Produzir vida artificialmente – EB

Revista: “Pergunte e
Responderemos”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 7 – Ano 1958 – p.  267

 

I. CIÊNCIA E RELIGIÃO

ASS. UNIVERSITÁRIO (Porto
Alegre):

“Têm-se estudado muito as possibilidades de produzir a
vida artificialmente. Que diz a doutrina católica a respeito disso? Será dogma
de fé que Deus criou diretamente o primeiro ser vivo?”

 Em nossa resposta proporemos o problema e sua solução em
primeiro lugar; a seguir, examinaremos algumas premissas de história que
ajudarão a compreender o significado da questão para um católico contemporânea.

1. O problema e sua solução

 1. É fato assaz em nossos dias, principalmente entre
cristãos, atribuir-se a origem da vida a um ato criador de Deus; já que a vida
até hoje apresenta ao cientista mistérios ainda não elucidados, a produção da
mesma parece reservada exclusivamente à Onipotência Divina.

Eis, porém, que nos últimos anos alguns estudiosos têm
procurado realizar em laboratório a síntese dos componentes de um vivente. A
mais adiantada destas experiências  é a
que realizaram em 1955 dois cientistas da Califórnia, Heinz Fraenkel-Conrat e
Robert Williams: após haver desintegrado o vírus produtor do “mosaico” (doença)
do tabaco em suas partes componentes (94% de proteína e 6% de ácido nucleico),
verificaram que estas, separadas como estavam, haviam perdido a ação infecciosa
característica do vírus; feito os dois respectivos componentes em presença um
do outro dentro de uma solução um tanto ácida), e notaram que o produto
retomava suas propriedades perdidas ou virulentas; então ao microscópio
eletrônico averiguaram que de fato estavam em presença de autêntico vírus (…).

A experiência causou grande
surpresa, parecendo abrir horizontes novos.

A quem a queira interpretar,
impõem-se imediatamente algumas questões básicas: poder-se-ia dar ao fenômeno
ocorrido o novo de “produção sintética de um vírus”, embora os dois cientistas
apenas tenham “descolado” e “recolado” as duas partes de um vírus já existente
na natureza?

E, em caso de resposta
positiva, poder-se-ia dizer que “produção sintética de um vírus” é “produção
sintética da vida”? – Com efeito; não poucos autores negam que o vírus seja um
autêntico vivente. Mesmo entre os que o afirmam, há quem julgue que é um ser
degenerescente, que pressupõe a existência de outro vivente, no qual possa
parasitar. Nesta segunda hipótese, como bem se entende, a produção de um vírus
em laboratório ainda não seria fenômeno correspondente ao surto do primeiro
vivente na terra, ainda não explicaria a origem da vida no nosso planeta.

Deixando, porém, de lado a
discussão destes pontos duvidosos, abracemos a mais otimista das hipóteses,
dizendo que a ciência já produziu ou está prestes a produzir um autêntico
vivente em
laboratório. Que se seguirá disto para as concepções cristãs
concernentes à origem dos seres? Haverá rebordosa na crença em um Deus Criador?

2. Para se responder
devidamente a tal pergunta, é preciso fazer uma distinção, por falta da qual se
tem propalado o erro neste terreno. Haja vista, a título de ilustração, a afirmação
de A. Opárin, um dos biólogos materialistas da Rússia mais em evidência:

“Os idealistas (= os
não-materialistas) sempre consideraram, e continuam a considerar, a vida
manifestação de um princípio espiritual superior e imaterial: “alma”, “espírito
universal”, “força vital”, “razão divina”, etc… Concordam em afirmar que o
Ser supremo, Deus, insuflou uma alma viva à carne inanimada e inerte e que esta
parcela eterna da Divindade é o vivo, o que move o ser e o mantém com vida (…). A
vida é uma manifestação da Divindade” (A origem da vida, tradução portuguesa.
Rio de Janeiro 1956, 8).

Tais afirmações,
principalmente nos trechos grifados por nós, se baseiam em lamentável confusão,
infelizmente muito comum. Para desfaze-la, note-se que a Filosofia e a fé cristã
distinguem três tipos de vida:

a) a vida vegetativa: própria
do vivente que assimila (ou que se alimenta), cresce e se multiplica por
geração, mas não tem conhecimento algum; tal é o caso das plantas;

b) a vida sensitiva:  é a dos viventes que, além das funções
vegetativas, possuem conhecimento. Só conhecem, porém, objetos materiais,
determinados por quantidade, extensão, cor, sabor, cheiro, temperatura, enfim,
pelas notas que caem sob os sentidos; tais são os animais irracionais;

c) a vida intelectiva:  é a do vivente cujo conhecimento penetra além
dos objetos sensíveis; abstrai das notas concretas, materiais, que caracterizam
Pedro, Paulo, João ou esta casa, esta árvore… e apreende os caracteres
essenciais, aquilo que se verifica indistintamente em todos os homem, em todas
as casas, em todas as árvores… O vivente intelectivo é capaz de conhecer e
amar o bem universal, infinito, não apenas este ou aquele bem limitado. – Este
grau de vida se verifica nos homens.

Feita esta distinção, a
Filosofia ensina que a vida vegetativa e a sensitiva dependem de um princípio
vital material; este é eduzido ou procedente da matéria mesmo no ato em que o
novo vivente (planta ou animal irracional) é gerado; e é reabsorvido pela
matéria quando a planta ou o animal irracional morrem, ou seja, quando a
respectiva matéria orgânica deixa de oferecer a estrutura propícia ao exercício
da vida vegetativa ou sensitiva.

Quanto à vida intelectiva,
já que suas atividades transcendem os limites da matéria (cf. “Pergunte e Responderemos”
5/1958, qu. 1 e 2), ela depende de um princípio não material, mas espiritual,
que é chamado a alma intelectiva ou alma humana. Esta, pelo fato de transcender
a matéria no seu modo de agir, transcende-a também no modo como se origina: não
pode provir da matéria, mas é diretamente criada por Deus e infundida ao corpo.

Sendo assim, não há
dificuldade, nem por parte da Filosofia nem por parte da fé cristã, em se
admitir que a vida vegetativa e a sensitiva sejam produzidas artificialmente em laboratório. Embora
não se possa indicar precisamente em que consiste a vida, sabe-se com certeza
que as funções vegetativas e sensitivas não ultrapassam o setor da matéria; por
isto, pode-se aceitar que sejam mero produto de reações físico-químicas. – A
vida intelectiva, porém, nunca poderá ser obtida em laboratório por reações de
elementos materiais, pois que ela ultrapassa as faculdades da matéria; por
conseguinte, na mais otimista (diríamos quase: utópica, visto que se trata de
experiência extremamente complexa) das hipóteses admitir-se-ia que os
cientistas produzam sinteticamente um ou um embrião humano inanimado, em tubo
de ensaio; nunca, porém, poderão coagir o Criador a infundir uma alma
espiritual a essa matéria.

Na base dos dados acima,
verifica-se que em absoluto não há oposição entre criação e evolução; esta não
derroga à existência de Deus. Com efeito; o criacionismo não ensina que Deus
tenha criado os seres tais como hoje os vemos. A rigor, o criacionismo requer
apenas dois atos criadores de Deus na produção dos seres: o primeiro consistiu
em criar a matéria; esta não é eterna, Deus a fez do nada, em estado primitivo
ou bruto (se quisermos), e a terá dotado das leis de evolução, deixando que,
por efeito destas, a matéria tenha atingido sucessivamente o estado dos
minerais inanimados e o dos seres animados (vegetais e animais irracionais). O
segundo ato criador de Deus terá tido ligar, quando a matéria, hipoteticamente
posta em evolução, atingiu o grau de complexidade de um corpo humano,
tornando-se sede apta da vida racional; nessa fase da evolução, Deus terá
tirado do nada uma alma espiritual, humana, a fim de a infundir à matéria,
dando assim origem ao primeiro homem.

Como se entende, o ato de
criar uma alma humana se repete todas as vezes que, no decorrer dos tempos, vem
novo ser humano ao mundo (o Santo Padre Pio XII inculcava ainda recentemente
esta doutrina, na encíclica “Humani generis”; cf. A. A. S. 42 [1950] 575s).

Salvas as duas intervenções
criadoras acima indicadas, nem a Teologia nem a Filosofia se opõem a qualquer
teoria evolucionista que seja, nem mesmo à que admita a transição natural da
matéria inanimada para o grau de matéria dotada de vida vegetativa e sensitiva
(fazemos notar que, lembrando estas duas exigências mínimas do criacionismo frente
à  evolução, de modo nenhum entendemos
insinuar alguma das teorias debatidas entre as escolas sobre o assunto).

À luz das ideias
precedentes, vê-se quão vãs são as afirmações dos materialistas (das quais
algumas foram acima transcritas) conforme as quais os cristãos associam sempre vida
a “princípio espiritual” ou “espírito” (como se não distinguissem entre vida
vegetativa e vida sensitiva, de um lado, e vida intelectiva, de outro lado, e
vida intelectiva de outro lado); os cristãos, segundo dizem, chegariam a
atribuir a vida a uma parcela da Divindade encarnada no corpo humano e
manifestada por este (como se a natureza divina se pudesse retalhar)!

2. Algumas premissas
históricas

A posição que tomamos acima
diante da questão da produção da vida em laboratório talvez cause espanto aos
cristãos, pois parecerá inovadora ou revolucionária; comumente lê-se na
literatura religiosa contemporânea a tese de que a vida, já em seu grau
vegetativo, se deve a um ato criador de Deus. Na verdade, esta afirmação é que
deve ser dita relativamente recente na história do Cristianismo; ela se deve a
uma atitude de Apologética cristã dos últimos séculos.

Com efeito; os medievais,
seguindo uma sentença do filósofo grego Aristóteles (+ 322 a. C.), admitiam a
“geração espontânea”, ou seja, que certos animais imperfeitos (vermes, insetos
e até camundongos) se originassem da matéria em putrefação. Aos
poucos, porém, esta tese foi sendo comprovada falsa, pelas experiências de Redi
(1668), Spallazani (1765) e Pasteur (1860); após os trabalhos deste último,
ficou definitivamente assegurado que mesmo as bactérias microscópicas provêm de
bactérias preexistentes, e não da matéria anorgânica. Ora os apologistas
cristãos acolheram com particular prazer os resultados destas experiências,
pois lhes pareciam infligir um golpe ao materialismo e ao ateísmo, exigindo a
existência e a intervenção de um Deus Criador para explicar a origem da vida,
mesmo em seu grau ínfimo (vegetativo). É de notar outrossim que, enquanto o
setor da vida ia sendo indiretamente mais e mais relacionado com Deus por meio
das experiências dos cientistas, os setores da matéria inanimada
(principalmente a Física e a Astronomia) iam sendo pelos estudiosos como que
“laicizados” ou aparentemente emancipados de Deus: sim; desde o séc. XVII
Descartes, Newton, Laplace e os físicos posteriores foram descobrindo as leis
que regem os movimentos dos corpos; muitos fenômenos da natureza foram
consequentemente explicados sem que fosse preciso recorrer, como outrora se
fazia, à intervenção continua de Deus e dos anjos no mundo; alguns
racionalistas dos séc. XVII/XIX afirmavam mesmo não ser mais necessário admitir
a existência do Todo-Poderoso depois dos recentes progressos das ciências. Em
reação contra tal “laicização” da Física, os apologistas ainda hoje vigente) à
tese de que ao menos (mas certamente) a Biologia em qualquer dos seus ramos
(mesmo na Botânica) atesta e requer a existência do Criador. – Apoiados nessa
concepção, tais autores dividiram o universo em dois grandes reinos: o da matéria
inanimada e o da vida, dois reinos entre os quais não haveria transição
possível por via natural, devendo-se, pois, cada um deles a uma especial
intervenção de Deus Criador. Tal tese era nova na história do pensamento
cristão, visto que os medievais admitiam hiato intransponível não entre o reino
dos seres não-vivos e o dos viventes, mas entre MATÉRIA (todas as substâncias
extensas, desde o corpo humano até o elemento químico mais sutil) e ESPÍRITO (a
alma humana, os anjos, Deus); para os medievais, todas as vezes que se tratasse
de explicar a origem da vida espiritual ou intelectiva, dever-se-ia admitir
especial intervenção do Criador, intervenção que eles não exigiam para explicar
o surto da vida vegetativa e sensitiva.

 

Eis em esquema como se
deslocou o ponto de vista:

Concepção tradicional

ESPÍRITO: sempre vivo

 no grau intelectivo.   

                animada {sensitiva

                viva        
{vegetativa

MATÉRIA

                inanimada

 

Concepção apologética recente

VIDA: setor cujos elementos
(desde o protozoário até os viventes superiores) parecem dever sua origem a
especial intervenção do Criador.

MATÉRIA: setor “laicizado”
(segundo pensavam muitos no séc. XVIII

As considerações acima dão
suficientemente a ver que a posição recente não é propriamente ditada por
princípios filosóficos ou teológicos, mas antes por uma tendência apologética
assaz contingente e dispensável: pode-se muito bem conceber que Deus exista sem
se afirmar que interveio especialmente na origem do primeiro vivente
vegetativo. É por isto que hoje em dia por parte dos teólogos católicos não se
faz dificuldade à tese de que a vida não espiritual (não intelectiva), mas
meramente vegetativa e sensitiva, possa ser produto da matéria posta em evolução. De resto,
Pasteur jamais teve em vista resolver de maneira definitiva a questão
filosófica das relações entre matéria inanimada e vida; apenas considerou o
problema da geração espontânea tal como ele se punha em conseqüência das
experiências e das teorias dos biologistas seus predecessores e contemporâneos;
a intenção de Pasteur foi apenas demonstrar que a geração espontânea, tal como
era apregoada por estes cientistas, de fato não se dava nem dá.

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Sobre o assunto, veja-se
“Pergunte e Responderemos” 3/1957 qu. 1 e 2 (a origem da alma); 6/1957 qu. 1 (o
acaso na origem do mundo e da vida); E. Bettencourt. Ciência e Fé na história
dos primórdios, 3ª edição. AGIR 1958, apêndice III.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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