A Moralidade no Antigo Testamento ( II ) – EB Parte 5

Como se vê, a fim de alçar o
homem ao ideal de imitar a Deus, o Legislador, no Antigo Testamento, quis
partir das observâncias imperfeitas a que o semita estava habituado;
inseriu-as, porém, dentro da seguinte perspectiva:

DEUS É SANTO; POR ISTO, O SEU POVO DEVE SER SANTO:                          (nexo necessário, até hoje válido)

E, PARA QUE SEJA SANTO,
OBSERVEM EM ESPÍRITO MONOTEÍSTA AS NORMAS DE PUREZA TRADICIONAIS: (nexo contingente, ab-rogado
desde que o gênero humano foi dotado de consciência Moral mais perfeita). 40

É preciso acrescentar que,
além do significado acima exposto, as proibições relativas a animais e objetos
impuros visavam criar uma barreira entre o povo de Deus e estrangeiros
(cananeus, mesopotâmios, gregos e romanos) com que Israel se havia de encontrar
no decorrer da história; justamente a necessidade de não contrair impureza
ritual, exterior, fez com que Israel não se tenha mesclado com as nações pagãs,
nem quando estava disseminado no exílio (587-539 a.C.), nem quando a terra
santa foi ocupada pelos helenistas no tempo dos Macabeus (165-134 a.C.).  Assim as prescrições rituais, impondo
distância do paganismo, preservavam a verdadeira fé, ajudavam o judaísmo a
realizar sua missão religiosa.

Note-se ainda o seguinte: é
sentença aceita por muitos exegetas que em Israel a condenação de alguns
animais como impuros (o camelo, o porco, a lebre, o cavalo, o asno, o cão) se
deve em parte a uma reação contra o culto dos mesmos nos povos vizinhos de
Israel.  Os semitas associavam
tradicionalmente os “gênios” do deserto, potências superiores (seirim, sedim,
Azazel, siyyim), com certas espécies de animais.

O fato de que o israelita,
por tradição de seus antenatos semitas, admitia certos atos e estados de
impureza legal, extrínseca, destituída de culpa moral intrínseca, influiu no
conceito de pecado que o povo de Deus nutriu até os tempos de Cristo.  Vivendo sempre de sobreaviso contra as possíveis
contaminações por doenças ou contrato de animais ou objetos impuros, os
hebreus, depois de ter recebido a Lei mosaica com seus preceitos morais, eram
propensos a analisar, nas transgressões da Lei, mais o ato exterior do que a
intenção do transgressor; não davam grande atenção ao que propriamente
caracteriza o pecado: a desobediência de uma personalidade contra um Deus
pessoal (cf. págs. 180s).

Como quer que seja, os
interditos meramente rituais, legais, iam do seu modo contribuindo para
inculcar ao povo de Israel o conceito de transcendência divina ou a idéia de
que Deus por si é alheio a muita coisa familiar ao homem pecador.  Com o tempo, porém, ao se apurar a
mentalidade filosófica de Israel, os hebreus foram concebendo mais exatamente o
caráter pessoal e sumamente moral da religião; perceberam então melhor o
significado meramente pedagógico, secundário, de tais proibições.41

A título de complemento,
seguem-se breves observações sobre as principais teorias que se propõem
elucidar a origem das leis de pureza legal:

1.  O motivo de higiene, embora possa estar na
origem de muitas dessas normas, não é suficiente por si só para explicar todas
as proibições rituais.  Com efeito,
embora possa justificar a proibição da carne de porco, não justifica a do cavalo,
a do asno, a da lebre (…) os árabes antigos e modernos sempre comeram carne de
camelo, de avestruz, que a Lei mosaica proíbe; os beduínos do deserto da Síria
comiam camundongos, também vedados aos hebreus.

2. Também não basta apelar
para a repugnância que a carne dos animais proibidos suscita ao paladar.  A águia, o abutre, vedados por Moisés, talvez
causem repulsa, por se alimentarem de cadáveres; mas o paladar ou os gostos são
algo de bem relativo; o profeta Isaías (66,17) via-se obrigado a anunciar
graves castigos àqueles que se deleitavam em comer carne de porco, camundongos
e manjares abomináveis! (…)

3.  Quanto aos motivos de tabu e totemismo, são
opostos à medula da Lei mosaica, a qual apregoa estrito monoteísmo, um só Deus,
e um Deus que não tolera ser representado por imagens alguma, seja de homem,
seja de animal. 

Destas considerações se
percebe que só por um concurso de fatores diversos se explicam cabalmente os
preceitos de pureza legal vigentes entre os povos primitivos.  Talvez com o decorrer dos tempos os homens
tenham perdido a consciência clara do motivo por que observavam a maioria
desses usos.

§  7º  A
ESCRAVATURA

Após tudo que foi dito sobre
a mentalidade dos antigos orientais e de Israel, já não causa surpresa
verificar que esteve em vigor neste povo a escravatura.

A Lei de Moisés, embora não
tenha abolido praxe tão comum e duradoura entre as nações, assegurou, ao menos
aos escravos israleitas,42  tratamento
assaz brando, tratamento que, em confronto com o de outras legislações, podia
ser equiparado ao de um doméstico ou mercenário (cf. Lv 25, 39s).

Era geralmente a pobreza, a
falta de recursos para pagar as dívidas, que motivava a escravidão em Israel: o
devedor indenizava o credor dando-lhe o seu trabalho e quase a sua
personalidade.  Todavia, após seis anos de
serviço não remunerado e castigos infligidos segundo o arbítrio do patrão, o
escravo israelita possuía o direito de ser restituído à liberdade (cf. Êx. 21,
2s).  Emancipando-o, o senhor tinha
obrigação de lhe fornecer um pouco de gado e produtos agrícolas, a fim de que
pudesse viver até encontrar um ganha-pão próprio (cf. Dt 15, 12-15).

Caso no período dos seis
anos de servidão se registrasse um ano de jubileu (todo ano qüinquagésimo, ano
de renovação, de perdão geral, restauração de tudo à ordem inicial), o escravo
recuperaria então a liberdade.  A Lei
previa o caso de que um escravo, sentindo-se bem em casa do patrão, não
quisesse fazer uso do direito de voltar ao estado livre (cf. Êx. 21, 5s.; Dt
15,16s), o que é indício de que realmente vigorava notável senso humanitário
entre os patrões israelitas.

Os escravos usufruíam do
repouso do Sábado (cf. Êx. 20,10) e participavam das festas prescritas pela Lei
(cf. Êx. 12,44; Dt 12, 12,18; 16, 11,14).

Como se depreende, a
Revelação divina contribuía poderosamente para mitigar a sorte dos servos
israelitas.  Quanto ao fundamento sobre o
qual a Lei mosaica estabelecia essas normas, era não simples filantropia, mas
explicitamente a crença religiosa de Israel: a Torá lembrava, sim, a todos os
filhos de Abraão que haviam sido escravos no Egito, tendo-os Javé resgatado
para que todos fossem libertos de Deus (cf. Lv 25, 42s.; Dt 15,15); o exemplo
da Benevolência divina era assim incutido como norma que, caso fosse
coerentemente interpretada, induziria a abolição da escravatura em Israel (de
resto, o exemplar da Benignidade de Deus para com seu povo mais de uma vez era
evocada pela Lei para abrandar os costumes dos hebreus) (cf. Lv 23, 31-33; 24,
43; 25, 38, 55; 26,12).

Talio, talionis, é
substantivo derivado do adjetivo talis, tal.

Êx. 21, 23-25.  Trechos semelhantes ocorrem em Lv 24, 17-21,
Dt 19, 21; Êx. 21, 12-14.

Eis, por exemplo, como reza
a Lei Romana das XII Tábuas:

“Si membrum rupit, ni cum e
o pacit, talio esto. Sofra o talião aquele que tiver fraturado um membro (alheio),
a menos que haja (outro) entendimento”.

É o que atesta, por exemplo,
o historiador judeu Flávio José no séc. I da nossa era: “Aquele que mutilar o
próximo padecerá pena idêntica, sendo despojado daquilo que tiver tirado ao
próximo.  Dado, porém, que a pessoa
lesada prefira receber uma quantia monetária, a lei lhe reconhece o pleno
direito de avaliar a perda sofrida, e autoriza-a a proceder assim, caso tema
cometer alguma crueldade”. (Ant. IV, 8,35)

Cf. o tratado rabínico
Mishna, Babba Quamma VIII, 1,5.

As palavras de Jesus acima
citadas de modo nenhum implicam que à justiça cristã não seja lícito aplicar
penas aos réus comprovados.  Estas,
porém, hão de ser avaliadas segundo o grau de responsabilidade moral do delinqüente,
não unicamente segundo o dano material que o réu haja produzido.

Herém, em sua acepção
original semítica, significa algo de “separado, interditado” ou, na linguagem
religiosa, subtraído ao uso profano, reservado para Deus.  Podia haver um herém de santidade;
determinado objeto era então oferecido ao serviço de Deus por uma consagração
irrevogável (cf. Lv 27, 28s; Mq 4,13). 
Havia igualmente um herém de maldição ou anátema: certa pessoa ou coisa,
abominável aos olhos de Deus, era destruída em afirmação da santidade e da
justiça de Deus.  Esta imolação não era
um sacrifício propriamente dito, pois não consistia no oferecimento de algo de
agradável a Deus.

A mesma raiz semita deu a
palavra harim, o harém dos orientais, apartamento secreto das mulheres.

Annales, 13,57.

Eis mais alguns exemplos de
prática do herém fora de Israel;

Os címbrios e os teutônios,
depois de insigne vitória sobre o cônsul romano Manílio, inutilizaram toda a
presa capturada: as vestes dos inimigos foram rasgadas e atiradas ao vento, o
ouro e a prata lançados ao rio, os cavalos precipitados em desfiladeiros, o
equipamento dos homens destruído em mil pedações (cf. Orósio, Historiarum liber
5,16).

Os ligúrios fizeram algo de
semelhante em 176 a.C.,
esquartejando os prisioneiros, matando os animais, quebrando contra as muralhas
vasos de diversos tipos, em suma aniquilando os despojos consideráveis de que
se haviam apropriado em Módena.

Os gauleses queimavam a
presa ou atiravam-na nos lagos.

Entre numerosíssimos objetos
de  bronze escavados nas turfeiras da
Dinamarca não se encontrou um só intacto, podendo servir ulteriormente, nenhuma
arma que não tivesse sido quebrada.

Descobriu-se mesmo uma
inscrição de Mesa, rei de Moab, referente à batalha que ele travou
vitoriosamente contra Joram, rei de Israel (852-846 a.C.), batalha mencionada
em 2Rs3, 4-17:

“… E Camos me disse: “Vai,
toma Nebo combatendo contra Israel”. 
Fui-me de noite e combati contra ele, desde o despontar da aurora até o
meio-dia; tomei-o, matei tudo; sete mil homens e crianças e mulheres e donzelas
e servas, pois eu os devotara ao anátema em honra de Astar-Camos, e apreendi os
objetos de Javé e os levei à presença de Camos”.

Notícias colhidas do  artigo de F.M. Abel “L’anathème de Jéricho et
la maison de Rahab, em Revue biblique, 57 (1950), 323s.

A própria Sagrada Escritura
dá testemunho de quanto esse uso era freqüente entre os pagãos (cf. 2Cr 32, 14;
Is 37, 11; 2Rs 14,11).

Assim os madianitas
induziram Israel à luxúria e à idolatria durante a travessia do deserto (cf.
Nm, 25, Is; 31, 16); os cananeus não exterminados contaminaram freqüentemente o
povo de Deus por ocasião da ocupação da Terra Santa (cf. Sl 105, 28s, 34-38 e o
quadro da história dos Juízes em Jz 2, 10-19).

Muito a propósito vêm as
observações de A.Clamer, La
Sainte Bible, II (Paris, 1946), 563):

“Moisés, embora tivesse de
Deus e da religião conceitos muito superiores aos de seus contemporâneos, não
deixava de sofrer a influência do ambiente, de sorte que em vários pontos ele
seguia o modo de ver dos eu tempo, não recusando diante da violência mesmo
sangrenta, quando a sua obra de chefe do povo estivesse em jogo ou desde que se
tratasse de assegurar a salvação de Israel, povo de Javé.  Já que ele via, não sem razão, no paganismo
cananeu o mais grave perigo ao qual estava exposta salvação, não hesitava em
recorrer às leis de guerra vigentes outrora e assim exterminar os cananeus e os
outros habitantes da terra, a fim de conjurar o dito perigo.  Deus, tendo confiado a Moisés a chefia do seu
povo, permitia (…) tal procedimento”.

Assim, ao caminhar com a
arca do Senhor e o povo pelo deserto, exclamava Moisés: “Levantai-vos, Senhor,
e que os vossos inimigos sejam dispersos! Fujam diante de vossa face aqueles
que vos odeiam!”  (Nm 10,35).

Conforme 1Sm 30,26, “de
volta a Siceleg, Davi enviou parte da presa (dos amalecitas) aos anciãos de
Judá, seus amigos, dizendo: “Eis um presente para vós, proveniente da presa dos
inimigos de Javé”.

Os israelitas tinham uma
concepção do universo e da história estritamente religiosa, assim como uma
linguagem muito menos matizada ou filosófica do que a nossa. Por isto não
costumavam distinguir entre o que Deus faz diretamente, o que Ele faz por
causas segundas ou instrumentos e o que Ele apenas permite.  Em consequência, os hagiógrafos atribuem
diretamente a Javé os termos com que os chefes israelitas promulgavam a lei do
herém segundo o costume vigente entre os antigos povos.

Foi o que o Senhor fez
rejeitando o rei Saul, conforme 1Sm 15, 16-30; entregando freqüentemente os
israelitas à opressão dos inimigos no tempo dos Juizes (cf. Jz 1, 21-33 e 2,
11-23).

Os monumentos e os textos
assírios dão testemunho da maneira realmente bárbara como os soldados pagãos
tratavam seus prisioneiros de guerra: crivavam-lhes os olhos, tomavam-nos como
supedâneos para os pés dos monarcas etc. (cf. também Heródoto, IV, 159).

Na Sagrada Escritura mesma,
o profeta Amós repreende os amonitas porque, entre outros crimes cometidos,
abriram o ventre de mulheres israelitas grávidas (cf. Am 1, 13; Os 14,1).  O mesmo profeta descreve e condena as atrocidades
patriarcas em guerra pelos sírios, os filisteus, os tírios, os edomitas, os
amonitas, os moabitas (Am 1, 3-2, 3).

Eliseu prediz que os sírios
há de esmagar as criancinhas e violar o ventre das mulheres grávidas de Israel
(cf. 2 Rs 8,12).

Sabe-se outrossim, por
2Rs25,7, que os babilônios estrangularam os filhos de Sedecias, rei de Judá, ao
passo que a este Nabucodonosor mandou crivar os olhos, prender com duas
correntes e deportar para a Babilônia (cf. Na 3,10).

Semelhantes costumes bélicos
vigentes entre os persas são atestados por Is 13, 16-18.

Os motivos que levavam os
pagãos a praticar o herém provinham de uma religiosidade muito menos elevada
que a israelita.  Não raro pressupunham
que os deuses se compraziam no extermínio dos homens como tal: Mesa, por
exemplo, rei pagão de Moab, numa famosa inscrição  (cf. nota 7 deste capítulo), afirma que, após
a conquista da cidade de Cariataím, fez perecer toda a população que aí se
encontrava, a fim de oferecer um espetáculo agradável a Camós, deus de Moab (linhas
11s).

Aliás, o simples fato de que
o extermínio dos inimigos figurava no catálogo das leis teocráticas devia
concorrer para coibir eventual tendência dos chefes de Israel aos abusos, à
violência irrefreada.

Cf. Dt 20, 20-18;

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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