A sociedade precisa do L´Osservatore Romano

Volume com 100 editoriais de L’Osservatore Romano é lançado em Milão

Milão, segunda-feira, 16 de abril de 2012 (ZENIT.org) – Um fato histórico despertou de forma particular a minha curiosidade ao considerar a publicação que está sendo apresentada, e, antes ainda, o volume Singularíssimo jornal: os 150 anos de L’Osservatore Romano, um marco precioso para melhor compreendermos a riqueza desta seleção de cem editoriais “publicados nos últimos quatro anos, ou seja, desde que o número de 28 de outubro de 2007 deu início à atual renovação do jornal”.

Trata-se do vínculo singular que unia Giovanni Battista Montini, antes, e Paulo VI, depois, a L’Osservatore Romano. Nem poderia ser de outra forma, com a sensibilidade cultural e o olhar verdadeiramente católico que, desde o início do seu caminho sacerdotal, caracterizaram o jovem monsenhor bresciano.

Valeria a pena reler o texto citado pelo atual diretor, Giovanni Maria Vian, na introdução ao volume. Refiro-me ao artigo As dificuldades do Osservatore Romano, publicado em 1º de julho de 1961, na edição especial do centenário da fundação, pelo então arcebispo de Milão. É um texto notável, muito agudo, de grande atualidade, que eu recomendo vivamente.

Mas quero me referir também a outro texto de Montini, que, de um ponto de vista diferente, sugere, a meu ver, uma perspectiva adequada para entendermos a singularidade da contribuição que o Osservatore Romano oferece mais do que nunca à sociedade de hoje.

É um pequeno escrito, publicado em 1946, no final da Segunda Guerra Mundial, como introdução a uma enorme obra de apresentação do Estado da Cidade do Vaticano [1]. Embora os responsáveis pelo noticiário do Instituto Paulo VI tenham querido colocá-lo no mesmo caderno e imediatamente antes do artigo acima mencionado, no texto em questão não aparece uma referência explícita ao Osservatore Romano; descrevendo as peculiaridades do Vaticano, ele nos ajuda, porém, a compreender a contribuição específica do jornal, que também podemos inferir da leitura dos editoriais.

Com prosa refinada e elegante, Montini aborda diretamente o leitor visitante do Estados pontifício, procurando situá-lo diante da singularidade do que ele vê: “Quem quer que sejas (…), ao te aproximares da monumental basílica de São Pedro e dos edifícios solenes do entorno, não poderás escapar de uma questão espontânea e imperiosa: que interesse tem o Vaticano para nós hoje?”[2]. Ele conclui que, perante o Vaticano, não é possível permanecer indiferente: “Observar e definir: aqui está, talvez, a diferença psicológica entre a visita à Cidade do Vaticano e a visita a qualquer outro grande monumento da antiguidade, como o Foro Romano, as Pirâmides, o Partenon, as ruínas de Nínive ou a civilização dos Incas. Para aqueles, basta observar; aqui, é preciso também definir. Há algo aqui de sobrevivente, de presente, que merece um juízo, que requer um encontro, que impõe uma reflexão, um esforço interior, uma síntese espiritual”[3].

Será que L’Osservatore Romano não impulsiona os leitores a esse definir-se, a essa necessidade de julgar, a este encontro, a esta reflexão, a esse, em palavras de Montini, segundo a linguagem própria do tempo, esforço interior e síntese espiritual? Parece-me que a proposta cultural, no sentido próprio do termo, como expressão do humanum, oferecida diariamente pelo Osservatore, estimula todos a um trabalho desse tipo.

Nas palavras do então cardeal Ratzinger, poderíamos dizer que o Osservatore, e, obviamente, os seus editoriais, de modo emblemático, são expressões do que significa o fato de que a fé gera cultura. O então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé dizia numa célebre lectio às conferências episcopais asiáticas: “Não existe a fé nua ou a pura religião. Em termos concretos, quando a fé diz ao homem quem ele é e como ele deve começar a ser homem, então a fé cria cultura. A fé, ela própria, é cultura” [4].

Convém agregar uma consideração importante sobre a ligação entre fé e cultura(s). A partir do momento em que a fé se torna cultura, ela fica inevitavelmente exposta a outro processo singular, caracterizado, em certo sentido, por um movimento oposto ao primeiro. Se o movimento fé-cultura é centrífugo, isto vem de como as culturas interpretam de fato a fé que se desdobra em toda a sua dimensão pública, um movimento centrípeto.

As culturas, porque devemos falar de culturas em uma sociedade plural como a nossa, “interpretam” a fé, demonstrando assim a sua relevância histórica. Elas o fazem de várias maneiras, nem sempre respeitando a sua natureza verdadeira, e muitas vezes reduzindo-a ou mesmo instrumentalizando-a, como acontece tão dolorosamente nos fundamentalismos intregristas, não raro violentos.

Entre a fé e a cultura é criado um certo círculo hermenêutico: continuamente, da fé à(s) cultura(s) e da(s) cultura(s) à fé. Este círculo é englobado naquele maior, mas apresenta o mesmo movimento duplo centrífugo-centrípeto, próprio do binômio evangelização-inculturação, destacado na Evangelii nuntiandi (cf. EN 20).

Parece-me que o valor dos editoriais, e, mais em geral, da nova fase do Osservatore Romano, é o de colocá-los de forma adequada dentro deste grande desafio proposto pelo círculo fé-cultura(s) para ajudar o leitor, espalhado por todo o mundo, a viver uma autêntica experiência eclesial.

O internacional, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, os grandes temas da bioética e da ciência, da economia, bem como o recurso a colaboradores curiosos do mundo, representantes de outras confissões e religiões, ou leigos, com um peso especial dado às mulheres, são elementos identificadores dos traços que, sem eliminar o aspecto bem definido de oficialidade e de autoridade do Osservatore Romano, o tornam uma ferramenta valiosa do necessário narrar-se e deixar-se narrar, inevitavelmente necessário para uma sociedade plural, a fim de que ela consiga o máximo reconhecimento mútuo.

No citado artigo de Montini, o futuro arcebispo de Milão e papa falava, entre outras coisas, sobre “os direitos de Deus e da consciência humana” [5]. A fórmula “os direitos de Deus e da consciência humana” evoca os dois lemas do Osservatore: um religioso (non praevalebunt) e outro “leigo” (unicuique suum), como que tratando da unidade entre Deus e o homem na promoção da verdade e do bem da comunidade humana.

A expressão de Montini, que quer descrever o dever pastoral do sucessor de Pedro, antecipa de modo profético o ensinamento da declaração conciliar Dignitatis humanae, com a qual o Vaticano II ensinou que os direitos de Deus e os da consciência humana não são contraditórios.

Percorrer os cem editoriais do volume Um olhar católico é uma demonstração desta verdade.

[1]Do Vaticano, João Fallani e Mario Escobar, G. C. Sansoni, Florença, 1946, VII-XIII. Publicado em Instituto Paulo VI, Noticiário, 17, 11-16.
[2] Ibid., 11.
[3] Ibidem.
[4] J. Ratzinger, Cristo, a fé e o desafio das culturas, Humanidade Nova, 16 (1994), nº 6, 95-118, aqui 103.
[5] Vaticano, 13.

Por Cardeal Angelo Scola

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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