A sucessão de Pedro e o Papado – EB

Em síntese : O pastor Anibal Pereira dos Reis publicou em 1980 mais um livro polêmico, em que desta vez ataca o Papa e, de modo especial, a sucessão apostólica a partir de São Pedro.

Verifica-se, porém, que o referido autor não foi às fontes da história dos Papas, mas consultou manuais de história da Igreja editados nos últimos cem anos, guiado por preconceitos passionais.  É o que explica tenha visto problemas sucessórios onde não os há ou tenha exagerado, dificuldades que não são decisivas.

O presente artigo repassa os casos da história dos Papas apontados pelo Pastor Anibal, mostrando o que neles haja de vicissitudes humanas, vicissitudes, porém, que não impedem o historiador de discernir a sucessão apostólica ininterrupta desde Pedro até João Paulo II.  É esta a importante conclusão de todo este estudo.  A palavra de Jesus que prometeu a Pedro e aos Apóstolos e sua assistência indefectível até a consumação dos séculos (cf. Mt 16, 16-19; 28,19s), continua válida: aplica-se a João Paulo II e aos bispos de sua comunhão como legítimos sucessores do colégio apostólico chefiado por Pedro.

Quem observa a história do Papado e a da Igreja, tem motivos para corroborar a sua fé, pois o conhecimento do passado evidencia que é o Senhor Deus quem sustenta a Igreja, e não a virtude dos homens; mais convicta ainda se torna a consciência de que é o próprio Jesus Cristo quem está presente em sua Igreja e a conserva incólume Mestra da Verdade através das tormentas da história.

Comentário:  Em 1980 foi editado mais um livro polêmico, intitulado “Cartas ao Papa” João Paulo II, da lavra do pastor Anibal Pereira dos Reis.  Este opúsculo, redigido em estilo sarcástico, impugna a legitimidade da autoridade papal.  Para tanto, recorre a afirmações não comprovadas, a fontes pouco abalizadas e a interpretações distorcidas dos fatos.  Um autor que cultive realmente a ciência, não usa tal estilo nem tal método, pois são passionais e não se atêm à objetividade do discurso autenticamente científico.  Como quer que seja, o livro do pastor Anibal pode impressionar leitores despreparados… Eis por que lhe daremos atenção.

O autor contesta a autoridade de Pedro e o seu sepultamento em Roma o que já foi estudado em PR 252/1980, pp. 487-499; consequentemente, impugna a autoridade dos sucessores de Pedro, tentando mostrar que a sucessão dos Papas através dos séculos é obscura a ponto de haver contradições entre os próprios autores católicos.  Nas páginas subsequentes, voltar-nos-emos para a história do Papado a fim de elucidar os pontos indicados pelo pastor Anibal e evidenciar a continuidade das funções de Pedro por entre os altos e baixos que a história dos homens não pode deixar de apresentar.

Os percalços da história

O pastor Anibal Pereira dos Reis apresenta um quadro muito confuso da história do Papado.  Cita autores de manuais da história da Igreja como Capelli, Seppelt-Loeffler, Pastor, Lorenz, H. Bruck, todos autores dos últimos cem anos… Anibal Pereira dos Reis não pesquisou fontes antigas, para poder penetrar melhor a matéria, de modo que a sua explanação não pode deixar de ser superficial e pré-científica.

Procurando considerar com objetividade serena o assunto, observamos que a história do Papado, como, aliás, freqüentemente a história geral, não pode deixar de ter os seus pontos obscuros. E isto, no caso do Papado, por quatro principais motivos:

Deficiência de fontes e cronistas na antiguidade

As primeiras tentativas de reconstituir a linha sucessória dos Papas datam do século II e devem-se respectivamente aos escritores Hegesipo (151-166) e S. Ireneu (177-178).  Ambos foram a Roma para consultar diretamente as fontes da história1.

O trabalho de Hegesipo chegou-nos em estado fragmentário (inserido na Historia Ecclesiastica de Eusébio de Cesaréia V 22,3), ao passo que o de S. Ireneu foi conservado integralmente (ib. V. 6,24-29; Adversus Haereses III 3), mas sem dados cronológicos; a lista dos Papas confeccionada por S. Ireneu é o documento mais abalizado que tenhamos no tocante aos primórdios do Papado; começa com Pedro, Lino, Cleto e estende-se até S. Eleutério (175-189).

Acontece que, no decorrer dos séculos, cronistas e historiadores tentaram estabelecer a lista dos Papas da antigüidade, mas às vezes de maneira pouco científica, comparando a cronologia dos Papas com as de Imperadores e cônsules.  Numerosas são as tabelas daí oriundas.  Os críticos têm procurado fazer a triagem de tais documentos, de modo a oferecer ao estudioso contemporâneo a autêntica imagem da história do Papado.

Erros e incertezas da crônica

Dentre as deficiências cronográficas, merecem especial relevo as seguintes:

por vezes, os cronistas inseriram nos catálogos dos Papas nomes de pessoas que nunca existiram; assim Dono II1,  que teria governado em 972 ou 974; por sua vez, o Papista Joana nunca existiu, mas foi introduzida no catálogo dos Papas em lugares diferentes (o que bem mostra que se trata de ficção; cf. PR 141/1971, pp. 411-418);

a numeração dos Papas nem sempre procedeu exatamente.  Assim o Papa João XV (985-996) em algumas listas foi considerado João XVI, pois erroneamente se colocou antes do mesmo um fictício João XV; em conseqüência, a numeração dos Papas subseqüentes de nome João foi aumentada de uma unidade até João XVIII.  Nesta série, João XVI foi antipapa, como se verá adiante; não obstante, foi João XVI computado, por erro, entre os Papas legítimos … Não houve Papa de nome João XX;

a escrita de determinados nomes oscilou, de modo que um Papa pode aparecer duas vezes num catálogo com nomes semelhantes: tal é o caso de Cleto e Analeto2 e de Marcelo e Marcelino; provavelmente trata-se apenas dos Papas S. Anacleto ou Cleto (76-88 ou 79-91) e S. Marcelino (296-304);

quando era escolhido Papa um diácono nos primeiros séculos, este devia receber a ordenação episcopal; sem esta o cleito não poderia ser considerado Papa.  Ora Estêvão II foi eleito entre 16 e 23/03/752; faleceu, porém, dois dias após a eleição, sem ter sido ordenado bispo, de modo que juridicamente não é Papa; não obstante, por alguns cronistas medievais foi considerado como Papa Estêvão II: visto que fora eleito.  O seguinte Estêvão toma ora o número II, ora o número III (752-757), de mais a mais que sucedeu sem intermediário a Estevão (II).

Ingerência de Imperadores e famílias nobres

Desde que o Imperador Constantino concedeu a paz aos cristãos (313), o poder imperial foi assumindo funções de tutela em relação à Igreja até chegar ao exercício do Cesaropapismo (cf. Justiniano I, 527-565).  Além disto, as famílias nobres de Roma e dos arredores também se imiscuíram na escolha dos bispos de Roma, procurando favorecer seus interesses particulares e políticos.  Disto resultou que pessoas não qualificadas foram colocadas sobre a sé de Pedro, às vezes em pontificados breves e tumultuados; resultou também que os Imperadores promoveram a eleição de seu Papa próprio (= antipapa) em oposição ao legítimo Pontífice.  Assim, por exemplo, o Imperador Oto I, no Sínodo de Roma de 4/12/1963, depôs o Papa João XII e ocasionou a eleição de Leão VIII.  Este foi antipapa, visto que nenhum Imperador tem autoridade para depor um Papa; somente depois que faleceu João XII (964), a sé papal tornou-se vacante, sendo então eleito como legítimo Pontífice Bento V.  Todavia há catálogos antigos que erroneamente consignam João XII, Leão VIII e Bento V como Papas legítimos!

Outro motivo de percalços na história do Papado é a fraqueza de clérigos;

Houve, sem dúvida, clérigos cobiçosos que disputaram a ascensão à cátedra de Pedro, provocando agitação e quadros sombrios na linhagem dos Papas.  A verificação da fragilidade humana não surpreende o cristão; este sabe que, desde Abraão, Isaque e Jacó, o Senhor  se dignou escolher os instrumentos humanamente mais fracos para realizar o seu sábio plano de salvação.  Ao verificar isto, São Paulo diz: “É na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder … Por isto eu me comprazo nas fraquezas nas necessidades, pois quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,9s).

Uma vez expostas as causas de dificuldades que o historiador encontra para reconstituir a história do Papado, compete-nos deter-nos mais atentamente sobre o que seja um antipapa.

Antipapa

Exporemos as maneiras como se pode originar um Antipapa; a seguir, examinaremos alguns casos particulares.

Como (…)?

Como diz o nome, Antipapa é alguém que se opõe ao Papa legítimo trazendo falsamente o título de Papa; trata-se de um usurpador, eleito (às vezes de boa fé) em condições ilegítimas.  Atribuindo a si a autoridade de Papa, cria um estado de cisma entre os fiéis.  O primeiro Antipapa que se conheça, é Hipólito Romano (217-235) e o último vem a ser Félix V (1439-1449); a respeito de um e outro dir-se-á uma palavra oportunamente.

O número de antipapas oscila, pois os estudiosos seguem critérios diferentes para definir se tal ou tal figura foi ou não antipapa.  Os historiadores protestantes, por exemplo, julgam vacante a sede papal se o respectivo titular é deposto por motivos políticos; ao contrário, os católicos afirmam que não há poder imperial nem eclesial habilitado a destituir um Pontífice1 e estipulam os seguintes critérios para distinguir um Papa legítimo de um antipapa:

1) esteja a sede papal vacante por ocasião da eleição ou da ascensão do Pontífice à mesma;  ora a vacância só ocorre por morte ou por renúncia do legítimo titular; fora destes casos, a sede papal não pode ser ocupada por quem quer que seja;

2) os legítimos eleitores do futuro Papa desempenhem as suas funções com plena liberdade.  No caso de terem efetuado uma eleição de validade dúbia ou nula, requer-se um ato público que sane os vícios da eleição realizada.  Foi o que se deu no caso do Papa Vigílio.  O Papa S. Silvério (536-537) fora indevidamente deposto pelo general Belisário; a facção deste procedeu então à escolha do diácono Vigílio para ser o “Papa”, mas invalidamente.  Morto Silvério, Vigílio foi reconhecido publicamente como Papa legítimo (11/11/537); não foi Papa senão após a morte de Silvério;

3) Cumpram-se exatamente as prescrições canônicas vigentes para a eleição de um Papa.  Tais normas têm variado de época para época, tendendo a se tornar cada vez mais rígidas, a fim de se evitar a intrusão de facções políticas.

Os antipapas tiveram origem freqüentemente pelo fato de os Imperadores e famílias nobres intervirem na escolha do Pontífice.

A primeira intervenção imperial em favor de um antipapa foi a de Constâncio (337-361) em prol de Félix II; o monarca, tendo-se imiscuído na controvérsia ariana1,  exilou o Papa Libério (351-366), que defendia a reta doutrina (o Credo de Nicéia); em conseqüência, no ano de 355 o diácono de Roma Félix aceitou ser ordenado bispo, como se lhe fosse lícito substituir Libério, o bispo de Roma; voltaremos ao assunto à p. 123. Por causa da confusão dos cronistas, o seguinte Papa Félix (483-492) foi tido como o terceiro, e não o segundo, deste nome2.  As intervenções na Idade Média desde Oto I (936-973) a Frederico I Barba-roxa (1152-1190).

A partir de antipapa Constantino (767-768) até Anacleto II (1130-1138) a ascensão de antipapas foi promovida freqüentemente também pelas famílias romanas interessadas em colocar parentes sobre a cátedra de Pedro.

Examinaremos alguns casos de antipapas mencionados especialmente pelo pastor Aníbal dos Reis.

Casos especiais

Hipólito de Roma

Hipólito aparece em Roma no fim do século II como personagem erudito e, ao mesmo tempo, polemista; combatia as heresias que sob o pontificado do Papa Vitor (189-199) perturbavam a comunidade de Roma.

O Papa Zeferino (199-217) parecia a Hipólito demasiado indulgente para com os cristãos indisciplinados.  Quando  a este sucedeu Calisto (217-222), Hipólito se separou da comunhão da Igreja, dando origem a uma facção cismática, da qual eleera o bispo.  Tornou-se assim o primeiro antipapa, persistindo nesta atitude ainda sob os pontificados de Urbano I (222-230) e Ponciano (230-235).  Tal situação acabou quando o Imperador Maximino Trace publicou um edito de perseguição que atingia principalmente os pastores da Igreja: então Ponciano e Hipólito foram deportados para a ilha “nociva”, a Sardenha; Hipólito reconciliou-se com o Papa Ponciano e a Igreja no exílio; ambos sofreram o martírio pela fé.

Assim se explica que Hipólito tenha sido antipapa e seja tido como santo.  Ele só foi santo por ter deixado de ser antipapa e haver aderido a Cristo na única Igreja, cujo pastor supremo é o bispo de Roma.  Os santos podem ter atravessado fases de vida censuráveis.

Os “Félix”

Há três Papas legítimos de nome Félix e dois ilegítimos ou antipapas.  A numeração é contínua de I a V, não porque se devam equiparar entre si os autênticos e os falsos Pontífices, mas porque as circunstâncias da época em que viveu Félix II não permitiram aos cristãos discernir entre verdadeiro e falso sucessor de São Pedro.  Hoje, ao ler tal numeração, o cristão reconhece o significado relativo da mesma, sabendo que não é o título nem a numeração que faz de um antipapa um autêntico Pontífice.  Percorramos sumariamente a seqüência dos cinco Félix:

1) Félix I, Papa, governou de 269 a 274.  Deixou uma carta ao clero de Alexandria, na qual afirma a unicidade da pessoa de Jesus Cristo, tema debatido no século III.

2) Félix II, antipapa.  Era arquidiácono em Roma.  O arianismo (heresia que negava a divindade de Cristo) era então favorecido pelo Imperador Constâncio (337-361), que em conseqüência exilou o Papa Libério.  Então Félix, embora tivesse prometido fidelidade ao Pontífice, permitiu que o ordenassem bispo de Roma.  A cerimônia realizou-se no palácio imperial, em presença de poucos funcionários.  O povo de Roma não quis reconhecer o antipapa nem freqüentava as igrejas em que pontificava. Em 358, quando Libério voltou do exílio, o Imperador quis que Libério e Félix governassem conjuntamente a Igreja.  O povo se rebelou e levou Félix a deixar a cidade de Roma.  Pouco depois, Félix tentou tomar a brasílica Iulii no Trastevere para oficiar, mas o povo o obrigou a sair de novo.  Retirou-se então de Roma e morreu junto à Via Portuense em 22/11/365.

No início do século VI os acontecimentos do século IV não eram claros aos cronistas, de modo que Félix foi considerado Papa legítimo e identificado com um mártir do mesmo nome sepultado junto à Via Portuense; por isto passou a ser recordado no Martirológio Jeronimiano aos 9 de julho. – Está claro, porém, que Félix não foi nem Papa legítimo nem mártir.

Félix III, Papa, governou de 483 a 492.

Félix IV, Papa, pontificou de 526 a 530.

Félix V, antipapa, foi eleito “Papa” (= antipapa) nos tempos do Papa Eugênio IV (1431-1447).  Em 1439, o cardeal de Arles e 32 eleitores (dois quais apenas onze eram bispos), reunidos em Brasília, escolheram o duque Amadeu VIII de Savoia para chefiar uma facção oposta à Santa Sé.  Os eleitores pretendiam continuar assim a ação de um Concílio que, iniciado em Brasiléia (Suíça), fora transferido pelo Papa legítimo Eugênio IV para Ferrara (Itália) em 1438;  a facção que permaneceu em Basiléia, não aceitara a transferência do Concílio.  O antipapa tomou o nome de Félix V, e foi residir em Lausannne (Suíça).  Em 1449 renunciou, vindo a morrer em 1451 reconciliado com a Igreja e o Papado. – Como já foi dito, Félix V é o último antipapa da história.

Cristóvão

Contra o Papa Leão V (903-904) insurgiu-se o cidadão romano Cristóvão em setembro de 903.  Deteve a sede papal durante quatro meses, ou seja, até janeiro de 904.  Não há como atribuir foros de autenticidade ao seu comportamento.

Leão VIII

O imperador Oto I (936-973) da Germânia opunha-se ao Papa legítimo João XII por motivos políticos.  Foi então a Roma, convocou um Sínodo local, para o qual chamou o Papa João XII (4/12/963).  Este tendo-se recusado a comparecer, o Imperador fez eleger como antipapa um leigo, ao qual foram conferidas todas as ordens sagradas e o título de Papa Leão VIII; este devia ser pessoa de costumes dignos, mas fora ilegitimamente eleito, já que a Sé papal não estava vacante.  A população de Roma permaneceu fiel ao Papa João XII, de modo que em janeiro de 964 houve uma revolta em Roma, durante a qual Leão VIII sofreu um atentado.  João XII, que deixara a cidade, aproveitou a ocasião para voltar a Roma; um Sínodo reunido em Roma declarou nula a eleição de Leão VIII no ano de 965.

João XVI

João Filagato era de origem grega, nascido na Calábria. Tornou-se bispo de Pavia.  O Imperador Oto III enviou-o a Constantinopla como legado seu.  Quando voltou do Oriente para Roma, na ausência do Imperador, a facção dos Crescêncios, que dominava Roma, o proclamou Papa, talvez à revelia do próprio Filagato, que tomou o nome de João XVI em abril de 997.  Era então Papa legítimo Gregório V (996-999); este teve que fugir de Roma, embora gozasse de apoio do Imperador, Quando este retornou a Roma, depôs João XVI e o relegou para um mosteiro.  Como se vê, trata-se de um antipapa devido à ingerência de interesses estranhos aos da Igreja.

Bento IX

Teofilato era o filho de Alberico III da família dos condes de Túsculo, e sobrinho dos dois últimos Papas Bento VIII (1012-24) e João XIX (1024-32).  Quando morreu este último, o pai impôs aos leitores a pessoa de Teofilato, que em 1032 foi eleito Papa com o nome de Bento IX.  Este tinha entre vinte e cinco e trinta anos de idade e se achava totalmente despreparado para tão elevado mister.  Levou vida mais semelhante à de um senhor deste mundo do que à de um Papa.  Em 1045 os romanos elegeram, como antipapa, Silvestre III, que durou apenas cinqüenta dias.  Diante do mal-estar reinante em Roma, Bento IX, resolveu renunciar ao Papado a 1º/05/1045.  Em seu lugar foi eleito o presbítero João Graciano, com o nome de Gregório VI (1045-1046).  Um Sínodo em Sutri, orientado pelo Imperador Henrique III, declarou depostos o Antipapa Silvestre III e o Papa Gregório VI (20/12/1046).  Outro Sínodo reunido em Roma aos 24/12/1046 depôs Bento IX (que já renunciara havia muito) e elegeu Clemente II. Quando este morreu (19/10/1047), Bento voltou a Roma e usurpou a cátedra de Pedro de 8/11/1047 a 16/07/1048, quando as forças do Imperador o obrigaram a ceder a sede a Dámaso II; este governou apenas três semanas, pois faleceu aos 9/08/1048. – Quanto  a Bento IX, ainda viveu até 1055 ou 1056; há quem diga que se arrependeu e terminou os dias no mosteiro de Grottaberrata, como há (como São Pedro Damião) quem afirme o contrário.

São estes fatos que explicam seja Bento IX nomeado duas vezes nas listas dos Pontífices Romanos; somente a primeira referência é legítima; a Segunda estada na cátedra de Pedro foi ilícita ou usurpatória.

Silvestre III

O pontificado de Bento IX (1022-1045) foi assaz autoritário.  Em conseqüência, os romanos elegeram antipapa em janeiro de 1045 o bispo João, da cidade de Sabina, que tomou o nome de Silvestre III.  Pouca coisa se sabe a respeito deste prelado; o Concílio de Sutri, apoiado pelo Imperador Henrique III, o declarou deposto em 1046; na verdade, Silvestre III só foi antipapa de 20/01/1045 a 10/03/1045.

Bento X

O Papa Estêvão IX (1057-1058), antes de morrer, induziu o clero e o povo romanos a jurar que não procederiam à eleição de novo Papa antes da volta do diácono Hildebrando, que estava na Alemanha e defendia a Igreja contra a prepotência dos nobres.  Todavia, após a morte de Estêvão IX (29/03/1058), a aristocracia romana rompeu o juramento e escolheu João Mincio, bispo de Velletri, para ser o Papa (antipapa) Bento X (5/04/1058).  A eleição foi ilegítima, porque não realizada pelo colégio eleitoral devidamente convocado e presente.  Quando Hildebrando voltou da Alemanha, reuniu em Sena os cardeais, os representantes do clero e do povo num Sínodo que elegeu Garardo, bispo de Florença, o qual tomou o nome de Nicolau II (1059-1061).  Pouco depois um Concílio em Sutri declarou Bento X perjuro e intruso, confirmando Nicolau II na cátedra de Pedro.  O governo do antipapa durara dez meses (5/04/1058-24/01/1059).

Bento X deixou Roma em janeiro de 1059.  Morreu durante o pontificado de Gregório VI (1073-85), que, por magnanimidade, quis tivesse funerais honrosos.  Por isto, durante muito tempo Bento X foi tido como Papa legítimo e foi incluído no catálogo dos Papas; em conseqüência, o Cardeal Nicolau Boccasini, eleito Papa em 1303, se chamou Bento XI, e não Bento X; na verdade, como foi demonstrado, Bento X foi antipapa e não deve figurar na lista dos Pontífices Romanos.

Alexandre II e Alexandre V.  O Grande Cisma do Ocidente

A respeito de Alexandre II não resta dúvida de que foi legitimamente eleito após a morte de Nicolau II (1061) e governou legalmente até a morte em 1073.  Viveu num período em que a Igreja lutava para se libertar da intervenção do poder dos reis e dos príncipes.  Ora, como Alexandre II fosse homem austero e adepto da renovação da Igreja, a sua eleição não agradou aos nobres de Roma e ao Imperador da Alemanha; em conseqüência, estes promoveram em 1061 a eleição de Cádalo, bispo de Parma, que se tornou o antipapa Honório II (1061-1072); o poder imperial tudo fez para apoiar Honório contra Alexandre; todavia isto não invalida a posição de Alexandre nem legítima a de Honório II.

Quanto a Alexandre V, faz-se mister colocá-lo no contexto do Grande Cisma do Ocidente.

Desde os tempos do rei Filipe IV o Belo (1285-1314), da França, este país foi exercendo certa ascendência sobre o Papado.  Este chegou a transferir a sua sede para Avinhão na França de 1309 a 1377.  Quando, após o chamado “exílio de Avinhão”, o Papa Gregório XI morreu em Roma aos 27/03/1378, os Cardeais procederam à eleição de Urbano VI (1378-89), Papa legítimo nativo de Nápoles; todavia os monarcas da França e de Nápoles, descontentes pelo fato de ser o Pontífice italiano e não francês, incentivaram treze Cardeais a proceder a nova eleição em Fondi (reino de Nápolis), da qual resultou o antipapa Clemente VII (1378-94), que era francês, primo do rei da França, e foi residir em Avinhão.  Instaurou-se assim um cisma de grande vulto no Ocidente cristão (1378-1417); os monarcas aderiam a um ou outro dos pastores em causa, segundo seus interesses particulares, deixando os fiéis muitas vezes perplexos.  A situação de cisma foi-se protraindo, até que em Pisa um grupo de Cardeais de ambas as obediências reunidos em 1409 houve por bem declarar depostos os dois Pontífices (o antipapa e o Papa) e elegeram, para assumir a cátedra de Pedro, o franciscano de origem grega Pedro Filargo, que tomou o nome de Alexandre V (1409-1410).  Evidentemente esta eleição foi ilegítima, pois nenhum Concílio tem autoridade sobre o Papa legítimo, que, no caso, era Gregório XII< sucessor de Urbano VI.

Havendo três obediências na Igreja – a de Roma, a de Avinhão e a de Pisa -, os cristãos não viam como resolver o impasse, de mais a mais que isto não poderia ser feito mediante a deposição do Papa legítimo por parte de um Concílio.

O Espírito de Deus manifestou então sua presença providente na Igreja.  Com efeito.  O rei Sigismundo da Alemanha quis promover a celebração de um Concílio ecumênico em Constança para pôr termo ao cisma; o Concíílio, embora não legitimamente convocado pelo Imperador, reuniu-se em 1414 na cidade de Constança; o antipapa João XXIII, sucessor de Alexandre V, lá compareceu, certo de que seria confirmado Papa pelo Concílio; ora isto não se deu, pois foi tido como usurpador e assim constrangido a fugir; foi deposto finalmente e perdeu toda autoridade.  O Papa legítimo Gregório XII, em Roma, já tinha noventa anos de idade.  Pediu então aos padres conciliares que aceitassem ser por ele convocados e habilitados a agir conciliarmente; tendo os conciliares aceito tal delegação da parte do Papa legítimo, constituíram uma autêntica assembléia da Igreja universal; Gregório XII, a seguir, aos 4/07/1415, renunciou ao Papado, deixando a sede vacante para que os conciliares pudessem proceder à eleição de novo Papa.  Quanto a Bento XIII, o antipapa de Avinhão, já estava idoso e perdera muito do seu prestígio; os seus seguidores o abandonavam aos poucos.  O Concílio declarou-o ilegítimo.  Estava assim o caminho aplainado para a eleição de novo Papa.  Este foi o Cardeal Odo Colonna, que tomou o nome de Martinho V aos 11/11/1417.  Assim terminou a terrível situação de cisma na Igreja sem derrogação ao primado do Romano Pontífice e sem quebra da sucessão apostólica.  Embora os cristãos se tenham sentido perplexos durante os decênios do cisma, o Espírito Santo guiou a Igreja para que a linhagem de Pedro ficasse incólume através da borrasca.

É de notar que, após Martinho V, a sucessão dos Papas prossegue sem dúvidas nem motivo de hesitação para o historiador.

Martinho IV e Inocêncio XIII

Aníbal Pereira dos Reis cita ainda Martinho IV (1281-85) e Inocêncio XIII (1721-1724) como Papas discutidos ou não admitidos por todos os autores.  Na verdade, nenhuma dúvida existe a respeito da legitimidade do pontificado de um e outro desses Papas, que constam de toda lista de Papas criteriosamente confeccionada.

São estas algumas observações que os quesitos lançados pelo pastor Aníbal Pereira dos Reis tornavam necessárias.  O fato de que a numeração dos Papas do mesmo nome ora inclua os antipapas, ora os exclua, não quer dizer que estão assim legitimados aqueles que foram antipapas; por exemplo, o fato de que Alexandre VI (1492-1503) não repetiu o número V, pois Alexandre V foi antipapa, não significa que Alexandre V tenha sido legítimo ou haja sido reconhecido como tal.  Não é o nome nem o número que faz um Papa; a história, sendo obra da liberdade humana, nem sempre segue as estritas regras da lógica ou do cálculo, mas também nem por isto é incompreensível ou indecifrável.

Para escrever a história do Papado

Por último, ainda em vista do opúsculo do pastor Aníbal, importa observar que, se alguém deseja escrever em termos sérios e científicos a história do Papado (ainda que seja para criticá-la), deve recorrer aos documentos-fontes e não a manuais escolares, que são geralmente obras de Segunda mão, derivados das fontes.  Quem lê a bibliografia citada pelo pastor Aníbal à p. 66 do opúsculo, verifica que está longe das fontes da história; por isto, as ponderações do autor polemista carecem de autoridade científica.

Para escrever autêntica história do Papado, portanto, o estudioso há de recorrer aos seguintes documentários:

1) Chronicon e História Ecclesiastica de Eusébio de Cesaréia (+ 340), Patrologia Latina, ed. Migne, t. 19-24.

2) Liber Pontificalis, que, em seu núcleo originário, se deve provavelmente ao Papa São Dámaso I (366-384) e que foi sendo sucessivamente complementado no decorrer dos séculos; foi editado em termos críticos e científicos por Louis Duchesne.

3) Chronicon Pontificum et Imperatorum, de Martinho de Tropau O. P. (+ 1278).  A terceira edição desta obra vai até Nicolau II (1277-1280).  Cf. ed. L. Welland, em Monumenta Germanie Historica, Scriptoros XXII, pp. 327-345;

4) Liber de Vita Christi ae omnium Pontificum, de Platina.  Editio Princeps, Venetiis 1479.

5) Epitome Pontificum Romanorum a S. Pedro usque ad Paulum III.  Gestorum electionis singulorum et conclavium compandiaria narratio, de O. Panvínio, Roma 1557.

6) Annales de Barônio, Roma 1588.  A cronografia de Barônio, que vai até 1198, foi reconhecida por quase todos os historiadores até o século passado.

7) Conatus chronologico-historicus ad universam seriem Romanorum Pontificum de Daniel Papebroch.

8) Mémoires, de Tillemont, Paris 1693-1712.

9) Chronologia Romanorum Pontificum in pariete australi basilicae S. Pauli Viae Ostiensis depicta saee. V seu aetate S. Leonis Pp. Magni cum additione reliquorum Summorum Pontificum nostra ad hace tempora perducta, de G. Marangoni, Roma 1751.

10) Regesta Pontificum, de Jaffé até 1198, e de Potthast até 1304.

11) Hierarchia Catholica, de Eubel, de 1198 em diante.

No século XX são três os autores que mais autoridade possuem no tocante à cronografia dos Papas: Duchesne, Ehrie e Mercati.  Ora Aníbal P. dos Reis parece ter ficado à distância destes mananciais de historiografia.

Conclusão

Verifica-se que a história do Papado esteve sujeita às vicissitudes da fraqueza humana, que lhe deram uma face por vezes opaca.  Isto, porém, não decepciona o fiel cristão por dois motivos:

1) É o Senhor Jesus quem sustenta a sua Igreja, e não a habilidade ou a santidade dos homens que a governam.  Essa sua assistência indefectível, Jesus a prometeu não aos mais santos ou aos mais eruditos dos pastores da Igreja, mas a Pedro e a todos os que legitimamente sucedem a Pedro e aos demais Apóstolos.  Com efeito, além de Mt 16, 16-19, importa citar

Mt 28,19s: “Ide, e fazei que todas as nações se tornem discípulos … Eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos”.

Por conseguinte, o que dá ao cristão a garantia de estar sendo guiado por Cristo mediante os legítimos pastores é a adesão aos sucessores de Pedro e dos Apóstolos, independentemente das vicissitudes por que passou a Sé Apostólica.

2) É certo que a sucessão apostólica se vem mantendo na Igreja Católica.  As fases sombrias e complexas da história do Papado – que são inegáveis – não chegaram a causar a quebra da linhagem papal.

O fato de que as listas de Papas confeccionadas pelos historiadores enumerem dois ou três nomes a mais ou a menos, se explica pelos motivos atrás indicados (dois nome semelhantes foram atribuídos ao mesmo Pontífice, contou-se cá ou lá algum antipapa, que não devia ser considerado …); não implica perda da linha sucessória, mas elucida-se e entende-se pela reconstituição dos fatos históricos caso por caso.

3) Quem com objetividade estuda a história do Papado e a da Igreja, encontra especial motivo para ter fé ainda mais ardente, pois verifica de maneira quase palpável a presença e a ação do Espírito Santo na Igreja.  Se Esta é hoje o grande baluarte da paz e da concórdia entre os povos apesar das tormentas por que passou, a Igreja é de origem divina e não humana, pois nenhuma obra meramente humana teria atravessado os séculos guardando a sua plena vitalidade, como a Igreja.

A Deus deem-se graças por causa mesmo dessa história da Igreja!

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1 Sabe-se que o Papa é sempre o bispo de Roma, visto que é o sucessor de São Pedro, martirizado como bispo de Roma.

1 Deformação de Domnus (= Senhor) ou Bonus (= bom).

2 Kletos, em grego, quer dizer chamado.  Ana-kletos é aquele que é chamado de novo ou para cima.

1 “Prima sedes a nemine iudicatur (a sé primacial por nenhuma instância é julgada)”, afirma um princípio do antigo Direito da Igreja ainda hoje incluído no Código de Direito Canônico.

1 Referente à Divindade de Jesus Cristo.

2 O Papa Félix I governou de 269 a 274, como legítimo Pontífice.

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 255 – Ano : 1981 – p. 116

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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