A AIDS e o preservativo – Mons. Michel Schooyans

Extrato do
livro publicado em 2005 por Mons. Michel Schooyans

 É sabido
que muitas pessoas contraíram a AIDS sem que sua responsabilidade moral tenha
sido nem um pouco envolvida. Essa doença pode ter sido transmitida por ocasião
de uma transfusão de sangue, por um erro médico ou contato acidental. Há,
também, pessoas que cuidam desses doentes que contraem o mal a se dedicarem a
esses doentes soropositivos.

Esses não
são os assuntos que examinaremos aqui. Nós nos referiremos às declarações
emitidas nesses últimos anos provenientes de diversas personalidades do mundo
acadêmico e/ou de eclesiásticos, principalmente moralistas e pastores. Nós o
chamaremos de dignitários. Vamos nos abster de citá-los para evitar
personalizar o debate e para concentrar nossa atenção sobre a discussão moral.

Desconcerto
e confusão

Tratando do
uso do preservativo no caso da AIDS, essas declarações semeiam um desconcêrto
na opinião pública e na Igreja. Elas são muitas vezes acompanhadas de
considerações surpreendentes relativas à pessoa e a função do Papa, bem como à
autoridade da Igreja. Em seguida encontram-se, também, as habituais ladainhas
de queixas sobre a moral sexual, o celibato, o homossexualismo, a ordenação de
mulheres, a comunhão dada aos divorciados que se tornam a casar e aos
aborteiros, etc.  Uma ocasião entre
outras de globalizar os problemas (…).

Esses
dignitários se manifestaram com uma certa complacência na mídia de grande
público. Preconizam o uso do preservativo em caso de risco de contaminação da
AIDS pelo parceiro são. A Igreja deveria, segundo eles, mudar sua posição nesse
caso.

Essas
declarações provocam muita confusão na opinião pública; elas confundem os
fiéis, dividem os padres, abalam o episcopado, desacreditam o corpo cardinalício,
minam o magistério da Igreja e atingem frontalmente o Santo Padre. Hoje, essas
declarações muitas vezes provocam consternação já que o povo espera mais
prudência, mais rigor moral, teológico e disciplinária da parte desses
dignitários. Influenciados pelas idéias em moda em alguns meios, esse
dignitários se esforçam por “justificar” o uso do preservativo improvisando uma
“argumentação”, com truques que já não enganam ninguém, como o mal menor e o
duplo efeito.

Um desses
dignitários foi além tornando o preservativo um dever moral se se quer evitar
infringir o V° mandamento. De fato argumenta ele, se uma pessoa com AIDS se
recusa a praticar a abstinência, deve proteger seu parceiro e o único meio de o
fazer, nesse caso, é o de recorrer ao preservativo.

Tais
propostas nos deixam perplexos e são oriundas de um conhecimento parcial da
moral mais natural e em particular da moral cristã. Sua maneira de apresentar
as coisas é, pelo menos, muito estranha.

Um problema
de moral natural

Palavras
alentadoras mas enganosas

A
argumentação desses dignitários sobre o uso do preservativo é de um simplismo
inesperado e se recomendaria, com prazer, aos interessados tomar conhecimento
de estudos científicos e clínicos autorizados, antes de repetir e de abonar
boatos há tempo desmentidos por testes publicados nas revistas de defesa dos
consumidores.

Como
silenciar que o efeito de “contenção” que parece exercer o preservativo é
ilusório? Ilusório o efeito o é na medida em que esse preservativo é
mecanicamente frágil, incita à multiplicação de parceiros, favorece a variedade
de experiências sexuais, e na medida em que, por todas essas razões, aumenta os
riscos em vez de diminuí-los.

Quanto à única
prevenção eficaz deve ser procurada na renúncia aos comportamentos de risco e
na fidelidade.

Desse ponto
de vista, a qualificação moral do uso do preservativo é um problema de
honestidade científica e de moral natural. A Igreja tem não somente o direito
mas também o dever de se pronunciar sobre esse assunto.

“O fracaso
é a morte certa”

Ora as
intervenções dos dignitários omitem mencionar estudos recentes e de valor
científico incontestáveis, tal como o do Dr. Jacques Suaudeau.[1]
Na falta de serem informados sobre recentes estudos, os autores poderiam ao
menos levar em conta as advertências anteriores emanadas das mais altas
autoridades científicas. Em 1996, por exemplo, lê-se no relatório do Professor
Henri Lestradet, da Academia Nacional de Medicina (Paris)[2]:

“Convém
[…] assinalar que o preservativo foi inicialmente preconizado como meio
contraceptivo. Ora […] o índice de “falha” varia em geral entre 5 a 12% por
casal e por ano de uso.

A priori,
[…] vê-se mal como o HIV quinhentas vezes menor que um espermatozóide se
beneficiaria de um índice de falha inferior. Entretanto há uma grande diferença
entre essas duas situações. De fato, quando como um meio de contracepção o
preservativo não é perfeitamente eficaz, sua falha tem como conseqüência o
desenvolvimento de uma nova vida, enquanto que com o HIV, a falha é a morte
certa.”[3]

Considerando
em seguida o caso dos soropositivos, o mesmo relatório assinala que:

“A única
atitude responsável da parte de um homem soropositivo é, na realidade, de se
abster de toda relação sexual, protegida ou não. […] Se uma relação estável
do casal é considerada, as recomendações deveriam ser as seguintes: fazer, cada
um, um teste de detecção e repeti-lo três meses depois e, nesse intervalo,
abster-se de toda relação sexual (com ou sem preservativo). Em seguida
privilegiar a fidelidade recíproca”[4]

Os dignitários,
autores das considerações que analisamos, fariam bem se prestassem atenção a
uma conclusão dramática do estudo médico que citamos:

“A
afirmação mil vezes proclamada (pelos responsáveis pela saúde, o Conselho
superior da AIDS e as associações de luta contra a AIDS) da segurança total
levada em todas as circunstâncias pelo preservativo é, sem nenhuma dúvida, a
fonte de muitas e numerosas contaminações das quais se recusa atualmente a
descobrir a origem”[5].

Campanhas
internacionais são feitas nas sociedades “expostas” para inundá-las de
preservativos . Autoridades religiosas são convidadas a lhe dar seu eminente
patrocínio. Apesar dessas campanhas, e provavelmente por causa dessas
campanhas, progressos da pandemia são regularmente observados.

Em julho de
2004, uma das mais altas autoridades mundiais em matéria de AIDS, o médico
belga Jean-Louis Lamboray, pediu demissão do Programa das Nações Unidas contra
a AIDS (UNAIDS). Sua demissão foi motivada pela “falha das políticas para frear
a propagação dessa doença”. Essas políticas fracassaram porque a “UNAIDS
esqueceu que as verdadeiras medidas preventivas se decidem nas casas das
pessoas e não nos escritórios dos ‘experts'”[6].

Antes de
lançar de lançar declarações peremptórias, os dignitários poderiam se lembrar
do que declarava um médico muito badalado pela mídia e pouco suspeito de
simpatias pelas posições da Igreja.  Eis
o que escrevia, em 1989, o Professor Léon Schwartzenberg:

“São, com
certeza, principalmente os jovens que serão os propagadores [da AIDS]; ora eles
não estão absolutamente conscientes do drama da AIDS, que para eles é uma
doença de velho. Eles são confortados nessa convicção pela atitude da classe
política, muito mais velha que eles e que organiza uma propaganda débil: a
publicidade oficial a favor dos preservativos parece ser feita por pessoas que
jamais os utilizam para pessoas que não querem utilizá-los”[7].

Os
ouvintes, leitores e telespectadores não podem, portanto, engolir, sem mais nem
menos, palavras imprudentes que lhes dirigem os dignitários sem o que corram o
risco de, como eles, se verem acusados mais cedo ou mais tarde de estarem “na
fonte de muitas e numerosas contaminações”.

Um problema
de moral cristã

Além do
mais, é falacioso afirmar que a Igreja não tem um ensino oficial sobre AIDS e o
preservativo. Mesmo se o Papa evita sistematicamente utilizar essa última
palavra, os problemas morais levantados pelo uso do preservativo são abordados
em todos os grandes ensinamentos que se referem às relações conjugais e aos
fins do matrimônio. Desde que se aborda a questão da AIDS e do preservativo à
luz da moral cristã, é preciso lembrar que esta abrange pontos essenciais: a
união carnal deve se fazer dentro do matrimônio monogâmico do homem e da
mulher; a fidelidade conjugal é o melhor baluarte contra as doenças sexualmente
transmissíveis e a AIDS; a união conjugal deve ser aberta à vida – ao que
convém acrescentar o respeito à vida do outro.

Cônjuges ou
parceiros?

Segue-se
que a Igreja não tem a incumbência de pregar uma “moral” da parceria sexual.
Ela deve ensinar e ensina uma moral conjugal e familiar. Ela se dirige aos
esposos, aos casais unidos sacramentalmente pelo matrimônio, que é monogâmico e
heterossexual. As posições divulgadas a respeito do preservativo pelos
dignitários dizem respeito a parceiros que mantêm relações pré- ou extra-
matrimoniais, episódicas ou seguidas, heterossexuais, homossexuais, lesbianas,
sadomasoquistas, etc. Não se vê porque a Igreja, e menos ainda dignitários
investidos de autoridade magistral, deveriam, com o risco de escandalizar, vir
a afiançar a vagabundagem sexual e gerar os pecados daqueles que, na maioria
dos casos, zombam completamente da moral cristã: “Pequem, meus irmãos, mas com
toda segurança!”. Depois do “Sexo Seguro” (Safe Sex) eis aí o “Pecado Seguro” (Safe
Sin).

A Igreja e
seus dignitários não têm como missão explicar como fazer para pecar
confortavelmente. Abusariam de sua autoridade se se metessem a dar conselhos
sobre a maneira de concluir um divórcio, uma vez que a Igreja considera que o
divórcio é sempre um mal. Chegar-se-ia, inclusive, a endurecer o pecador se se
lhe ensinasse como deveria proceder para escapar às conseqüências indesejáveis
do seu pecado.

Daí a
pergunta: é admissível que dignitários, normalmente guardiões da doutrina,
ocultem as exigências da moral natural e da moral evangélica, e que antes não
apelem para uma mudança de conduta?

É
inadmissível e irresponsável que dignitários dêem seu aval à idéia de “safe
sex”, utilizada para tranquilizar os usuários do preservativo, uma vez que é
sabido que essa expressão é mentirosa e leva ao abismo. Esses distintos
dignitários deveriam se perguntar se não somente não induzem a desprezar o VI°
mandamento da lei de Deus, mas também a descumprir o V° mandamento: “Não
matarás”. A falsa segurança oferecida pelo preservativo, longe de reduzir os
riscos de contaminação, multiplica-os. A crítica feita de não honrar o V°
mandamento volta-se contra aqueles mesmos que a endereçavam aos “parceiros” que
não fazem uso do preservativo.

A argumentação
invocada para tentar “justificar” o uso “profilático” do preservativo fica
assim reduzida a zero, tanto do ponto de vista da moral natural quanto da moral
cristã.

Talvez
fosse mais simples dizer que, se os cônjuges se amam verdadeiramente e se um deles
é atingido pela cólera, peste bubônica ou tuberculose pulmonar, eles irão se
abster de contatos para evitar o contágio.

O objetivo:
o grande reboliço

Um erro de
método

No início
desta análise, assinalávamos que os dignitários que preconizam o preservativo
associavam, freqüentemente, a seu pleito outras causas além da dos “parceiros”
sexuais previdentes e organizados. De fato, focaliza-se a atenção sobre esse
caso a fim de colocar em questão todo o ensino da Igreja sobre a sexualidade
humana, sobre o matrimônio, sobre a família, sobre a sociedade, sobre a própria
Igreja. Isso explica em parte a ausência quase total de interesse desses
dignitários pelas conclusões científicas e pelos subsídios da moral natural.
Entretanto os dignitários deveriam levar em consideração essas conclusões e
esses subsídios antes de tomarem em consideração os ensinamentos da moral
cristã. Em razão desse erro de método – voluntário ou não – os dignitários
querem abrir o caminho que leva a transtornar a moral cristã.  Querem até transtornar a dogmática cristã,
uma vez que se reservam o direito de apelar para suas opiniões em vista de
convocar toda a instituição eclesiástica a uma reforma susceptível de abonar sua
moral e sua dogmática. Eles pretendem assim participar, a seu nível, dessa nova
revolução cultural que analisamos em um outro capítulo desta obra.

Entretanto,
como esses dignitários cometeram, desde o início, um erro de método,
negligenciando informações essenciais do problema que pretendem tratar, eles se
engajam inevitavelmente num terreno escorregadio. A partir de premissas falsas,
só se pode chegar a conclusões falsas. É fácil ver onde conduzem as
considerações erráticas desses dignitários. Podem ser resumidas em três
sofismas demonstráveis por qualquer colegial.

Três
sofismas:

Primeiro
sofisma

Maior: Não
usar preservativo favorece a AIDS;

Menor: Ora,
favorecer a AIDS é favorecer a morte;

Conclusão:
Logo, não utilizar o preservativo é favorecer a morte.

Esse
raciocínio torcido está baseado na idéia de que proteger-se é utilizar o
preservativo. Os parceiros podem ser vários. A fidelidade nem mesmo é
considerada. Sendo os impulsos sexuais supostamente irresistíveis e a
fidelidade conjugal impossível, o único meio para não contrair a AIDS é o uso
do preservativo

Segundo sofisma

Maior: O
preservativo é a única proteção contra a AIDS;

Menor: Ora
a Igreja é contra o preservativo;

Conclusão:
Logo a Igreja favorece a AIDS.

Esse
pseudo-silogismo repousa sobre uma afirmação abusiva enunciada na maior, a
saber que o preservativo é a única proteção contra a AIDS. Estamos em presença
de uma petição de princípio. Trata-se aqui de um raciocínio falacioso em que, a
primeira premissa sendo apresentada como incontestável, segue-se que o resto
também o é. Afirma-se como verdadeiro o que deveria ser demonstrado, isto é,
que o preservativo é a única proteção contra a AIDS.

Um caso de
polissilogismo

Eis
finalmente um exemplo de pseudo-polissilogismo, um sorites sofístico, sobre o
qual os dignitários poderiam meditar:

Maior: A
Igreja é contra o preservativo;

Menor: Ora,
o preservativo impede a gravidez não desejada;

Conclusão/Maior:
Logo a Igreja favorece as gravidezes não desejadas;

Menor: Ora,
as gravidezes não desejadas são solucionadas pelo aborto;

Conclusão:
Logo, a Igreja favorece o aborto.

Em resumo,
a renovação da moral e da eclesiologia cristãs não têm nada a esperar da
exploração pérfida dos doentes e da sua morte.

 

© Michel
Schooyans

schooyans@mora.ucl.be

Michel
Schooyans é Membro da Academia Pontifícia de Ciências Sociais, da Academia
Pontifícia pela Vida, da Academia Mexicana de Bioética. É Consultor do Conselho
Pontifício para a Família.

 

[1] Dr.
Jacques SUAUDEAU, artigo “Sexo seguro” no Lexicon,
Madrid, Ed. Palabra, 2004; ver pp. 1041-1061. A edição italiana publicada em
Bolonha. Ed. EDB, 2003.

[2] Henri
LESTRADET, Le Sida, Propagation et
prévention. Rapports de la commission VII de l’Académie
nationale de Médicine, avec
commentaires, Paris, Éditions de Paris, 1996.

[3] Le
Sida, o.c. anteriormente; cf. p. 42

[4] Le
Sida, o.c. anteriormente; cf. p. 46

[5] Le
Sida, o.c. anteriormente; cf. pp. 46 s.

[6] Cf. la dépêche de l’ACI du 6 juillet 2004

[7] Léon Schwartzenberg, Intreview em La Libre
Belgique (Bruxelas) 13 d março de 1989, p. 2

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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