Quem são os ciganos?

Em síntese: Os ciganos são um povo singular, dotado de costumes próprios; muitos levam vida nômade, entregando-se ao comércio, à música e à dança, como também à adivinhação da sorte. Tem origem possivelmente na Índia; espalharam-se pela Europa, a África do Norte, a América e a Austrália.

Em geral, não gozam de boa fama, o que lhes tem valido perseguições. Em nossos dias há quem procure reabilitar os ciganos; em certas regiões existe um capelão católico, que deles se ocupa. Costumam seguir a religião prevalente na região em que se encontram. A figura do bom cigano veio à tona recentemente, pois aos 4/5/97 foi beatificado o cigano Ceferino Jiménez Malla, do qual tratará o artigo seguinte. Os ciganos constituem um povo nômade ou seminômade, espalhado pela Europa Central, a península ibérica, a Ásia Ocidental, o Norte da África, a América e a Austrália, conservando sempre os mesmos característicos de raça e de gênero de vida.

Dois são os nomes principais que designam essa estirpe:

a) ciganos, forma portuguesa do original “Atzigan” ou “Afsigan”, que na Turquia e na Grégia deu “Tshingian”; na Bulgária, e na Romênia, “Tsigan”; na Hungria, “Czigany”; na Alemanha, “Zigeuner”; na Itália “Zingari”; na Inglaterra, “Tinker” ou “Tinkler”.

O apelativo “cigano” parece derivar-se, em última análise, de “jigani”, denominação de uma tribo da Índia, pertencente à raça dravidiana, raça que resulta da fusão dos negritos (primitivos habitantes da península hindu) com os turanianos, povo de raça amarela, proveniente dosmontes Urais).

Os estudiosos modernos são levados a crer que os ciganos provém realmente dos jiganis da Índia, pois acentuada é a afinidade de traços raciais e de dialeto, vigente entre os dois povos.

b) egípcios, nome devido a uma crença divulgada pelos próprios ciganos quando entraram em cena na Europa medieval; segundo essa crença, os ciganos seria oriundos do Egito, ou melhor, de uma região chamada “Pequeno Egito” (= “Palestina”. Tal nome tomou as formas “Gypsy” na Inglaterra “Gitano” (de Egiptiano) na Espanha ; “Gyphtos” no grego moderno. A mesma tese explica denominações similares dadas aos ciganos: “Pharaoh nepek” (povo de Faraó) na Hungria; “Faraon”, na Romênia.

Outros nomes atribuídos ao mesmo povo seriam: “boêmios” ou “Bohémiens”, na França; “Heydens” (= pagãos) na Alemanha. Os próprios ciganos se designavam durante algum tempo como “Romanos” a fim de se recomendar aos olhos dos demais povos.

Nas linhas que se seguem, examinaremos rapidamente quem são os ciganos (origem, história, gênero de vida, de trabalho…) e quais os seus aspectos religiosos mais característicos.

Origem e Esboço Histórico

Desde que os ciganos apareceram na Europa Ocidental, muitas hipóteses foram propostas para explicar a sua origem: seriam descendentes dos construtores das pirâmides, dos etíopes, dos persas, dos tártaros… Seriam uma das tribos perdidas de Israel, uma mescla de judeus e árabes, os últimos representantes dos metalurgos da idade do bronze, sobreviventes da Atlântida; seriam, talvez, a posteridade de Caim ou a de Cam, filho de Noé ou mesmo de Adão e de uma mulher anterior a Eva (o que justificaria a isenção da lei do trabalho em favor dos ciganos).

Postas de lado essas hipóteses fabulosas, no fim do século XVIII os estudiosos observaram grande semelhança entre a língua dos ciganos da Europa e o sânscrito e outras línguas vivas da Índia. Daí afirmarem a origem indiana dos ciganos, sentença esta que foi confirmada por ulteriores estudos de linguistas, antropólogos e historiadores.

Na verdade, presume-se que sejam descendentes da tribo indiana dos jiganis. Apresentam estatura pequena e tez de pele que pode variar desde a coloração escura do cigano da Arábia até o matiz claro do habitante da Polônia. Em geral, têm um físico bem proporcionado e assaz ágil. São amigos de ornamentos vistosos e dos trajes de cores carregadas, de preferência vermelhos e verdes; as mulheres costumam usar lenços, colares e moedas de ouro em torno do pescoço, ficando-lhes os pés geralmente descalços.

Não se têm anteriormente ao início do séc. XIV vestígios seguros da estada dos ciganos na Europa. Parecem ter passado do Egito para as terras balcânicas, espalhando-se pela Hungria, a Boêmia e a Rússia. A sua entrada nos territórios da Europa Ocidental (Alemanha, França, Suíça, Itália) não se deve ter dado antes do princípio do séc. XV. Até hoje conservam os seus caracteres raciais e linguísticos bem definidos, pois só se casam entre si, sendo os matrimônios mistos ou exogâmicos considerados por eles como ilegítimos; em geral, tendem a se isolar dos demais povos – o que em parte se deve ao seu tipo de vida nômade. Falam a língua nomani ou nomanes, de fundo indiano, mesclada com locuções dos povos em meio dos quais habitam. Não têm tradição escrita ou literatura, mas o idioma é conservado muito vivo por ser secreto; está diversificado em dialetos.

Nenhuma nação conta os ciganos entre os seus concidadãos. É o que torna difícil avaliar o número de ciganos hoje existentes no mundo; calcula-se, porém, que atingem a cota de cinco a dez milhões. Não prestam serviço militar nem tratam de registrar os seus casamentos em cartório civil. Cada tribo ou bando nômade tem seu chefe e sua forma de governo autônomo. Dada a sua fama de gente fraudulenta e enganadora, os ciganos, do séc. XVI até o início do séc. XX, foram objeto da repressão de certos governos europeus, que lhes infligiram penas diversas: a escravidão na Romênia e na Hungria (séc. XVIII/XIX), o exílio e a própria condenação à morte.

Atividades dos Ciganos

Segundo geralmente se diz, os ciganos vivem da mendicância e do furto – o que não é correto. Existe, sem dúvida, a mendicância, direta ou dissimulada, praticada principalmente pelas mulheres e as crianças. Todavia os ciganos exercem também certo trabalho profissional e artesanal, variável de acordo com a região em que se encontram, e geralmente compatível com a vida nômade.

1) Adivinhar a sorte ou a quiromancia (interpretação das linhas da mão, também dita “leitura da buena dicha”) é ocupação das mulheres. Seguram a mão do cliente e a consideram, mas observam também o semblante do interlocutor. Praticam outrossim a adivinhação pelas cartas e pelo tarô, à semelhança dos não-ciganos. Vendem amuletos e bentinhos, recorrendo a ritos estranhos para atrair o favor ou a ira dos “espíritos superiores” – ritos chamados Xochano baro (a Grande Farsa).

Praticam igualmente o curandeirismo, utilizando o poder terapêutico de certas ervas. Esta arte os torna muito estimados nas rurais, onde os ciganos podem fazer as vezes de veterinários.

2) A música cigana também é muito apreciada desde o século X no Irã. Na Europa Ocidental e na Central, ela se impôs em festas aristocráticas como também nas dos camponeses. Serve-se da voz humana e de instrumentos; as letras lembram por vezes o hebraico, o árabe e o andaluso.

3) As dançarinas ciganas espanholas têm fama mundial. Na França apresentavam-se na corte de Henrique IV (1589-1610) como também nos castelos dos nobres. Os ciganos estão presentes nos teatros de marionetes, nos circos, e os homens nas touradas da Espanha. No México os ciganos têm seus cinemas ambulantes.

4) Na Europa Central, os ciganos se dedicam principalmente ao trato de cavalos; compram-nos, vendem-nos, trocam-nos e sabem cuidar deles. O mesmo se dá em relação a asnos e mulos.

5) Praticam a manufatura de metal e madeira: fabricam e consertam utensílios domésticos de cobre ou bronze (donde o nome de “caldeireiros” ou “chaudronniers”, que por vezes lhes é dado) ou de madeira (bancos, mesas).

6) Para vender seus produtos, os ciganos não montam lojas, mas vão ao encalço dos clientes de porta em porta. Compram e revendem diversos tipos de mercadoria. Este comércio ambulante é chamado chine. Também participam de feiras locais.

7) Na Espanha dos séculos XVIII e XIX os ciganos ofereciam hospedagem em albergues próprios. Podiam também embarcar em naves pesqueiras para praticar a pescaria, as mulheres se encarregavam de vender o peixe. Não são amigos da agricultura, pois esta obriga à vida sedentária, mas aceitam tarefas ocasionais de colheita.

8) Diz-se que o cigano tem o prazer de empunhar armas. Nas guerras dos séculos passados, como, por exemplo, na guerra dos Trinta Anos (1619-1648) havia batalhões inteiros de ciganos acompanhando as tropas regulares.

Costumes Ciganos

Os ciganos espalhados pelo mundo carecem de chefe comum. Certos grupos têm o seu Conselho de Anciãos e o tribunal dos Kris.

Os homens geralmente se vestem como os cidadãos da região em que vivem. As mulheres gostam de cores vivas, jóias, brincos e argolas, colares, e frequentemente saias longas.

Comem o que o respectivo país oferece. Muito estimam a carne, com exceção da de cavalo, que é proibida; preferem o porco e as aves.

Estão acostumados a morar em tendas, quando fazem uma pausa em suas andanças. Os que abraçam a vida sedentária, ornamentam seus abrigos como se fossem tendas.

O núcleo familiar é muito forte. O pai detém a autoridade. Prole numerosa é sinal de bênção divina. O casamento não costuma ser contraído nem na Igreja nem no cartório, mas é festejado com grandes solenidades de despesas. Também os funerais são solenes e dispendiosos, atraindo muitos parentes e amigos, que não raro vêm de longe. Os ritos tradicionais visam a apaziguar a alma do defunto e ajudá-lo em suas caminhadas no além-túmulo; os supostos fantasmas suscitam grande medo.

Ciganos e Religião em geral

Os ciganos não têm Religião própria, característica da raça, como a têm os judeus; mas adaptam-se às ideias religiosas do país em que se acham, fundindo-as com crenças supersticiosas comuns a muitos povos. Assim, na Turquia e na Arábia professam o islamismo; na Grécia e na Romênia, a “ortodoxia” cristã nacional; na Hungria, me Portugal e na Espanha, o catolicismo. Em verdade, porém, não cumprem muito exatamente os deveres religiosos do Cristianismo; principalmente no tocante à vida sexual, são indulgentes. Além disto, parecem inclinados a crer no fatalismo dos destinos humanos.

Vivendo no cenário cristão da Idade Média, compreende-se que os ciganos tenham estado envolvidos em mais de uma manifestação da fé cristã.

Os historiadores observam por exemplo, que não era raro passarem eles por peregrinos cristãos, gozando, a este título, dos favores e privilégios que os prelados e os príncipes concediam às caravanas de peregrinos; gozavam mesmo da tutela e dos benefícios que os Papas costumavam dispensar aos cristãos que demandavam os grandes santuários. Parece, porém, que os ciganos nem sempre se mantiveram à altura de tal benevolência, pois dela abusaram para cometer malefícios; assim, por exemplo, se exprime o cronista. Aventinus na primeira metade do séc. XVI: “A fraude e o roubo são proibidos aos outros povos…; estes, porém, (os ciganos) se atribuem a licença de os praticar”.

A má fama que, apesar do caráter de peregrinos cristãos, pesava sobre os ciganos, encontrou expressão em uma altercação graciosa, bem característica da mentalidade popular. Com efeito, dizia-se na Idade Média que os cravos com os quais foi crucificado o Senhor Jesus, haviam sido forjados por ciganos e que, em consequência, tal povo fora amaldiçoado. Diante desta falsa acusação os ciganos da Alsácia e da Lituânia se defendiam inteligentemente…; chamavam a atenção para o costume introduzido no séc. XII/XIII na iconografia cristã, costume de representar o Senhor crucificado com três cravos e não, como na primitiva Igreja se representava, com quatro cravos… Aproveitando-se da estranheza que esse novo hábito provocava no povo cristão, os ciganos pretendiam justificá-lo contando que uma mulher cigana, desejosa de impedir a crueldade contra Jesus, tentara roubar os judeus os quatro cravos com os quais se dispunham a crucificá-Lo; tendo conseguido subtrair ao menos um cravo, os carrascos haviam sido obrigados a crucificar com três pregos em vez de quatro; um em cada mão, e um nos dois pés sobrepostos. Assim, segundo a intenção dos apologistas ciganos, a figura do Divino Crucificado, longe de constituir desdouro para a fama dos boêmios, deveria, antes, torná-los mais caros aos cristãos!… Esta altercação pode ser ilustrada pelo fato de que a primeira representação do Crucificado com três cravos data do séc. XII; está forjada em cobre e é de origem bizantina… Ora, se os ciganos bizantinos possuíam o monopólio da metalurgia nessa época, poder-se-ia supor que tal inovação na representação do crucifixo se deva aos ciganos, os quais destarte visavam afastar de si a calúnia de terem concorrido, pela sua indústria no séc. I, para atormentar o Senhor Jesus.

Outro encontro, digno de nota, dos ciganos com o Cristianismo é a peregrinação, que esse povo ainda em nossos dias costuma empreender ao santuário dito “das Três Marias” (Les Saintes Maries de la Mer) na ilha de Camargue perto de Marselha no mar Mediterrâneo. Conforme antiga narrativa, esse santuário assinala o lugar onde desembarcaram Maria, mãe de S. Tiago o Menor, Maria de Salomé, mãe de S. João Evangelista e s. Tiago o Maior, e Maria Madalena, acompanhadas de José de Arimatéia, de Lázaro e de Sara, companheira egípcia das três Marias: teriam sido expulsos da Palestina pelos perseguidores da fé; embarcando então numa navezinha destituída dos devidos recursos, a pequena caravana, por evidente tutela da Providência Divina, teria chegado incólume a Camargue, e daí haveria iniciação a evangelização da Gália. Em comemoração do episódio (cuja autenticidade não interessa discutir aqui), os cristãos ergueram na mencionada ilha uma grandiosa igreja, onde estão guardadas as relíquias de Santa Sara, que os ciganos cristãos veneram como sua padroeira. Ora, sendo a festa das “Três Marias” celebrada anualmente a 25 de maio, os ciganos de várias partes do mundo (França, Alemanha, Áustria, Itália, Espanha e até do Marrocos) costumam afluir ao santuário, podendo o número de peregrinos chegar a um total de 5.000; os mais antigos vestígios (ofertas votivas) desse piedoso costume chegam a ser anteriores ao ano de 1450! A Igreja do santuário fica, por ocasião de tais peregrinações, inteiramente ocupada pelos ciganos, os quais dão à localidade toda um aspecto festivo, meio-religioso, meio-profano; suas manifestações de piedade nem sempre condizem com a genuína mentalidade católica.

Ainda no tocante às relações dos ciganos com o Cristianismo, pode-se notar o seguinte: na França em 1961 havia cerca de vinte sacerdotes (capelães) consagrados à cura pastoral entre os boêmios, sob a direção geral do padre Feluny, capelão-mor (outros capelães existiam na Alemanha, na Espanha, no Marrocos). Justamente durante os festejos de 1961 em Camargue um desses sacerdotes franceses declarou à imprensa:

“As mulheres ciganas (…), não são moralmente transviadas. Inegavelmente, os ciganos praticam uniões de amor livre; muitos desses casos, porém, se devem simplesmente ao fato de que não conseguem obter os documentos que o governo requer para o matrimônio civil. Tais circunstâncias, porém, não impedem que os ciganos estejam bem convictos das obrigações decorrentes do matrimônio. Entre eles o varão que tenha escolhido uma mulher, sabe permanecer-lhe fiel, sendo o adultério passível de penas severíssimas… Nos últimos tempos, tendo-se a Igreja mais ainda aproximado deles, designando capelães para lhes assistir, muitas situações de famílias irregulares foram legalizadas; numerosos batizados têm sido efetuados; eu mesmo já tive a ocasião de assistir à primeira Comunhão de seis ciganazinhas”.

O repórter Emílio Marini, que transmite a declaração acima, acrescenta quase à guisa de comentário:

“Não há dúvida, quem se aproxima daqueles carros (dos ciganos) e conversa com os respectivos moradores, toma consciência de que o juízo muito frequentemente proferido sobre eles é de todo injusto; trata-se, na verdade, de gente honesta, trabalhadora, de gente que fica à margem da sociedade, principalmente porque a sociedade não a sabe acolher com a devida estima. Trata-se de gente que está apegada ao seu carro como o camponês está apegado a sua terra, e que, embora pareça não Ter pátria, é enormemente afeiçoada à família, à sua tribo, ao seu carro, à sua a liberdade” (extraído da revista Orizzonti nº 28, de 9 de julho de 1961).

Este modo de ver, compreensivo e benévolo, parece assaz oportuno na hora presente para acautelar contra generalizações pouco equitativas.

Aliás, os ciganos, muito atacados, sempre tiveram seus defensores, principalmente por causa do seu talento musical e artístico. No século XX foram formadas sociedades destinadas a torná-los mais conhecidos e pôr em evidência o que eles têm de positivo; assim na Inglaterra a Gypsy Love Society e na França Erudes Tsiganes. Os preconceitos tendem a se dissipar, uma certa assistência vem sendo dada aos ciganos, para que, como minoria, se possam adaptar à grande sociedade, merecendo o respeito desta e prestando sua colaboração à mesma.

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 423 – Ano: 1997 – pág. 366

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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