A Sagrada Tradição Apostólica da Igreja

Um dos pilares sobre os quais se assenta a fé da Igreja Católica é a Sagrada Tradição Apostólica. Esta Tradição, chamada pela Igreja de Sagrada, é tudo aquilo que ela recebeu dos Apóstolos e que a eles foi confiado diretamente pelo próprio Jesus Cristo.

Não se trata da tradição dos homens, mas somente daquilo que se refere à salvação das almas, e que nos foi deixado pelo Senhor.

Sabemos que o Magistério da Igreja extrai todo o ensinamento que dá aos fiéis, da Revelação Divina, que se compõe da Tradição (oral) que veio dos Apóstolos e da Tradição (escrita), a Bíblia. É sobre essa Tradição (escrita e oral), com igual importância nas duas formas, que o Magistério assenta seus ensinamentos infalíveis. Portanto, a Igreja católica não se guia apenas pela Bíblia (a Revelação escrita), mas também pela Revelação oral que chegou até nós. Sem esta última, nem mesmo a Bíblia existiria como a temos hoje, já que ela foi “berçada” – como diz D. Estevão Bettencourt – e redigida pela Igreja. A transmissão do Evangelho, feita pelos Apóstolos, fez-se de duas maneiras: oralmente e, depois, por escrito, cerca de 20 anos após a morte de Jesus. No ensino oral os Apóstolos “transmitiram aquelas coisas que ou receberam das palavras, da convivência e das obras de Cristo ou aprenderam das sugestões do Espírito Santo” (CIC, 76), nos ensina o Catecismo. Ensina-nos a importantíssima Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, que: “Para que o Evangelho sempre se conservasse inalterado e vivo na Igreja, os apóstolos deixaram como sucessores os bispos, a eles transmitindo o seu próprio encargo de Magistério” (DV, 7).

Vemos que “os Apóstolos deixaram como seus sucessores os bispos”, para que estes transmitissem aos seus sucessores o “depósito da fé” que eles tinham recebido de Jesus. Sabemos que São Paulo instituiu muitos bispos; por exemplo, colocou Timóteo como bispo à frente da importante igreja de Éfeso; enviou Tito para a ilha de Chipre. É comovente a despedida que Paulo faz aos bispos de Éfeso, quando em caminho para o cativeiro de Roma: “Cuidai de vós mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastorear a Igreja de Deus, que ele adquiriu com o seu próprio sangue. Sei que depois de minha partida se introduzirão entre vós lobos cruéis, que não pouparão o rebanho. Mesmo dentre vós surgirão homens que irão proferir doutrinas perversas, com o intento de arrebatarem após si os discípulos. Vigiai!” (At 20,28-31).

Vemos nesta passagem a preocupação do Apóstolo, recomendando aos bispos, “constituídos pelo Espírito Santo”, que cuidem e vigiem o rebanho de Deus afim de que os hereges não lhe faça mal. O mesmo tipo de recomendação Paulo faz a Timóteo e a Tito:

“Torno a lembrar-te a recomendação que te dei, quando parti para a Macedônia: devias permanecer em Éfeso para impedir que certas pessoas andassem a ensinar doutrinas extravagantes” (1Tm 1,3). “Recomenda esta doutrina aos irmãos, e serás bom ministro de Jesus Cristo, alimentado com as palavras da fé e da sã doutrina que até agora seguiste com exatidão” (1Tm 4,6).

“Toma por modelo os ensinamentos salutares que recebeste de mim sobre a fé e amor a Jesus Cristo. Guarda o precioso depósito pela virtude do Espírito Santo” (2Tm 1,13-14). “Seja (…) firmemente apegado à doutrina da fé tal como foi ensinada, para poder exortar segundo a sã doutrina”.

Nos ensina a Dei Verbum que: “Assim a pregação apostólica, expressa de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se sem interrupção até a consumação dos tempos. Por isso os Apóstolos, transmitiram aquilo que eles próprios receberam (cf. I Cor 11,23; 15,3), exortam os fiéis a manter as tradições que aprenderam seja oralmente, seja por carta (cf. II Tess 2,15) e a combater pela fé uma vez transmitida aos santos (cf. Jd 3). Quanto à Tradição recebida dos Apóstolos ela compreende todas aquelas coisas que contribuem para santamente conduzir a vida e fazer crescer a fé do povo de Deus, e assim a Igreja, em sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que crê” (DV,8).

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Os Apóstolos e a Propagação da Igreja

O nosso Catecismo explica assim:

Esta transmissão viva, realizada no Espírito Santo, é chamada de Tradição enquanto distinta da Sagrada Escritura, embora intimamente ligada a ela. Através da Tradição, “a Igreja, em sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que crê (DV, 8)” (CIC n.78). “A Tradição da qual aqui falamos é a que vem dos Apóstolos e transmite o que estes receberam do ensinamento e dos exemplo de Jesus e o que receberam através do Espírito Santo. Com efeito, a primeira geração de cristãos ainda não dispunha de um Novo Testamento escrito, e o próprio Novo Testamento atesta o processo da Tradição viva” (CIC n.83).

A Dei Verbum, ensina que:

“Os ensinamentos dos Santos Padres [séc. I a VIII] testemunham a presença vivificante desta Tradição cujas riquezas se transfundem na praxe e na vida da Igreja crente e orante” (DV,8). Embora a Igreja tenha ciência de que “já não há que esperar nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo” (DV,4), no entanto, o Catecismo nos assegura que “embora a Revelação esteja terminada, não está explicitada por completo; caberá à fé cristã captar gradualmente todo o seu alcance ao longo dos séculos” (CIC, 66). E isso o Espírito Santo continua a fazer na Igreja através dos teólogos e do Magistério oficial. Aos teólogos cabe aprofundar os conhecimentos do “mistério da fé”, guiados pelos dogmas já revelados; mas somente ao Magistério cabe definir as verdades da fé. A Tradição e a Bíblia estão intimamente ligadas.

Tanto uma como a outra tornam presente e fecundo na Igreja o mistério de Cristo, presente na Igreja até o fim do mundo (cf Mt 28,20). Ensina-nos a Dei Verbum que: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura estão, portanto, estreitamente conexas e interpenetradas. Ambas promanam da mesma fonte divina, formam de certo modo um só todo e tendem para o mesmo fim. Com efeito a Sagrada Escritura é a fala de Deus, enquanto é redigida sob a moção do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos apóstolos para que, sob a luz do Espírito e da verdade, eles por sua pregação fielmente a conservem, exponham e difundam. Resulta, assim, que não é através da Escritura apenas que a Igreja consegue sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado. Por isso, ambas “Escritura e Tradição” devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência” (DV,9), (CIC, 82). Muitas são as passagens do Novo Testamento que revelam a importância da Tradição oral. São Paulo diz a Timóteo: “O que ouvistes de mim em presença de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que sejam capazes de ensinar ainda a outros” (2 Tm 2,2). Note bem o “ouvistes” de mim. É a transmissão oral do depósito da fé.

Vemos aí a própria Escritura atestando a existência da transmissão oral, de geração a geração. Este “depósito” oral chegou até nós pela palavra oficial da Igreja, e não pode ser desprezada.

Jesus deixou claro a seus discípulos, na noite da despedida, que Ele não lhes tinha ensinado tudo, mas que o Espírito Santo o faria ao longo do tempo: “Muitas coisas tenho a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Advogado, o Espírito da Verdade, ensinar-vos a toda a verdade…” (Jo 16,12).

Todo esse ensinamento que o Espírito Santo foi acrescentando à Igreja é o que foi formando a sua Sagrada Tradição. Era tão marcante a inspiração do Espírito Santo que, por exemplo, após o Concílio de Jerusalém, os apóstolos escreveram à Igreja de Antioquia: “Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…” (At 15,28).

Outras passagens mostram essa intimidade deles com o Espírito Santo.

“Então Pedro, cheio do Espírito Santo…” (At 4,8). “Por que combinastes para por à prova o Espírito do Senhor?” (At 5,9). Diante do Grande Conselho dos Judeus e do Sumo Sacerdote: “Deste fato nós somos testemunhas, nós e o Espírito Santo…” (At 5,32).

Podemos, portanto, afirmar, com toda certeza, que tudo o que está na Bíblia é verdade, mas nem toda a verdade está na Bíblia.

Parte da Revelação foi oral e está na Tradição, que, por isso é Sagrada e indispensável.

Na segunda Carta aos tessalonicenses vemos claramente a Tradição oral:

“Não vos lembrais de que vos dizia estas coisas, quando estava ainda convosco?” (2Tes 2,5).

“Assim, pois, irmãos, ficai firmes e conservai os ensinamentos que de nós aprendestes, seja por palavras, seja por carta nossa” (2Tes 2,15).

“O que ouvistes de mim em presença de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que sejam capazes de ensinar ainda a outros” (2 Tm 2,2).

Essas passagens se referem a uma transmissão de verdades por meio oral e não escrito. Como, então, desprezar o seu valor? Nem tudo o que Jesus ensinou e fez, e nem tudo o que os apóstolos ensinaram, foi escrito. Naquele tempo era difícil escrever. Não havia papel e caneta fácil como hoje. Usava-se pergaminhos (peles de carneiros), papiros, etc., penas molhadas na tinta. Escrever era raridade. São João encerra o seu Evangelho mostrando claramente isto: “Jesus fez, diante dos seus discípulos, muitos outros sinais ainda, que não se acham escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,30s).

Mais adiante ele repete:

“Há muitas outras coisas que Jesus fez e que, se fossem escritas uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam” (Jo 21,25). Essas passagens deixam claro que os evangelistas e Apóstolos só escreveram o “essencial” da mensagem de Cristo, “para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo, tenhais a vida em seu nome”. Vemos assim que a própria Bíblia nos encaminha para as fontes orais da Palavra de Deus; isto é a Tradição oral que a berçou. Não podemos jamais nos esquecer de que a Igreja é anterior ao Novo Testamento e que foi ela que formou o cânon do Antigo Testamento como o temos hoje. Logo, sem a Igreja a Bíblia se esfacela. O Cristianismo já existia quando foi escrito o Novo Testamento: “os fiéis eram assíduos aos ensinamentos (orais) dos apóstolos” (At 2,4). Portanto, é a Igreja que credencia a Bíblia.

Foi a Igreja que “constituiu” a Bíblia, como a temos, e não o contrário. Todo este ensinamento é reafirmado pelo último Concílio, quando diz na Dei Verbum:

“Assim a pregação apostólica, expressa de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se sem interrupção até a consumação dos tempos. Por isso os Apóstolos, transmitiram aquilo que eles próprios receberam (cf. I Cor 11,23; 15,3), exortam os fiéis a manter as tradições que aprenderam seja oralmente, seja por carta (cf. II Tess 2,15) e a combater pela fé uma vez transmitida aos santos” (cf. Jd 3).

Infelizmente os reformadores protestantes (Lutero, Calvino, Melanchton, etc) tomaram a Bíblia como “a única fonte de fé” e, pior ainda, entendida segundo o “livre exame” de cada crente, podendo interpretá-la segundo o seu parecer, “guiado pelo Espírito Santo”. Negaram a Tradição oral, repudiaram o Magistério, abandonaram a Igreja, esquecendo´se que Ela é anterior à Bíblia (Novo Testamento). Foi uma grande traição a Jesus, à Igreja, e ao Espírito Santo que, há quinze séculos (1500 anos!) já conduzia a Igreja sem nunca abandoná-la. Na verdade, a Reforma protestante foi o começo de toda esta lamentável situação que vivemos hoje, um mundo ateu, materialista, racionalista e hedonista, ofensivo a Deus e à Igreja, como diz D. Estevão Bettencourt… A Reforma protestante, influenciada pelo Renascimento, deu a partida ao liberalismo e ao relativismo religioso que hoje assola o mundo todo e até a Igreja.

Transcrevo aqui o que disse D. Estevão Bittencourt, OSB, no seu artigo Origem dos vários grupos cristãos: “Os reformadores deram início à destruição do grande patrimônio de fé e cultura dos séculos anteriores, que associavam entre si Deus, Jesus Cristo e a Igreja”. a Reforma no século XVI disse SIM a Deus e a Cristo e NÃO à Igreja; “os iluministas racionalistas do século XVIII disseram SIM a Deus, NÃO a Cristo e a Igreja”; os ateus do século XIX disseram NÃO também a Deus; “finalmente os estruturalistas do século XX disseram NÃO também ao homem, pois a morte de Deus vem a ser também a morte do homem”. “Negando a Igreja de Cristo, os reformadores aceitaram a fundação de numerosas igrejas e igrejinhas de líderes humanos, todas originadas do subjetivismo dos seus fundadores” (PR, nº 404, 1996, pp. 14 e 15). Isto jamais foi da vontade do Senhor. A maneira subjetiva com que leem a Bíblia, levou o Protestantismo ao esfacelamento, especialmente da doutrina: uns aceitam o batismo de crianças, outros não; uns guardam o sábado como o dia santo, outros o domingo; umas igrejas têm bispos, outras não; umas aceitam o batismo só por imersão na água, outras aceitam-no apenas por infusão. As denominações mais recentes (Testemunhas de Jeová, Mormons, Ciência Cristã) já não aceitam Jesus Cristo como Deus e Homem e nem aceitam a SS. Trindade. Os Mormons por exemplo, chegam a ter uma “bíblia” acima da Bíblia. E a confusão vai longe… Em relação à Jesus Cristo há divergências profundas entre luteranos e “reformados”. Para muitos o dogma da Santíssima Trindade é a base do Cristianismo, para outros é uma “pedra de escândalo” e “aberração politeísta”, embora muitas vezes convivam juntos achando que essas diferenças são “insignificantes”.

Algumas denominações levam a sério a questão doutrinária, outras, como a “Union Church”, admitem todas as doutrinas. Resumindo podemos dizer que não há um só ponto de acordo, nem mesmo a respeito da Pessoa do próprio Jesus Cristo, que para uns é consubstancial ao Pai, mas para outros não. Se neste ponto central do Cristianismo “a Pessoa de Jesus Cristo” não há acordo no protestantismo, imagine no resto… O próprio Lutero, amargurado, foi obrigado a reconhecer em 1525, apenas oito anos após o seu rompimento com a Igreja:

“Há tantas seitas e crenças quantas cabeças. Um não terá nada a fazer com o Batismo; outro nega o Sacramento; um terceiro acredita que há outro mundo entre este e o último dia. Alguns ensinam que Cristo não é Deus; uns dizem isto, outros dizem aquilo. Não há rústico, por mais rude que seja, que, se sonhar ou fantasiar alguma coisa não deva ser o sussurro do Espírito Santo, e ele próprio um profeta” (Martinho Lutero, John A. O’ Brien, Ed. Vozes, 1959, p.32). Para mostrar o quanto Lutero foi incoerente na defesa do “livre exame da Bíblia”, cito o que diz O’ Brien: “Lutero começou declarando que a Bíblia podia ser interpretada por qualquer um “até mesmo pela humilde criada do moleiro; antes, até por uma criança de nove anos”. Mais tarde, no entanto, quando os Anabatistas, Zwinglianos e outros contrariaram as suas vistas, a Bíblia tornou-se para ele “um livro de heresias”, muito obscuro e difícil de entender” (idem, p.32). Nos relata O’ Brien que, em Ingolstadt, em 1577, trinta e um anos após a morte de Lutero (1546), Cristovão Rasperger citava duzentas interpretações diferentes das quatro palavras da consagração: “Isto é o Meu corpo”; interpretações sustentadas pelos seguidores da Reforma (The Faith of Millions, J. A. O’ Brien, Ind.1938, p.227). Que confusão!

É preciso dizer também que, embora Lutero colocasse a Bíblia como “a única fonte da fé”, desprezando a Tradição e o Magistério, no entanto, quando a sua teoria da “salvação somente pela fé”, sem necessidade das obras, se chocou com as palavras da Epístola de S. Tiago (“sem obras a fé é morta”, Tg 2,26), Lutero a rejeitou de todo e a chamou de “uma verdadeira epístola de palha” (idem p.16). Onde estava o seu respeito pela Bíblia?… Como, então, as bíblias protestantes ainda mantém nela a Epístola de S. Tiago?

Jamais as igrejas evangélicas conseguiriam chegar a um único Símbolo de Fé, um só Credo. A Igreja católica, por outro lado, porque se manteve fiel a Cristo, apesar dos pecados dos seus filhos, professa uma só fé, um só batismo, um só Senhor. Como disse D. Estevão há uma nostalgia de unidade entre os irmãos separados. Mas eles só a encontrarão ao retornarem ao seio da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, fundada por Jesus sobre a Rocha de Pedro. E nós católicos esperamos por essa hora e rogamos ao Espírito Santo que a apresse, para que haja “um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16).

É fácil notar que o esfacelamento do protestantismo, cada vez maior, tem como causa a negação da Igreja, do Magistério e da Tradição apostólica, e o princípio estabelecido por Lutero, de que a única fonte de fé é a Bíblia, interpretada segundo “livre exame” de cada um. Dessa “leitura livre” da Bíblia, cada qual tira a conclusão que quer, a que lhe seja mais oportuna e cômoda, até aquela de fundar “nova igreja” dirigida pelo seu fundador, contra o que Jesus determinou. O Catolicismo tem a convicção de que a humanidade de Jesus é o grande Sacramento que salva a todos os homens, fazendo-se presente no Corpo de Cristo que é a Igreja e que leva a salvação a cada um através dos sete sacramentos. Todos os sacramentos, as verdades doutrinárias, as práticas de piedade, etc., chegaram até nós pela Tradição, oral, não escrita. Lentamente, sob o impulso do Espírito Santo, a Igreja foi descobrindo os sete sacramentos até ter uma visão nítida dos mesmos.

Ao vencer cada heresia, especialmente nos grandes Concílios, foi-lhe sendo revelada o verdadeiro “Símbolo dos Apóstolos”, o Credo. E assim, muitos outros assuntos, foram sendo, sob a inspiração do Espírito, conhecidos. Por exemplo, a necessidade e validade do Batismo ministrado às crianças; a não necessidade de ministrá-lo por imersão, mas apenas por infusão (derramamento) de água; a salutar veneração das imagens, ícones, gravuras sagradas; o casamento indissolúvel, o primado do Papa, o cânon da Bíblia como hoje o temos, diferente da bíblia protestante, o culto e a veneração dos santos (dulia) e à Nossa Senhora (hiperdulia), a santificação do domingo, o purgatório, a ordenação sacerdotal apenas de homens, a intercessão dos santos, a confissão auricular com o sacerdote, a santa missa, a Eucaristia, o celibato dos padres, os ritos litúrgicos, as grandes devoções populares (Sagrado Coração de Jesus, Rosário, Via Sacra, procissões, etc.), tudo chegou a nós através da Sagrada Tradição, confirmada e aprovada pela Igreja. Sem ela não teríamos toda a riqueza da nossa fé, e estaríamos privados de tantos meios de salvação. Só na Igreja católica está a plenitude desses meios. Um ponto relevante a ser observado, mais uma vez, é a composição da Bíblia Católica, com 46 livros no AT (45, se contarmos Jr e Lm juntos) e 27 no NT; ao todo 72 ou 73. Garante-nos o Catecismo da Igreja e o Concílio Vaticano II que: “Foi a Tradição apostólica que fez a Igreja discernir que escritos deviam ser enumerados na lista dos Livros Sagrados” (DV 8) (CIC,120). Portanto, sem a Tradição da Igreja não teríamos a Bíblia. Como então, dispensar a Tradição na sua interpretação? Como aceitar a existência da fruta e negar a árvore que a gerou?

Sabemos que é o Espírito Santo quem guia a Igreja e fez com que na hesitação dos séculos II a IV a Igreja optasse pela Bíblia completa, a versão dos Setenta de Alexandria, o que vale até hoje para nós católicos. Neste fato fundamental para a vida da Igreja (a Bíblia completa) vemos a importância da Tradição da Igreja, que nos legou a Bíblia como a temos hoje. Disse o último Concílio:

“Pela Tradição torna-se conhecido à Igreja o Cânon completo dos livros sagrados e as próprias Sagradas Escrituras são nelas cada vez mais profundamente compreendidas e se fazem sem cessar, atuantes” (DV,8).

Por fim, é preciso compreender que a Bíblia não define, ela mesma, o seu catálogo; isto é, não há um livro da Bíblia que diga qual é o índice dela. Assim, este só pode ter sido feito pela Tradição dos apóstolos, pela tradição oral que de geração em geração chegou até nós. Se negarmos o valor indispensável da Tradição, negaremos a autenticidade da própria Bíblia.

São Clemente (88-97), Bispo de Roma, quarto Papa da Igreja, colaborador de São Paulo (cf. Fil 4,3), na Carta aos Corintios, para debelar a rebelião dos fiéis contra os pastores, já no século I expunha as bases da Igreja, mostrando que Jesus Cristo recebeu todo o poder do Pai e incumbiu os Apóstolos de estabelecerem a Hierarquia. Assim, os Apóstolos cumpriram a ordem e puseram à frente das Igrejas, bispos, presbíteros e diáconos como auxiliares, tendo regulamentado a sua sucessão, com normas claras, para que, com a comunidade, fossem escolhidos sempre os melhores. Essas “normas” até hoje norteiam a vida da Igreja, é a expressão da tradição dos Apóstolos.

Um dos grandes Padres da Igreja, do século II, foi Santo Ireneu (?202); discípulo de São Policarpo (?156), grande bispo e mártir de Esmirna, que, por sua vez, foi discípulo de São João evangelista. Portanto, S. Ireneu é herdeiro direto dos Apóstolos, e nos dá muitos testemunhos da importância da Tradição que recebeu deles. Vamos ver algo do ele escreveu na sua grande obra “Contra os Hereges”: “Sendo nossas provas de tal monta, não é preciso ir procurar alhures a verdade, tão fácil de se haurir na Igreja, pois os Apóstolos, como num rico celeiro, aí depuseram a verdade em sua plenitude, a fim de que todo o que desejar possa tirar dela a bebida da vida…”

“Pois bem, se ainda que apenas uma questão de detalhe provocasse discussão, não se haveria de renovar às Igrejas mais antigas, àquelas onde viveram os apóstolos, para se esclarecer a questão? E se os apóstolos não tivessem deixado quaisquer Escrituras, não se haveria de seguir a ordem da Tradição que eles legaram aos mesmos aos quais confiaram as igrejas?”

“Assim, todos os que desejam a verdade podem perceber em qualquer igreja a tradição dos Apóstolos manifestada no mundo inteiro. E nós podemos enumerar os que os apóstolos instituíram como bispos nas igrejas, bem como suas sucessões até nossos dias” (III, 3,1). “A pregação da Igreja apresenta por todos os lados firme solidez, perseverando idêntica e beneficiando-se, como pudemos mostrar, com o testemunho dos profetas, apóstolos e seus discípulos, testemunho este que engloba o começo, o meio e o fim, isto é, a totalidade da “economia” de Deus e de sua operação infalivelmente ordenada à salvação do homem, fundamento de nossa fé. Eis porque esta fé, que recebemos da Igreja, guardamos com cuidado, como um depósito de grande valor, encerrado em vaso excelente e que, sob a ação do Espírito de Deus, se renova e faz renovar o próprio vaso que a contém. Pois como fora entregue o divino sopro ao barro modelado, foi confiado à Igreja o “Dom de Deus” (Jo 4,10), afim de que todos os seus membros pudessem dele participar e ser por ele vivificados.

À Igreja foi entregue a comunhão com Cristo, isto é, o Espírito Santo, penhor da incorruptibilidade, confirmação de nossa fé e escada de nossa ascensão para Deus: “na Igreja”, foi dito, “Deus colocou apóstolos, profetas, doutores” (1Cor12,1) e tudo o mais que pertence à operação do Espírito. Deste Espírito se excluem os que, recusando´se a aderir à Igreja, se privam a si mesmos da vida, por suas falsas doutrinas e depravadas ações. Porque onde está a Igreja está o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus está a Igreja e toda graça. Ora, o Espírito é Verdade. Assim, os que dele não participam são também os que não estão sendo nutridos e vivificados pelos peitos da Mãe, os que não têm parte na fonte límpida que brota do Corpo de Cristo, os que “escavam cisternas dessecadas” (Jr2,13), buracos na terra, os que bebem a água poluída do pantanal. Eles fogem da Igreja para não serem desmascarados e rejeitam o Espírito para não serem instruídos. Tornando-se estranhos à verdade, é fatal que se precipitem em todo erro e pelo erro sejam sacudidos; fatal que pensem a cada momento diversamente sobre as mesmas coisas, nunca tendo doutrina estável, sendo sofistas de palavras mais que discípulos da verdade. Porque não estão fundados sobre a única Rocha, mas sobre a areia, a areia dos muitos saibros” (Contra as Heresias, liv.III,24,1).

Neste texto de Santo Ireneu você tem uma mostra clara do que é a Tradição da Igreja e sua importância. Torne a lê-la cuidadosamente. Nesta mesma obra Santo Ireneu apresenta a primeira lista dos doze primeiros Papas da Igreja, até o décimo segundo, até Eleutério, Papa do seu tempo: “Ora, dado que seria demasiado longo… enumerar as sucessões de todas as Igrejas, tomaremos a máxima igreja, muito antiga e conhecida de todos, fundada e construída em Roma pelos dois gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo; mostraremos que a tradição que ela tem, dos mesmos, e a fé que anunciou aos homens, chegaram até nós por sucessões de bispos”… “Porque, é com esta Igreja (de Roma), em razão de sua mais poderosa autoridade de fundação, que deve necessariamente concordar toda a Igreja… na qual sempre se conservou a tradição que vem dos Apóstolos”. “Depois de ter fundado e edificado a Igreja, os bem´aventurados apóstolos transmitiram a Lino o cargo do episcopado… Anacleto o sucedeu. Depois, em terceiro lugar a partir dos apóstolos, é a Clemente que cabe o episcopado. Ele tinha visto os próprios apóstolos, estivera em relação com eles; sua pregação ressoava-lhe aos ouvidos; sua tradição estava presente ainda aos seus olhos. Aliás ele não estava só, havia em sua época muitos homens instruídos pelos apóstolos… A Clemente sucede Evaristo; a Evaristo, Alexandre; em seguida… Sixto, depois Telésforo, também glorioso por seu martírio; depois Higino, Pio, Aníceto, Sotero… Eleutério em 12º lugar a partir dos Apóstolos”.

“É nesta ordem e sucessão que a tradição dada à Igreja desde os apóstolos, e a pregação da verdade, chegaram até nós. E está aí uma prova muito completa de que é única e sempre a mesma, a fé vivificadora que, na Igreja desde os Apóstolos, se conservou até o dia de hoje e foi transmitida na verdade” (III, 2,2).

Ouça também: O que é a Sagrada Tradição Apostólica?

Qual é a relação entre a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura?

O Catecismo da Igreja fala também da importância da Tradição. Logo no inicio da sua apresentação, o Papa João Paulo II diz:

“Guardar o depósito da fé é a missão que o Senhor confiou à Sua Igreja e que ela cumpre em todos os tempos” (FD, introdução).

Com essas palavras o Papa nos ensina que a missão por excelência da Igreja é “guardar” intacta a mensagem que recebeu de Jesus, e que salva a humanidade.

O Catecismo ensina que a Tradição consiste em tudo aquilo que vem dos apóstolos e transmite o que estes receberam do ensinamento e do exemplo de Jesus e o que receberam através do Espírito Santo (CIC, 83).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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