A caridade segundo São João Crisóstomo

“Ainda
que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver
caridade, sou um bronze que soa, ou como um címbalo que tine. E ainda
que eu tivesse […] toda a fé a ponto de transportar montanhas, se não
tivesse caridade, não seria nada” (1 Cor 13, 2-3).
Essa magna e excelentíssima virtude, fundamento de toda a vida espiritual, “a mais excelente das virtudes”1,
foi vivida e transmitida nas pregações e obras do grande Padre da
Igreja Oriental, São João Crisóstomo. Sua existência centrou-se num
contínuo viver de amor pela Igreja e pelo próximo.

Natural de Antioquia, nascido por volta do ano 347 numa família cristã,
estudou, na escola de Libânio, filosofia e retórica, na qual teve grande
êxito, sendo considerado um dos maiores oradores, não somente por sua
ilustre cultura, mas, principalmente, por serem suas palavras embebidas
de intensa piedade e ardente amor evangélico.2 Compôs várias
obras e estas se tornaram de tal maneira apreciadas que o próprio São
Tomás de Aquino, Doutor Angélico, desejava lê-las.

Conta-se que em certa ocasião, voltando de Saint Denis juntamente com
alguns frades de sua ordem, São Tomás viu de longe a imensa cidade de
Paris. Um de seus companheiros comentou como seria de grande proveito
para a obra de São Domingos serem possuidores da cidade de Paris. O
Doutor Angélico, atônito, perguntou-lhe, então, o que haveriam de fazer
com ela. O frade deu-lhe a idéia de vendê-la ao Rei da França e, com o
dinheiro, mandar construir mosteiros para que a Ordem pudesse receber
mais vocações. Porém, para o espanto do frade, São Tomás respondeu-lhe
que preferia antes os comentários de São João Crisóstomo sobre o
evangelho de São Mateus, por serem eles de grande valor teológico e de
enorme benefício às almas.3

O amor pelas coisas sagradas já se fazia sentir quando São João
Crisóstomo era muito jovem, possuindo grande apreço pelas Sagradas
Escrituras, aprofundando seus estudos de teologia junto a Diodoro de
Tarso, na mesma cidade de Antioquia.

Após algum tempo, quis buscar algo mais excelente para sua vida
espiritual. No pleno ardor de sua juventude, marchou rumo aos montes
vizinhos. Ali, pôs-se sob orientação de um ancião virtuoso, disposto a
imitar sua austeridade de vida.

Durante dois anos, recebeu ensinamentos de seu mestre. Ao cabo desse
período de intenso estudo, resolveu isolar-se numa gruta, vivendo um
rigoroso ascetismo e dedicando a maior parte do tempo à contemplação e à
oração. Entretanto, devido ao rigor de suas penitências, caiu
gravemente enfermo, sendo obrigado a voltar à vida comum.4

A sua volta foi, sem dúvida, providencial. Após o regresso, foi ordenado
e logo lhe mandaram fazer pregações na principal igreja da cidade. Este
foi o período mais fecundo de sua vida, proferindo as homilias mais
excelentes que lhe valeram o qualitativo que passou a fazer parte do seu
nome: Crisóstomo, isto é, Boca de Ouro.

Entre suas inúmeras homilias encontra-se uma sobre o amor de Cristo na
célebre afirmação de São Paulo: “Eis por que sinto alegria nas
fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo
desgosto sofrido por amor de Cristo” (2 Cor 12,10).

Sendo a caridade a virtude teologal por excelência, mestra das demais
virtudes como afirma o padre Royo Marín: ela “é a rainha de todas as
virtudes, a mais excelente, a forma de todas as demais. Todas as outras
virtudes – inclusive a fé a esperança – estão ao serviço dela e tem a
missão de defendê-la e robustecê-la”6, asseverava que o Apóstolo “só se
alegrava no amor de Cristo, que era para ele o maior de todos os bens;
com isto julgava-se o mais feliz dos homens”.7

Como Santa Teresinha que através do “amor misericordioso” satisfez todos os seus anseios:
A caridade deu-me a chave de minha vocação. (…) Compreendi que só o
Amor encerra todas as vocações, que o Amor é tudo, que abraça todos os
tempos e lugares… Numa palavra, ele é eterno!… Então, no auge da
minha alegria delirante, exclamei: Oh, Jesus, meu Amor…Encontrei,
enfim, minha vocação; minha vocação é o Amor!… Sim, encontrei meu
lugar na Igreja, e este lugar, oh meu Deus, fostes vós que mo
destes…No Coração da Igreja, minha Mãe, serei o Amor…8

Aquele cuja alma está interiormente tomada por esse amor, a ponto de
desprezar por causa de Deus a si mesmo e tudo o que possui, este é
perfeito”.9 Movido assim, São Paulo desprezava seu instinto
de sociabilidade para ser amado por Cristo. A ver-se privado desse amor e
bem visto pelos homens “preferia ser o último de todos, isto é, ser
contado entre os réprobos, do que encontrar-se no meio de homens
famosos, mas privados do amor de Cristo”.10

E São João Crisóstomo acrescenta: Tal é, com efeito, [o amor] que não
deixa em nós nenhum desejo do terreno e nos transporta ao outro amor.
Aquele que por este amor está possuído, por mais que tenha que renunciar
os seus bens, rir-se da glória, ou ainda entregar sua própria vida,
tudo faz com suma facilidade11

E é amando que a pessoa chega a praticar atos heróicos de despretensão, como bem afirma o padre Royo Marín 12: “O amor é a alavanca da vida espiritual, o procedimento mais rápido para chegar ao heroísmo”.

Para o Apóstolo, continua São João, “gozar do amor de Cristo era a vida,
o mundo, o anjo, o presente, o futuro, o reino, a promessa, enfim,
todos os bens. Fora disto nada tinha por triste ou alegre”. Ó mistério
do amor!

“Quem poderá explicar o amor de Cristo?… Calem-se os homens, calem-se
as criaturas… Calemos a tudo, para que no silêncio ouçamos os
sussurros do Amor, do Amor humilde, do Amor paciente, do Amor imenso,
infinito que nos oferece Jesus com seus braços abertos na Cruz”.13

São João Crisóstomo viveu, também, inteiramente abrasado de amor, e pelo
poder da caridade alcançou a mais plena união com Deus, pois “a
grandeza de uma vida é medida pelo amor” e é ele que faz heróis e
santos.14

***
1 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.23, a.6
2 LLORCA B.; VILLOSLADA, R.G; LABOA, J.M. Historia de la Iglesia. Madrid: BAC, 2005.
Teresinha. São Paulo: Paulus, 2002.
3 CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo. Texto griego,
version española y notas de Daniel Ruiz Bueno. 2.ed. Madrid: BAC, 2007.
4 COLOMBAS, G. M. El monacato primitivo. 2.ed. Madrid: BAC, 1998.
5 CRISÓSTOMO, S.J. Vida e obras. Disponível em Acesso em 05 out. 2010.
6 ROYO MARÍN, A. Los grandes maestros de la vida espiritual. Madrid: BAC, 2002. p. 369
7 Cf CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo. p. 1208
8 LISIEUX, T.. Obras Completas de Santa Teresa do Menino Jesus e da
Santa Face. Tradução das. Monjas do Carmelo do Imaculado Coração de
Maria e Santa.
9 TORREL, J-P. Santo Tomás de Aquino. Tradução de J. Pereira. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2008. p. 424
10 Cf CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo p. 1209
11 Loc.cit. p.115
12 Cf ROYO MARÍN, A. Op. cit p. 368
13 ARNÁIZ BARÓN, R. Obras Completas. 4. ed. Burgos: Monte Carmelo, 2002. p. 869
14 PHILIPON, M. O sentido do eterno. Tradução de Maria Cecília de M. Duprat. São Paulo: Flamboyant, 1964. p. 49

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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