A História de Sansão

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Muito explorada tem sido a figura de Sansão pela fantasia tanto dos homens simples como dos artistas.

Eis o que a Sagrada Escritura lhes apresenta:

Sansão foi um dos grandes Juízes, ou seja, um dos chefes que Deus suscitou ao seu povo no período que corre entre a morte de Josué, conquistador da terra de Canaã (1200), e o início da monar­quia (1020). Não havia governo organizado em Israel nessa época; disto se prevaleciam os cananeus vizinhos, para atacar e oprimir o povo. Nas ocasiões de maior tribulação, acontecia que o Senhor infundia a um israelita coragem e poder extraordinários, a fim de que debelasse os inimigos. Esses homens, chefes esporádicos de Israel, eram os chamados Juízes, entre os quais sobressai Sansão (cf. Jz 13, 1-16, 31).

A vida deste herói, não há dúvida, é muito marcada pelo maravilhoso.

Havia na tribo de Dá um casal estéril, ao qual um anjo apareceu por duas vezes, predizendo o nascimento de um filho. Seria consagrado ao Senhor desde o seio materno (nazireu); pelo que deixaria crescer os cabelos, e sua mãe, enquanto o gestasse, se deveria abster de bebidas fermentadas e alimentos impuros.

Tornar-se-ia o defensor de sua gente contra os filisteus hostis.

Ora o menino nasceu e foi chamado Sansão. Cresceu, abençoado pelo Senhor, que lhe dava energia de alma e vigor de corpo fora do comum. O favor de Deus, porém, não extinguia as tendências desregradas da natureza em Sansão… Chegado à idade viril, o jovem, contra a vontade de seus pais, quis esposar uma donzela filistéia da cidade de Tamna. A caminho desta localidade, foi certa vez acometido por um leão, que ele matou com as próprias mãos. Dias mais tarde, refazendo a estrada, viu no cadáver do animal um enxame de abelhas e mel. Quando, após estas peripécias, celebrava as núpcias em Tamna, propôs aos trinta convivas do festim um enigma, à semelhança do que se costumava fazer no Oriente:

“Daquele que come, saiu o que se come, E do forte saiu doce” (Jz 14, 14).

Caso lhe pudessem explicar o sentido destes versos ao cabo dos sete dias de festa, os trinta filisteus receberiam cada qual uma peça de roupa fina e uma túnica preciosa; dado, porém, que não lhe dessem a interpretação, pagaria cada qual o mesmo preço. Ora, após três dias de reflexão, os filisteus perplexos foram pedir à mulher de Sansão que lhe arrancasse o segredo do enigma, coisa que ela obteve. Contudo, o israelita não se embaraçou para desquitar-se da dívida: irritado, foi a Ascalão, onde matou trinta filisteus, servindo-se dos seus despojos para pagar o que devia. Era este o primeiro dano que ele infligia aos inimigos.

Tempos depois, voltou a Tamna para rever a esposa. Soube, porém, que fora dada em matrimônio a outro homem. Indignado, resolveu punir de novo os filisteus: capturou trezentas raposas, que ele amarrou duas a duas pela cauda; a cada par de caudas prendeu uma tocha acesa, e deixou os animais assim atados debandar pelos campos de trigo dos filisteus, que estavam maduros para a messe; o veemente incêndio provocado destruiu não só o grão, mas também as videiras e oliveiras.

Leia também: Os cabelos de Sansão

A história de Sansão (Jz 13-16)

Em represália, os adversários queimaram viva a mulher de Sansão e exigiram dos homens de Judá que lhes entregassem tão perigoso inimigo, refugiado então na caverna de Etam (país de Juda). O herói consentiu que seus conacionais o ligassem com duas cordas novas e levassem ao acampamento dos filisteus. Eis, porém, que, ao comparecer diante destes, Sansão rompeu seus liames, apanhou o primeiro objeto que encontrou – uma mandíbula de asno lançada ao chão – e com esta arma improvisada espancou mil adversários, fazendo com que os demais fugissem de medo.

Em outra ocasião, o homem valente foi à cidade filistéia de Gaza e deteve-se em casa de uma meretriz. Os filisteus então fecharam as portas da cidade durante a noite e, vigilantes, apresentavam-se a matá-lo de madrugada. Contudo, a altas horas Sansão saiu de casa, apoderou-se das portas da cidade e, colocando-as sobre os ombros, levou-as para uma montanha.

O herói, porém, devia perecer vítima da sua concupiscência. De volta à pátria, apaixonou-se ilicitamente por uma mulher chamada Dalila, ­provavelmente israelita. Os filisteus então muito insistiram para que ela se informasse a respeito do segredo da força de Sansão. Este, finalmente, revelou-lhe que tudo dependia da sua cabeleira; pelo que, certa vez, mandaram cortar os cabelos do lutador adormecido. Já sem forças, o israelita foi entregue aos inimigos, que lhe crivaram os olhos. Levaram-no a Gaza, ataram-no com duas correntes e obrigaram-no a volver a mó de um moinho, como faziam as mulheres e os escravos. Entrementes a cabeleira de Sansão crescia de novo e o vigor lhe voltava… Um belo dia, os filisteus resolveram festejar o seu deus Dagon pela vitória obtida sobre o tenaz adversário; reuniram-se em seu templo, aonde mandaram levar Sansão. Ora, enquanto a escarneciam, a vítima agarrou-se às duas colunas que sustentavam o teto da casa, e sacudiu-as, fazendo desmoronar a construção. Com isto, Sansão pereceu, mas, extinguindo-se desta forma, causou a morte de maior número de filisteus do que durante toda a sua vida. Os irmãos do herói prostrado lhe recolheram os despojos e os sepultaram no túmulo paterno.A narrativa bíblica assim concebida tem inspirado interpretações diversas, das quais, a título de ilustração, sejam aqui registradas algumas das mais curiosas:

a) Explicações mitológicas: houve quem quisesse identificar a história de Sansão com o mito de Hércules grego. Este é um herói solar. Ora, afirmam, os episódios de Sansão contêm mais de uma alusão ao sol: o nome do lutador provém do hebraico shemesh, sol; os seus cabelos seriam a designação figurada dos raios do sol; as relações de Sansão com mulheres indicariam que o deus Sol é o deus da fecundidade e da geração; o leão, as raposas e o asno teriam entrado na história de Sansão porque, em virtude das suas cores, simbolizam o sol!

Outros preferiram traçar um paralelo entre Sansão e Gilgamesh, herói da Babilônia antiga, ou entre Sansão e Re, deus egípcio;

b) Explicação folclórica: alguns autores recorrem às narrativas populares. A história de Sansão seria um canto tradicional dos filisteus levemente retocado pelo hagiógrafo; tinha por figura central um herói cuja força residia na cabeleira. O Autor Sagrado haveria feito desse tipo pagão um nazireu israelita!Já a variedade das tentativas de interpretação dá a entender que são, em grau maior ou menor, arbitrárias. O nome de Sansão, embora se derive de shemesh, sol, não é necessariamente indício da sobrevivência de algum mito solar em Israel; era assaz espalhado em Canaã sob as formas shpsgyn (yn indicava a pertinência à Divindade), Elshps, III – Shamshu. Os pais do herói, pois, terão adotado um nome usual no seu ambiente.

Aparentemente fabulosa é a noticia de que a força de Sansão residia em sua cabeleira. Este traço, porém, explica-se perfeitamente dentro do quadro religioso de Israel: deixar crescer o cabelo era um dos elementos do nazireato, instituição mosaica; significava a entrega ou consagração absoluta da criatura a Deus (a entrega era tal que não se queria cortar coisa nenhuma da pessoa consagrada). Em última análise, pois, era o fato de que Sansão estava consagrado a Deus e se deixava mover pelo Senhor, que o tornava vitorioso; a sua força extraordinária lhe provinha diretamente de Deus. Enquanto Sansão foi ao Senhor e às obrigações do nazireato (entre outras, à de não cortar os cabelos), era movido pelo Onipotente e se mostrava mais poderoso que tudo; desde, porém, que caiu em infidelidade (dando ocasião a que o despojassem da cabeleira), tornou-se tão fraco como qualquer homem. Não se queira ver, portanto, na cabeleira de Sansão mais do que um sinal – sinal de uma adesão de alma a Deus. Aliás, o texto sagrado mais de uma vez faz notar que o poder de Sansão descia diretamente do Altíssimo (cf. 13, 25; 14, 6.19; 15, 14). Para realizar o prodígio final, Sansão, em oração humilde e confiante, pediu o auxílio de Deus, reconhecendo que, embora já tivesse recuperado a cabeleira, esta já não era sinal; por sua infidelidade perdera o direito à tutela divina. É o que faz com que o Apóstolo, ao refletir sobre a história de Sansão em Hb 11, 32, indique a fé (no caso, docilidade a Deus) como segredo das vitórias deste Juiz.

Não há dúvida, Sansão foi moralmente fraco e cometeu pecados; parece não ter jamais observado a primeira e a terceira das prescrições impostas aos nazireus em Nm 6: evitar o toque de cadáveres e o consumo de vinho (cf. Jz 14, 8-10.19). Todavia o nazireato de Sansão, ou seja, a fidelidade que o Senhor pedia ao herói, era simbolizada apenas pela conservação da cabeleira.46

Após estas considerações, vê-se que não há razão para negar a historicidade dos episódios de Sansão. Parece inegável.

Porém, que a fantasia popular explorou com deleite os feitos portentosos da história; nas subsequentes gerações de Israel, Sansão foi descrito como o herói popular por excelência, dotado de coragem a toda prova, mas também de paixões desregradas e espírito mordaz. Notem-se os traços de “humor” e sátira contidos na narrativa tal como a redigiu o povo e a consignou o hagiógrafo:

O “humor” é muito vivo na cena dos campos que Sansão incendeia ateando tochas às caudas de raposas ligadas aos pares…, no episódio de Gaza, cidade bem vigiada, cujas portas ele, saindo à noite, arranca e carrega sobre os ombros; a descrição das invectivas dos filisteus, cuja civilização era mais avançada que a de Israel (cf. 1Sm 13, 19-22), e de suas correspondentes derrotas, infligidas por um só israelita, não pode deixar de decorrer num tom geral de sarcasmo, ora mais ora menos acentuado; alguns versos disseminados pela narrativa são expressões desta sátira (cf. Jz 14, 18s; 15, 16; 16, 15); em particular, observe-se que Sansão paga sua dívida aos trinta filisteus, despojando os próprios filisteus! A ironia vem a ser também apologia religiosa no episódio final: justamente quando os pagãos celebravam a festa de sua Divindade, divertindo-se à custa de Sansão, sofreram a maior de suas perdas; o desabamento do templo de Dagon ocasionado por um homem prisioneiro e cego que Javé movia, torna-se, conforme a mentalidade do Antigo Testamento, a mais clara demonstração da inanidade do ídolo, a manifestação de que “a força de Deus se expande em plenitude na fraqueza do homem que se Lhe confia” (cf. 2Cor 12, 9). É – poder-se-ia dizer – nesta frase paulina que se compendia a mensagem perene da história de Sansão.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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