4. A força da verdade
Vejamos
como se poderia traduzir esta visão cristão da relação homem-universo no campo
da evangelização. Primeiro, um prefácio. Resumindo o pensamento do mestre, um
discípulo de Dionísio Areopagita enunciou esta grande verdade: “Não se
deve refutar a opinião dos outros, nem se deve escrever contra uma opinião ou
religião que não parece boa. Se deve escrever só a favor da verdade e não
contra os outros” [15].
Não se pode
absolutizar este princípio (às vezes pode ser útil e necessário refutar
doutrinas falsas), mas é certo que a exposição positiva da verdade é, muitas
vezes, mais eficaz que a refutação do erro contrário. É importante, creio,
tomar em conta este critério na evangelização e especialmente no confronto com
os três obstáculos mencionados anteriormente: cientificismo, secularismo e
racionalismo. Na evangelização, é mais eficaz que a polêmica contra eles, a
exposição pacífica da visão cristã, contando com a força inerente desta quando
acompanhada de profunda convicção e feita, como incutia São Pedro, “com
doçura e respeito” (1 Pe 3, 16).
A maior expressão
da dignidade e da vocação do homem, segundo a visão cristã, foi cristalizada na
doutrina da deificação do homem. Esta doutrina não teve tanta importância na
Igreja Ortodoxa quanto na latina. Os Padres gregos, superando todos custos que
o uso de pagão tinha acumulado sobre o conceito de deificação (theosis),
fizeram dele o centro de sua espiritualidade. A teologia latina tem insistido
menos sobre ela. “O propósito da vida para os cristãos gregos –
lê-se no Dictionnaire des Spiritualitè – é a divinização, o que para os
cristãos do Ocidente é a aquisição da santidade… O Verbo se fez carne, de
acordo com os gregos, para devolver ao homem semelhança de Deus perdida em Adão
e para divinizá-lo. Para os latinos, ele se fez homem para redimir a humanidade…
e para pagar a dívida com a justiça de Deus” [16]. Poderíamos dizer,
simplificando ao máximo, que a teologia latina, depois de Agostinho, insiste
sobre o que Cristo veio tirar – o pecado -, e a grega insiste mais sobre o que
ele veio dar aos homens: a imagem de Deus, o Espírito Santo e a vida divina.
Não se deve
forçar demais esta oposição, como às vezes tendem a fazer alguns autores
ortodoxos. A espiritualidade latina, por vezes, expressa o mesmo ideal ainda
que evite o termo divinização, que, é bom lembrar, é estranho à linguagem
bíblica. Na liturgia das horas da noite de Natal, vamos ouvir a vibrante
exortação de São Leão Magno, que expressa a mesma visão da vocação cristã:
“Reconhece, ó cristão, a tua dignidade. Uma vez constituído participante
da natureza divina, não penses em voltar às antigas misérias da tua vida
passada. Lembra-te de que cabeça e de que corpo és membro” [17].
Infelizmente,
alguns autores ortodoxos mantiveram-se firmes à controvérsia do século XIV,
entre Gregório Palamas e Barlaam, e parecem ignorar a rica tradição mística
latina. A doutrina de São João da Cruz, por exemplo, de que os cristãos,
redimidos por Cristo e tornados filhos no Filho, estão imersos no fluxo das
operações trinitárias e participam da vida íntima de Deus não é menos elevada
que a da divinização, ainda que se expresse em termos diferentes. Também a
doutrina sobre os dons da inteligência e da sabedoria do Espírito Santo,
tão cara a São Boaventura e autores medievais, estava animada pelo mesma
inspiração mística.
Não pode,
contudo, deixar de reconhecer que a espiritualidade ortodoxa tem algo a ensinar
sobre este ponto ao resto da cristandade, à teologia protestante ainda mais do
que à teologia católica. Se existe realmente alguma coisa verdadeiramente
oposta à visão ortodoxa do cristão deficado pela graça é a concepção
protestante, particularmente a luterana, da justificação extrínseca e legal de
que o homem redimido é, “ao mesmo tempo, justo e pecador”,
pecador em si mesmo, justo diante de Deus.
Acima de
tudo, podemos aprender com a tradição oriental a não reservar esse ideal
sublime da vida cristã a uma elite espiritual chamada a percorrer os caminhos
da mística, mas oferecê-lo a todos os batizados, torná-lo objeto de catequese
para o povo, de formação religiosa nos seminários e noviciados. Se volto a
pensar nos meus anos de formação, me lembro de ter visto uma ênfase quase
exclusiva na ascese que centrava tudo na correção de vícios e na aquisição da
virtude. Quando perguntado pelos discípulos sobre o objetivo final da vida
cristã, um santo russo, São Serafim de Sarov, respondeu sem hesitação: “A
verdadeira finalidade da vida cristã é a aquisição do Espírito Santo de Deus.
Quanto à oração, o jejum, vigílias, esmolas e outras boas obras feitas em nome
de Cristo, são apenas meios para adquirir o Espírito Santo” [18].
5.
“Tudo foi feito por meio dele”
O Natal é a
ocasião ideal para voltar a propor a nós mesmos e aos demais este ideal,
patrimônio comum da cristandade. É da encarnação do Verbo que os Padres gregos
derivam a própria possibilidade da divinização. São Atanásio não se cansa de
repetir: “O Verbo se fez homem para que pudéssemos nos tornar Deus”
[19]. “Ele se encarnou e o homem tornou-se Deus, porque se uniu a
Deus”, escreve por sua vez São Gregório Nazianzeno [20]. Com Cristo, é
restaurado ou trazido à luz aquele ser “à imagem de Deus” que é a
base da superioridade do homem sobre o restante da criação.
Dizia antes
como a marginalização do homem traz consigo automaticamente a marginalização de
Cristo do universo e da história. Ainda sobre este ponto de vista o Natal é a
antítese mais radical da visão cientificista. Sobre isso, escutaremos proclamar
solenemente: “Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de
tudo o que existe” (Jo. 1,3); “pois é nele que foram criadas todas as
coisas, tudo foi criado através dele e para ele” (Col 1,16). A Igreja
assumiu essa revelação e nos faz repetir no Credo: “Per quem omnia facta
sunt”: Por meio dele tudo foi criado.
Ouvindo
estas palavras – enquanto todos à nossa volta que não fazem mais que repetir
“O mundo se explica sozinho, sem necessidade da hipótese de um
criador”, ou “somos frutos do acaso e da necessidade” – se dá,
sem dúvida, um choque, mas é mais fácil que se produza um conversão e floresça
a fé depois de um choque como esse que com uma longa argumentação apologética.
A questão crucial é: seremos capazes, nós que aspiramos reevangelizar o mundo,
de expandir nossa fé a essa dimensão? Nós realmente acreditamos, de todo o
coração, que “todas as coisas foram feitas por meio de Cristo e em vista
de Cristo”?
Em seu
livro Introdução ao Cristianismo, há muitos anos, Santo Padre, escreveu:
“A
segunda parte principal do Credo coloca-nos propriamente diante do elemento
cristão fundamental: a crença de que o homem Jesus, um indivíduo executado na
Palestina pelo ano 30, é o ‘Cristo’ (ungido, escolhido) de Deus, e mais: é o
próprio Filho de Deus, centro e opção de toda a história humana… Contudo, o
primeiro impacto desta realidade causa escândalo ao pensamento humano: Não nos
tornamos com isto vítimas de um tremendo positivismo? Será razoável agarrar-nos
à palhinha de um único acontecimento histórico? Poderemos ousar fundamentar a
nossa existência inteira, e até a história toda, sobre o que não passa de pobre
palha de um acontecimento qualquer a boiar no grande oceano da história?”
[21].
Para estas
questões, Santo Padre, nós vamos responder sem hesitar, como faz o senhor nesse
livro e como não se cansa de repetir hoje, na sua qualidade de Sumo Pontífice:
Sim, é possível, é libertador e alegre. Não por nossas forças, mas pelo dom
inestimável da fé recebemos e pela qual damos graças infinitas a Deus.
* * *
[1] Bento
XVI, Motu Proprio “Ubicunque et semper”.
[2] João
Paulo II, Parole sull’uomo, Rizzoli, Milano 2002, p. 443; cf. anche Enc.
“Fides et ratio”, n. 88.
[3] J.
Monod, Il caso e la necessità, Mondadori, Milano, 1970, pag. 136-7. [Ed.
original francesa: Jacques Monod, Le Hazard et la necessité. Essai sur la
philosophie naturelle de la biologie moderne. Seuil, Paris 1970; English trans.
Chance and Necessity. An Essay on the Natural Philosophy of Modern Biology,
Vintage 1971].
[4] M.
Planck, O conhecimento do mundo físico, (cit. por Timossi, op.cit. p.
160)
[5] J.H.
Newman, in The Letters and Diaries, vol. XXIV, Oxford 1973, pp. 77 s.
[6] J.H.
Newman, Apologia pro vita sua, Brescia 1982, p.277
[7] J.H.
Newman, Lo sviluppo della dottrina cristiana, Bologna 1967.
[8] Monod,
op. cit. p. 136.
[9] P.
Atkins, citado por Timossi, op. cit. p. 482.
[10] B.
Pascal, Pensamentos.
[11] M.
Blondel et A. Valensin, Correspondance, Aubier, Paris, 1957, p. 47.
[12] In
Origene, Contra Celsum, IV, 23 (SCh 136, p.238; cf. IV, 74 (ib. p. 366)
[13] Cf. M.
Pohlenz, O homem grego, Firenze 1962.
[14] In
Origene, op. cit., IV, 30 (SCh 136, p. 254).
[15] Scolii
a Dionísio Areopagita in PG 4, 536; cf. Dionísio Areopagita, Lettera VI (PG, 3,
1077).
[16] G.
Bardy, in Dct. Spir., III, col. 1389 s.
[17] São
Leão Magno, Sermo 21, 3: CCL 138, 88 (PL 54, 192-193)
[18]
Diálogo com Motovilov, em
Irina Gorainoff, Serafino di Sarov, Gribaudi, Turin 1981. p.
156.
[19] S.
Atanasio, J. Quasten, Patrologia, II, 22-83; Obras: PG 25-28.
[20] S.
Gregorio Nazianzeno, Discursos teológicos, III, 19 (PG 36, 100A).
[21] J.
Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, Herder, São Paulo, 1970. Versão
brasileira do Pe. José Wisniewski Filho, S.V.D., do original alemão Einführung
in das Christentum
[Traduzido
do original italiano por Márcia Ameriot]