A Igreja e a Escravidão

Os índios

Era corrente na época moderna a ideia de que os índios não eram plenamente humanos, mas seres irracionais, destituídos de capacidade de autodeterminação e, por conseguinte, de liberdade. Com isto era justificada a sua escravidão.

No Brasil, serviram também como justificativa as circunstâncias da terra, inculta, que deveria ser trabalhada e submetida, necessitando-se para isso, como condição de sobrevivência, de mão-de-obra para a lavoura.

Os escravos índios foram conseguidos pelos portugueses, primeiramente, através do resgate dos membros de uma tribo vencida numa guerra indígena. Os índios vencidos eram normalmente subjugados e escravizados ou devorados pelos vencedores. Para evitá-lo, os portugueses os comprados aos vencedores em troca de pequenos objetos. Mais tarde, como o número de escravos se mostrasse insuficiente, recorreram os colonizadores aos índios capturados em “guerras justas” (provocadas pelos índios contra os brancos). Posteriormente começaram a fazer incursões, assaltos a tribos, com o fim de escravizá-los.

Merece atenção especial o ocorrido com os índios Caetés. Mataram e devoraram o bispo D. Pedro Fernandes, três cônegos e cerca de cem outras pessoas, vítimas de naufrágio. E vangloriavam-se disto, proclamando que haviam matado o chefe religioso dos brancos; ora, tal atitude foi tomada como ignomínia ao nome cristão. Em consequência, o Governador Mem de Sá (1557-1572) mandou contra os Caetés uma expedição que fossem reduzidos à escravidão em castigo modelar. Este fato desencadeou, da parte dos colonos, outros assaltos a índios de tribos diversas, como se todos fossem réus do mesmo crime – o que mereceu imediata reprovação do Governador.

Diante dos fatos, registraram-se protestos da parte das autoridades eclesiásticas e de autoridades civis. No início do século XVI o dominicano Domingos de Minaja viajou da América Espanhola a Roma, a fim de relatar ao Papa Paulo III os abusos ocorrentes com relação aos índios. Em consequência, o Pontífice escreveu a Bula Veritas Ipsa (1537), em que expõe o equivoco subjacente à instituição da escravatura:

“O comum inimigo do gênero humano, que sempre se opõe as boas obras para que pereçam, inventou um modo, nunca dantes ouvido, para estorvar que a Palavra de Deus não se pregasse as gentes, nem elas se salvassem. Para isso moveu alguns ministros seus que, desejosos de satisfazer as suas cobiças, presumem afirmar a cada passo que os índios das partes ocidentais e meridionais e as mais gentes que nestes nossos tempos tem chegado à nossa notícia, hão de ser tratados e reduzidos a nosso serviço como animais brutos, a título de que são inábeis para a Fé católica, e, com pretexto de que são incapazes de recebê-la, os põem em dura servidão em que têm suas bestas, apenas é tão grande como aquela com que afligem a esta gente. […]

Pelo teor das presentes determinamos e declaramos que os ditos índios a todas as mais gentes que aqui em diante vierem a noticia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé cristã, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser reduzidos a servidão”.

As determinações da Bula ignoram efeitos positivos, mormente porque observadas pelos jesuítas, que defenderam a liberdade dos nativos e agiram contra os abusos dos brancos. Com isto contribuíram para moderar e retirar o costume dos assaltos a aldeias. Porém não chegaram a rejeitar qualquer cativeiro.

Esta possibilidade era defendida em caso de extrema necessidade e para o melhor bem das almas. Considere-se, contudo, que o tratado dos indígenas pelos jesuítas diferia, e muito, do dos colonos brancos.

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A Igreja não acreditava que o escravo tivesse alma?

A Evangelização dos Índios no Brasil

A 30 de julho de 1609 El-Rey promulgou lei que abolia por completo a escravidão indígena:

“Declaro todos os gentios daquelas partes do Brasil por livres, conforme o direito e seu nascimento natural, assim os que já foram batizados e reduzidos a nossa Santa fé católica, como os que ainda servirem como gentios, conforme a pessoas livres como são”.

Aos 24.4.1639 o Papa Urbano VIII publicou o Breve Commissum Nobis, incutindo a liberdade dos índios da América. Este documento chegou ao Rio por meio do Pe. Francisco Dias, que iria até Buenos Aires com mais trinta companheiros. Trazia também uma nova lei de Sua Majestade o Rei, que mandava dar liberdade a todos os cativos sob pena de castigo do Santo Ofício e de confiscação de bens. No seu Breve, o Papa ordenava, sob pena de excomunhão reservada ao Pontífice, que ninguém prendesse, vendesse, trocasse, doasse ou tratasse como cativos os índios da terra. Dispunha outrossim que a ninguém seria lícito ensinar ou apregoar o aprisionamento dos mesmos.

Contra isto insurgiram-se colonos no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Santos e no Maranhão. Os Jesuítas foram perseguidos, sendo expulsos de São Paulo, Santos e do Maranhão, para onde só puderam voltar tempos depois.
Por outro lado, o segundo bispo do Brasil, D. Pedro Leitão (1559-1573), assinou aos 30.7.1566 na Bahia, com o Governador Mem de Sá e o Ouvidor Dr. Brás Fragoso, uma junta em defesa dos índios; defendia-os contra os abusos dos brancos e dava maior apoio aos aldeamentos instaurados pelos jesuítas. O Pe. Anchieta elogiou o bispo pelo zelo em prol da liberdade dos aborígenes.

Também o primeiro prelado do Rio de Janeiro, Pe. Bartolomeu Simões Pereira (1578-1603), foi rígido defensor dos índios, sempre contrário a escravidão dos mesmos. O quarto prelado do Rio de Janeiro, o Pe. Lourenço de Mendonça, dizia que “mandou guardar as Constituições Eclesiásticas dos antecessores que sempre se opuseram a estas tão iníquas vendas (de escravos)” (Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, L. 219,dc. 17).

Estão assim expostos alguns dos fatos históricos mais importantes para se reconstituir o papel desempenhado pela hierarquia da Igreja frente à escravidão dos índios. Houve empenho por respeitar tal população – o que exigiu sacrifícios da parte de clérigos. Verdade é que esse esforço não se voltou contra a escravatura como tal; nem se deve crer que os clérigos não tivessem escravos a serviço das suas obras; não lhes passava pela mente a ideia de abolir por completo o trabalho escravo, pois isto redundaria em colapso tanto da vida econômica da sociedade como das atividades humanitárias e evangelizadoras da Igreja.

Importa, porém, registrar que, dentro das categorias de pensamento e cultura dos séculos XVI-XVIII, a Igreja opôs resistência à exploração dos indígenas, na medida em que esta podia parecer ilegítima a um cristão da época (de consciência bem formada).

Os Negros

Diferentemente da indígena, a escravidão negra foi aceita mais pacificamente no Brasil. Muitos foram aqueles que a defenderam, pois se constituía a principal forma de trabalho. Várias e significativas vezes, entretanto, levantaram-se contra a escravidão negra:

a) Pe. Antônio Vieira (1608-1697) – tido, por vezes, como aliado dos senhores da terra contra os escravos, na verdade assumiu posição de censura aberta aos inclementes patrões. Essa censura dirige-se, em última análise, ao próprio regime escravagista. Em mais de um sermão o grande pregador expõe o seu modo de pensar:

“Saibam as pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua… porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres” (Sermão XIV).

“Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se fazem Os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh! mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias e as riscos são das próprias!” (Sermão XXVII).

“Os senhores poucos, e os escravos muitos, os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome, os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros, os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses. […] Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com a sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com a mesmo ar? Não os cobre o mesmo. céu? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo aquela que as domina, tão cruel? […]
Oh! Como temo que a oceano seja para vós Mar Vermelho, as vossas casas como as de faraó, e todo a Brasil como o Egito! Ao último castigo do Egito precederam as pragas, e as pragas já as vemos, são repetidas umas sobre as outras e algumas são novas e desusadas, quais nunca se viram na clemência deste clima. Se elas bastarem para abrandar os corações, razão teremos para esperar misericórdia na emenda, mas se os corações, como o de faraó, se endurecerem mais, ainda mal, porque sobre elas não pode faltar o último castigo. Queira Deus que eu me engane neste triste pensamento, que sempre aqui, e na nossa corte, as mais alegres são os mais cridos. Sabei, porém, que é certo – e fique-vos isto na memória – que se Jeconias e seus irmãos cressem em Jeremias, não seriam cativos,- mas, porque deram mais crédito aos profetas falsos que os adulavam, assim ele, como seus irmãos, todos acabaram no cativeiro de Babilônia” (Sermão XXVII sobre o Rosário, in Sermões, vol 12, Porto, 1951, p.333-371)

b) Pe. Jorge Benci, SJ – escreveu em 1700 um livro importante e corajoso intitulado “Economia cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”. Tal obra tornou-se base para a elaboração das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707. O censor do livro, Fr. Emanuel da Silva, emitiu a respeito o seguinte parecer:
“Julgo tratar-se de muito útil e necessário clamor contra a ímpia tirania dos senhores de nossa América para com as escravos”.

c) As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia – promulgadas em 1707, estiveram em vigor nas demais dioceses do país durante os séculos XVII e XIX. Esse documento dedicou vinte e três tópicos a situação dos escravos. Entre outras, merece atenção a exortação a que os senhores proporcionassem aos escravos comida, roupa e o descanso dos domingos e dias santos. Interessou-se também pela catequese a ser ministrada aos escravos, todavia sem que se lhes impusesse o Batismo.

d) A Bula “Immensa Pastorum” de Bento XIV (1741) – nesta Bula era censurada a escravidão. Assim redigida, foi endereçada aos bispos do Brasil e de outras partes da América, a fim de que tentassem obter melhores condições de vida para os escravos.

e) Pe. André João Antonil, SJ – ante o fato da escravatura no Brasil, escreveu a obra intitulada “Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas” (1711), onde toma a defesa dos escravos vítimas de abusos dos senhores.

f) Gregório XVI – aos 3.12.1839 o Papa quis corroborar em seu século as declarações de seus antecessores. Escreveu, pois, taxativamente: “Admoestamos os fiéis para que se abstenham do desumano tráfico dos negros ou de quaisquer outros homens que sejam”.

g) A epístola “In Plurimis” – aos 5.5.1888 o Papa Leão XIII enviou aos bispos do Brasil uma epístola atinente à escravatura:

“E profundamente deplorável a miséria da escravidão a que desde muitos séculos está sujeita uma parte não pequena da família humana”.

Papel de relevo no tocante a sorte dos escravos coube também as Irmandades e confrarias Religiosas, estendidas pela Igreja também aos escravos. Surgem assim Confrarias especialmente para os negros, principalmente sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário. Tais instituições exerceram importante papel na consciência a da igualdade de todos os homens entre si: afirmando os direitos dos escravos aos benefícios em pé de igualdade com os senhores, tornavam-se fator de educação e formação das mentalidades. Os escravos que se congregavam em Irmandades, sentiam-se seres humanos iguais aos patrões, certos de que gozavam, diante de Deus, das mesmas prerrogativas que estes, tanto durante esta vida quanto após a morte.

O papel da Igreja frente a escravatura, porém, não se limitou a estes episódios. De fato, foi todo um contexto de ideias cristãs que, influindo no espírito do povo, preparou a libertação dos escravos, assinada finalmente em 13/05/1888 pela Regente, Princesa Isabel. A fim de comemorar enfaticamente tal evento, o Papa Leão XIII enviou à Princesa a Rosa de Ouro, sinal de distinção e benevolência de Sua Santidade.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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