Senhor, não temos como negar que as palavras
são Daquele que sofreu [morte] na cruz e que mais tarde se sentou à direita [de
Deus]. O que Ele quer demonstrar ao dizer que “é necessário que Ele reine
até que haja posto todos os inimigos debaixo de seus pés”? O Senhor
reinará apenas até colocar todos os seus inimigos sob os seus pés e, depois
disso, deixará de reinar? É óbvio que seu reino estará começando quando seus
inimigos estiverem sob os seus pés.

Também Davi, na
Quarta Canção da Ascensão, fala assim: “Olhai: assim como os olhos dos
servos olha para a mão de seu mestre; assim como os olhos da moça olham para a
mão de sua senhora; assim também os nossos olhos olham para o Senhor, nosso
Deus, até que tenha misericórdia de nós”. Será então que o profeta,
olhando para Deus com o intuito de obter misericórdia, irá desviar seu olhar
para o chão assim que obtiver misericórdia? [Certamente que não,] ainda que
ele, em algum lugar, diga: “Meus olhos quedam pela tua salvação e pela
palavra da tua justiça”.

Eu poderia
acrescentar inúmeras passagens como estas que, atestam esse uso, e cobriria com
uma nuvem de provas a verbosidade do nosso contendente. Porém, acrescentarei
mais algumas passagens e deixarei que o leitor descubra outras semelhantes por
si mesmo.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.