Que significa rezar pelos mortos?

Rezar pelos mortos e, especialmente, celebrar a S. Missa pelos mortos não é celebrar a fé das pessoas falecidas nem é celebrar a fé dos que ficaram neste mundo. É celebrar o mistério da fé, ou seja, o sacrifício de Cristo perpetuado sobre os nossos altares e oferecido ao Pai em favor de tal ou tal irmão ou irmã falecido(a) seja corroborado para que extinga qualquer amor desregrado ou qualquer resquício de pecado que tenha ficado na alma do defunto. Este se encontra em estado de purificação, preparando-se para ver Deus face-a-face mediante o repúdio radical de qualquer escória de infidelidade.

Um jornal paroquial publicou em novembro pp. um artigo intitulado “O que significa rezar pelos falecidos”. O conteúdo da explanação é ambíguo e suscitou hesitação em vários leitores. Daí a conveniência de algumas reflexões sobre o assunto.

Eis os trechos mais significativos do artigo:

“A festa de todos os Santos e o dia dos Finados nos oferecem uma ótima oportunidade para refletirmos sobre nossas atitudes para com nossos falecidos. Mais concretamente, sobre o sentido das Missas de sétimo dia, trigésimo dia e primeiro ano…

Redescubramos o sentido da Eucaristia oferecida pelos defuntos: toda Missa é renovação do Dom total de Jesus Cristo, que morreu por nós e ressuscitou para a nossa salvação. Oferecer a Missa por um irmão que faleceu é um ato com duplo sentido: celebração da fé que ele tinha e da fé que nós temos. O fundamento do Cristianismo é a fé em Jesus Cristo ressuscitado. “Se Cristo não ressuscitou, vã é nossa fé…”

A Missa é um ato de fé na comunhão dos santos, isto é: quer vivamos peregrinos nesta terra, quer já estejamos com Deus, formamos uma só Comunidade de Batizados”.

Passemos a um comentário.

Que é a Missa?

O autor do artigo afirma que a Missa é “renovação do Dom total de Jesus Cristo, que morreu por nós e ressuscitou para nossa salvação”.

Ora aqui já se impõe uma observação: a Missa não é propriamente a renovação da entrega de Cristo ao Pai; a palavra “renovação” pode sugerir a idéia de repetição – o que seria falso, visto que o sacrifício de Cristo foi cabal e infinitamente meritório; é irrepetível, de modo que mais adequado é falar de “perpetuação” ou “re-apresentação” do sacrifício de Cristo sobre os nossos altares.

Outra observação – e esta mais grave – refere-se à afirmação de que “a Missa é a celebração da fé que a pessoa falecida tinha e a celebração da fé que nós temos”. – Ora isto é falho ou falso. Na verdade, a Missa não é a celebração da fé das criaturas: a Missa é a re-apresentação do sacrifício do Calvário, com a diferença de que na Cruz Jesus se ofereceu a sós ao Pai, ao passo que sobre os nossos altares Ele se oferece conosco ou com a sua Igreja ao Pai. Com outras palavras: a Missa não é a celebração da fé, mas é a celebração do mistério da fé por excelência. Jesus torna presente sobre os nossos altares a sua entrega ao Pai para que nos entreguemos com Ele na qualidade de cooferentes e na qualidade de cooferidos, participando do sacerdócio de Cristo e da condição de Cristo como vítima ou hóstia.

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Perguntamos então:

Por que celebrar a missa pelos defuntos?

A resposta está associada à doutrina do purgatório, que vai aqui brevemente recordada.

1) O amor a Deus, num cristão, pode coexistir com tendências desregradas e pecados leves (ao menos, semideliberados). Há, sim, em todo indivíduo humano um lastro inato de desordem: egoísmo, vaidade, amor próprio, covardia, negligência, moleza, infidelidade… acham-se tão intimamente arraigados no interior do homem que chegam por vezes a acompanhar as suas mais sérias tentativas de se elevar a Deus e dar a Deus o lugar primacial que lhe toca. A psicologia das profundidades ensina que essas tendências nem sempre são conscientes, mas muitas vezes atuam no nosso subconsciente ou inconsciente.

2) Mais: todo pecado (principalmente quando grave, mas também a falta leve) deixa na alma um resquício de si ou uma inclinação má (metaforicamente… deixa uma cicatriz, deixa um pouco de ferrugem na alma, dificultando-lhe a prática do bem). Com efeito; o pecado implica sempre uma desordem. Quando, após o pecado (grave ou leve), a pessoa se arrepende e pede perdão a Deus, o Pai do céu perdoa (o Senhor nunca rejeita a contrição sincera). Mas o amor do pecador arrependido, por mais genuíno e leal que seja, pode não ser suficiente para extinguir todo resquício de amor desregrado, egoísta, existente na alma. Em consequência, o pecado arrependido recebe o perdão do seu pecado, mas ainda deve libertar-se da desordem deixada pelo pecado em sua alma; quantas vezes se verifica que, mesmo após uma confissão sincera e contrita, o cristão recai nas faltas de que se arrependeu! Isto se deve ao fato de que ficou no seu íntimo a raiz ou o princípio do pecado. Figuradamente, pode-se dizer que o cristão arranca a folha e o caule da trinca, mas dificilmente arranca também o caroço ou a raiz da tiririca; esta se manifesta dentro em pouco, através de novos pecados. Para extirpar o princípio do pecado remanescente, o cristão deve excitar e exercitar mais intensamente o amor a Deus. Ora este estímulo do amor a Deus se realiza mediante a satisfação ou atos de penitência que despertem e fortaleçam o amor a Deus no íntimo do cristão.

Notemos bem: a satisfação assim entendida não deve ser comparada a uma multa mais ou menos arbitrária imposta por Deus ou a um castigo vingativo; é, antes, um auxílio medicinal; é também uma exigência do amor do cristão a Deus, amor que, estando debilitado, pode se corroborado e purificado.

3) Digamos agora que um cristão morre com o seu amor voltado para Deus, mas ainda portador de contradições ou incoerências: ama a Deus, mas cai em impaciência, maledicência, omissões… O Senhor Deus não há de o rejeitar, porque ele não opõe um obstáculo decisivo ao amor de Deus, mas também é de notar que esse cristão não poderá ver Deus face-a-face como acontece aos cristãos purificados de todo resquício de pecado. Deus é três vezes santo: por isto não pode subsistir diante dele nenhuma sombra de pecado. Por conseguinte, a misericórdia divina concede a essa alma a graça de se purificar depois da morte; não se trata de conversão do pecado mortal para a vida da graça, mas trata-se de eliminar o apego ao “pecadinho”, que é sempre pecado ou deficiência. Essa purificação não se faz pelo fogo, mas faz-se pela intensificação do amor a Deus; este, tornando-se mais intenso ou mais forte, apaga os resquícios do pecado existentes na alma. Tal é o processo que se realiza no purgatório póstumo.

Os cristãos peregrinos na terra podem ajudar seus irmãos falecidos que estejam no purgatório, mediante orações ou sufrágios: pedem a Deus que fortaleça o amor das almas do purgatório para que apague toda sombra de tendências desregradas e lhes permita entrar quanto antes na visão de Deus face a face.

Ora a S. Missa é o melhor meio de sufragar as almas do purgatório. Oferecemos a Deus o sacrifício de Cristo perpetuado sobre os nossos altares para que o Pai conceda a essas almas a graça necessária para vencerem as resistências do pecado ou do “pecadinho”… Sabemos por experiência como é difícil a cada um de nós vencer certos impulsos desordenados que nos humilham, que nos repudiamos, mas que se acham tão arraigados em nosso íntimo que dificilmente os eliminamos. Tenhamos em vista os movimentos de impaciência que não queremos alimentar, mas que se antecipam à nossa deliberação e nos fazem sofrer porque nos desfiguram… Pois bem: essas coisas desregradas têm que desaparecer por completo para que possamos ver Deus face a face.

A purificação da alma ou a extirpação dos resquícios do pecado há de ser normalmente realizada na vida presente, de modo que, terminada a caminhada terrestre, a alma do cristão possa imediatamente gozar da visão de Deus face-a-face. Caso, porém, não ocorra nesta vida a eliminação dos resquícios do pecado, a misericórdia divina concede ao cristão a graça do purgatório póstumo. Este não é um lugar, mas um estado no qual o amor a Deus existente na alma do falecido toma posse, por completo, dessa alma livrando-a de qualquer apego ao pecado.

Noções complementares

1. Notemos a propósito que a comunicação de bens espirituais entre os fiéis não conhece classes nem privilégios; todos os bens espirituais da Igreja circulam entre todos os membros desta. Por isto não é adequada a expressão “as almas mais abandonadas no purgatório”, não há alma abandonada.

Mais explicitamente: não se deve imaginar o purgatório como se fosse um cárcere onde se encontrem prisioneiros de origens diversas; os que têm família numerosa e rica, aí recebem mais visitas e presentes, ou seja, passam melhor do que aqueles que pertencem a famílias pobres ou negligentes; poderão sair da prisão mais cedo do que os seus companheiros indigentes. Evitemos transpor tal imagem, com suas categorias e classes, para o além-túmulo. O purgatório, de certo modo, transcende os conceitos que adquirimos neste mundo; pertence aos sábios e misteriosos desígnios salvíficos de Deus, a respeito dos quais a Revelação Divina é sóbria. Por isto não devemos crer que uma alma do purgatório pela qual ninguém reza – ou porque não tem familiares na terra ou porque só tem familiares incrédulos ou pobres -, é “uma alma abandonada”, na verdade, ela está envolvida pela infinita misericórdia de Deus, à qual a Igreja sempre eleva suas preces em favor de todos os que carecem (doentes, moribundos, viajantes, crianças que morrem sem o Batismo, almas do purgatório…).

Assim vemos como é infundada a alegação seguinte: “As almas de famílias pobres que não têm dinheiro para mandar celebrar Missas, sofrem mais, e mais tempo, no purgatório, do que as almas dos ricos! O dinheiro é decisivo até no purgatório!”

Não creiamos que essas regras de lógica terrestre e comercial sejam observadas também por deus. O Senhor seria mesquinho se atendesse menos solicitamente aos interesses daqueles que menos dinheiro têm; herança monetária não significa primazia para alguém diante de Deus. Jamais poderemos esquecer que a graça e a misericórdia de Deus têm o primado sobre as obras dos homens.

As almas dos pobres, por conseguinte, são amadas por Deus como todas as demais.

Acontece, porém, que entre nós e as almas do purgatório há o dever de sufragar… e de sufragar segundo determinado ordem: impõem-se à nossa caridade primeiramente aqueles que nos estão mais próximos (parentes, amigos, colaboradores, benfeitores…). A uma família cristã toca o dever de sufragar as almas, a começar pelos membros defuntos dessa família.

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2. É oportuno observar que não se pode oferecer a Comunhão Eucarística como tal nem pelos vivos nem pelos defuntos, a Comunhão, enquanto sacramento, age apenas sobre o cristão a quem é dada; ninguém pode receber os sacramentos pelos outros. Todavia, na medida em que é obra e meritória, a S. Comunhão pode ser oferecida por vivos e defuntos (o mérito que adquiro ao comungar fervorosamente, posso oferecê-lo em favor de meu irmãos).

Também têm valor de sufrágio as orações particulares e comunitárias dos fiéis, a paciência nas provações de cada dia, os sacrifícios generosamente empreendidos por amor a Deus e ao próximo. Às obras boas, principalmente às que são praticadas com fervor, correspondem méritos preciosos, que podem ser aplicados em prol dos defuntos.

3. Notemos ainda que não nos é possível avaliar a duração do purgatório, pois este não está submetido ao sistema de anos e dias que na terra observamos, considerando os movimentos dos astros. No purgatório a duração é representada pelos atos espirituais (atos de conhecimento e amor) que as almas praticam. Cada um destes atos é uma unidade de duração ou um instante espiritual, e cada qual desses instantes pode corresponder a vinte, trinta ou sessenta horas do nosso tempo (como uma pessoa pode permanecer horas contínuas absorvida por um único pensamento); os atos sucessivos dos espíritos constituem a série de instantes espirituais chamada “evo” ou “eviternidade”. Ora, já que não se vê qual a proporção vigente entre o tempo solar e o evo dos espíritos, torna-se impossível avaliar a duração do purgatório par alguma alma. Cada qual traz em si afetos desregrados, que estão arraigados com amor ou menos profundidade, e assim opõem resistência ao amor de Deus, que quer penetrar até o íntimo da alma.

Os sufrágios podem ter efeito retroativo: aplicam-se aos fiéis na medida em que deles necessitem. Se alguém reza por uma alma que já se acha na glória do céu, as suas preces beneficiarão quem ainda precise delas.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

Nº 419 – Ano: 1997 – pág. 171

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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