Publicada no L’OSSERVATORE ROMANO, ed. port., no dia 17 de
agosto de 1986.
1. Continuando o argumento das catequeses passadas dedicadas
aos Anjos, criaturas de DEUS, concentramo-nos hoje a explorar o mistério da
liberdade que alguns deles orientaram contra DEUS, e o seu plano de salvação em
relação aos homens.
Como testemunha o evangelista Lucas, no momento em que os
discípulos voltavam ao Mestre cheios de alegria, pelos frutos recolhidos no seu
tirocínio missionário, Jesus pronuncia uma palavra que faz pensar: “Eu
via satanás cair do céu como um raio” (cf. Lc 10,18). Com estas palavras o
Senhor afirma que o anúncio do reino de DEUS é sempre uma vitória sobre o
diabo, mas ao mesmo tempo revela também que a edificação do reino está
continuamente exposta às insídias do espírito mau.
Interessar-se por isso, como pretendemos fazer com a
catequese de hoje, quer dizer preparar-se para a condição de luta que é própria
da vida da Igreja neste tempo derradeiro da história, da salvação (como afirma
o livro do Apocalipse, cf. 12,7). Por outro lado, isto permite esclarecer a
reta fé da Igreja perante quem a altera exagerando a importância do diabo, ou
quem nega ou minimiza o seu poder maléfico. As catequeses passadas, acerca dos
anjos, preparam-nos para compreender a verdade que a Sagrada Escritura revelou
e que a tradição da Igreja transmitiu sobre satanás, isto é, sobre o anjo
caído, o espírito maligno, chamado também diabo ou demônio.
2. Esta queda, que apresenta o caráter da rejeição de Deus,
com o conseqüente estado de danação, consiste na livre escolha daqueles
espíritos criados, que radical e irrevogavelmente rejeitaram Deus e o seu
reino, usurpando os seus direitos soberanos e tentando subverter a economia da
salvação e a própria ordem da criação inteira. Um reflexo desta atitude
encontra-se nas palavras do tentador aos progenitores: “sereis como
Deus” ou “como deuses” (cf. Gn 3,5). Assim o espírito maligno
tenta insuflar no homem a atitude de rivalidade, de insubordinação e de
oposição a Deus, que se tornou quase a motivação de toda a sua existência.
3. No Antigo Testamento, a narração da queda do homem, apresentada no livro do
Gênesis, contém uma referência à atitude de antagonismo que satanás quer
comunicar ao homem para o levar à transgressão (Gn 3,5). Também no livro de Jó
(of. Jó 1,11; 2,24), satanás é apresentado como o artífice da morte que entrou
na história do homem juntamente com o pecado.
4. A Igreja, no Concílio Lateranense IV (1215), ensina que o diabo, ou (satanás) e
os outros demônios “foram criados bons por DEUS mas tornaram-se maus por
sua própria vontade”. De fato, lemos na carta de São Judas: “Os anjos
que não souberam conservar a sua dignidade, mas abandonaram a própria morada,
Ele os guardou para o julgamento do grande dia, em prisões eternas e no fundo
das trevas” (Jd 6). De modo idêntico na Segunda Carta de São Pedro fala-se
de “anjos que pecaram e que Deus “não poupou… e os precipitou nos
abismos tenebrosos do inferno, para serem reservados para o Juízo” (2Pd
2,4). É claro que se Deus “não perdoa” o pecado dos anjos fá-lo
porque eles permanecem no seu pecado, porque estão eternamente “nas prisões”
daquela escolha que fizeram no início, rejeitando Deus, sendo contra a verdade
do Bem supremo e definitivo que é Deus mesmo. Neste sentido São João escreve
que “o demônio peca desde o principio” (I Jo 3,8). E foi assassino
“desde o principio” (I Jo 8,44), e “não se manteve na verdade,
porque nele não há verdade” (Jo 8,44).
5. Estes textos ajudam-nos a compreender a
natureza e a dimensão do pecado de satanás, consciente na rejeição da verdade
acerca de Deus, conhecido à luz da inteligência e da revelação como Bem
infinito, Amor e Santidade subsistente. O pecado foi tanto maior quanto maior
era a perfeição espiritual e a perspicácia cognoscitiva do intelecto angélico,
quanto maior era a sua liberdade e a proximidade de Deus. Rejeitando a
verdade conhecida acerca de Deus com um ato da própria vontade livre, satanás
torna-se “mentiroso”, cósmico e “pai da mentira” (Jo
8,44). Por isso ele vive na radical e irreversível negação de Deus e procura
impor a criação aos outros seres criados à imagem de Deus, que satanás (sob
forma de serpente) tenta transmitir aos primeiros representantes do gênero
humano: Deus seria cioso das suas prerrogativas e imporia, portanto, limitações
ao homem (cf. Gn 3,5). Satanás convida o homem a libertar-se da imposição
deste jugo, tornando-se como “Deus”.
6. Nesta condição de mentira existencial, satanás torna-se – segundo São João –
também “assassino”, isto é, destruidor da vida sobrenatural que Deus
desde o princípio tinha introduzido nele e nas criaturas, feitas “à imagem
de Deus”: os outros puros espíritos e os homens; satanás quer destruir a
vida segundo a verdade, a vida na plenitude do bem, a sobrenatural vida de
graça e de amor. O autor do Livro da Sabedoria escreve: “Por inveja do
demônio é que a morte entrou no mundo, e prová-la-ão os que pertencem ao
demônio” (Sb 2,24). E no evangelho Jesus Cristo adverte: “Temei antes
aquele que pode fazer perecer na Geena o corpo e a alma” (Mt 10,28).
7. Como efeito do pecado dos progenitores, este anjo
caído conquistou em certa medida o domínio sobre o homem. Esta é a doutrina
constantemente confessada e anunciada pela Igreja, e que o Concílio de Trento
confirmou no tratado sobre o pecado original (cf. DS 1511): ela encontra
dramática expressão na liturgia do batismo, quando ao catecúmeno se pede para
renunciar ao demônio e a suas tentações.
Deste influxo sobre o homem e sobre as disposições do seu
espírito (e do corpo), encontramos várias indicações na Sagrada Escritura, na
qual satanás é chamado “o príncipe deste mundo” (2Cor 4,4).
Encontramos muitos outros nomes que descrevem as suas nefastas relações como o
homem: “Belzebu”ou “Belial”, “espírito malígno”,
e por fim “anticristo” (1 Jo 4, 3). É comparado com um
“leão” (1 Pe 5, 9), com um “dragão” (Apocalípse) e com uma
serpente (Gen 3). Com muita freqüência, para o designar, é usado o nome
“diabo”, do grego “diabellein” (daqui diábolos), que
significa: causar a destruição, dividir, caluniar, enganar. E, para dizer a
verdade, tudo isto acontece desde o princípio, por obra do espírito malígno,
que é apresentado pela Sagrada Escritura, como uma pessoa, embora tenha
afirmado que não está só: “somos muitos”, respondem os diabos a
Jesus, na região dos Geracenos (Mc 5, 9); “o diabo e seus anjos”, diz
Jesus, na descrição do juízo final (cf. Mt 25, 41).
8. Segundo a Sagrada Escritura, e de modo especial, no Novo
Testamento, o domínio e o influxo de satanás e dos outros espíritos
malignos abrange todo o mundo. Pensemos na parábola de Cristo sobre o campo
(que é o mundo), sobre a boa semente e sobre a que não é boa, que o diabo
semeia no meio do trigo procurando arrancar dos corações aquele bem que neles
foi “semeado” (cf. Mc 13, 38-39). Pensemos nas numerosas exortações à
vigilância (cf. Mt 26, 41; 1 Pe 5, 8), à oração e ao jejum (cf. Mt 17, 21).
Pensemos naquela forte afirmação do Senhor: “Esta casta de demônios só
pode ser expulsa com oração” (Mc 9, 29). A ação de Satanás consiste, antes
de tudo, em tentar os homens ao mal influindo na sua imaginação e nas suas
faculdades superiores para as orientar em direção contrária à lei de
Deus. Satanás põe à prova até Jesus (cf. Lc 4, 3-13), na tentativa
extrema de contrariar as exigências da economia da salvação como Deus a
estabeleceu.
Não é para excluir que em certos casos o espírito maligno
chegue até o ponto de exercer o seu influxo não só nas coisas materiais, mas
também sobre o corpo do homem, pelo que se fala de “possessos de espíritos
impuros” (Mc 5, 2-9). Nem sempre é fácil discernir o que de preternatural
acontece nesses casos, nem a Igreja condescende ou secunda facilmente a
atribuir muitos fatos a intervenções diretas do demônio, mas em linha de
princípio não se pode negar que, na sua vontade de prejudicar e de levar para o
mal, satanás possa chegar a esta extrema manifestação da sua
superioridade.
9. Devemos por fim acrescentar que as impressionantes
palavras do Apóstolo João: “O mundo inteiro está sob o jugo do
maligno” (I Jo 5,19), aludem também à presença de satanás na história da
humanidade, uma presença que se acentua à medida que o homem e a sociedade se
afastam de Deus. O influxo do espírito maligno pode ocultar-se de modo mais
profundo e eficaz: fazer-se ignorar corresponde aos seus ”interesses”. A
habilidade de satanás no mundo está em induzir os homens a negarem a sua
existência, em nome do racionalismo e de cada um dos outros sistemas de pensamento
que procuram todas as escapatórias para não admitir a obra dele. Isto não
significa, porém, a eliminação da vontade livre e da responsabilidade do homem
e nem se quer a frustração da ação salvífica de Cristo. Trata-se antes de um
conflito entre as forças obscuras, do mal e as forças da redenção. São
eloqüentes a este propósito as palavras que Jesus dirigiu a Pedro no início da
Paixão: “Simão, olha que satanás vos reclamou para vos joeirar como o
trigo. Mas Eu roguei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça” (Lc
22,31).
Por isso compreendemos o motivo por que Jesus, na oração
que nos ensinou, o “Pai-nosso”, que é a oração do reino de Deus,
termina bruscamente, ao contrário de multas outras orações do seu tempo,
recordando-nos a nossa condição de expostos às insídias do Mal-Maligno. O
cristão, fazendo apelo ao Pai com o espírito de Jesus e invocando o seu Reino,
brada com a força da fé: não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do
mal, do Maligno. Não nos deixeis, ó Senhor, cair, na infidelidade a que nos
tenta aquele que foi infiel desde o princípio.