Pregador do Papa: “A resposta cristã ao racionalismo” – Parte 2

3.
Necessidade de testemunhas

Quando a
experiência do sagrado e do divino chega súbita e inesperada de fora de nós e é
acolhida e cultivada, torna-se experiência subjetiva vivida. Temos assim as
“testemunhas” de Deus que são santos e, de modo especial, uma
categoria destes, os místicos.

Os
místicos, segundo uma definição célebre de Dionísio o Areopagita, são aqueles
que “padeceram Deus”16, isto é, participaram e viveram o divino. São, para o
restante da humanidade, como exploradores que entraram primeiro, secretamente,
na Terra Prometida e depois voltaram para contar o que tinham visto – “uma
terra que mana leite e mel” – e exortar todo o povo a atravessar o Jordão
(cf Num 14,6-9). Por meio deles, chegam a nós, nesta vida, os primeiros raios
da vida eterna.

Quando
lemos seus escritos, parecem distantes e até ingênuos os mais sutis argumentos
dos ateus e racionalistas! Nasce, na relação com estes últimos, um sentido de
surpresa e até de lástima como diante de alguém que fala de coisas que não
conhece. Como alguém que acreditasse ter descoberto contínuos erros de
gramática num interlocutor e não se desse conta que este está simplesmente
falando uma outra língua que ele não conhece. Mas não há nenhuma vontade de
confronto, mesmo as palavras em defesa de Deus parecem, naquele momento, vazias
e fora de lugar.

Os místicos
são, por excelência, aqueles que descobriram que Deus “existe”, e
mais ainda, que não somente existe realmente como infinitamente mais real que
aquilo que chamamos realidade. Foi precisamente de um destes encontros que uma
discípula do filósofo Husserl, judia e ateia convicta, uma noite descobriu o
Deus vivo. Falo de Edith Stein, depois Santa Teresa Benedita da Cruz. Hospedada
por amigos cristãos, quando estes precisaram ausentar-se uma noite, sozinha na
casa e sem saber o que fazer, tomou um livro da biblioteca dos amigos e começou
a ler. Era a autobiografia de Santa Teresa de Ávila. Atravessou a noite lendo.
Chegada ao final, exclamou simplesmente: “Esta é a verdade!” No
início da manhã, foi à cidade para comprar um catecismo católico e um missal e,
depois de tê-los estudado, dirigiu-se a uma igreja próxima e solicitou o
Batismo ao sacerdote.

Eu também
fiz uma pequena experiência do poder que os místicos têm de fazer-nos tocar o
sobrenatural. Era o ano em que se discutia muito o livro de um teólogo
intitulado “Existe Deus? (“Existiert Gott?”); mas, terminada a
leitura, poucos estavam preparados para trocar o ponto de interrogação do livro
para o de exclamação. Indo a um congresso, tinha levado comigo o livro dos
escritos da Beata Angela de Foligno, que eu ainda não conhecia. Fiquei
literalmente deslumbrado; levava o livro comigo nas conferências, abria-o a
cada intervalo e, no final, eu o fechei dizendo a mim mesmo: “Se Deus
existe? Não só existe, mas é realmente fogo devorador!”

Infelizmente,
certa moda literária conseguiu neutralizar até a “prova” viva da
existência de Deus que são os místicos. E o fizeram com um método único: não
reduzindo seu número, mas aumentando-o; não restringindo o fenômeno, mas
expandindo-o dramaticamente. Me refiro àqueles que, numa resenha sobre
místicos, em antologias de seus escritos ou numa história da mística colocam
lado a lado, como parte do mesmo gênero de fenômenos, São João da Cruz e
Nostradamus; santos e excêntricos; mística cristã e cabala medieval; hermetismo,
teosofismo, formas de panteísmo e até alquimia. Os verdadeiros místicos são
outra coisa e a Igreja tem razão de ser rigorosa no juízo sobre eles.

O teólogo
Karl Rahner, tomando, ao parecer, uma frase de Raimondo Pannikar, afirmou:
“O cristão de amanhã, ou será um místico, ou não será”. Tentava dizer
que, no futuro, manter viva a fé dependerá do testemunho de pessoas que possuem
uma profunda experiência de Deus, mais que a demonstração de sua plausibilidade
racional. Paulo VI dizia, no fundo, a mesma coisa quando afirmava, na Evangelii
nuntiandi (n.41): “O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as
testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de
leigos, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas”.

Quando o
apóstolo Pedro recomendava aos cristãos a estar “prontos a dar razão da
vossa esperança” (1 Pe 3,15), é certo, no contexto, que ele não falava da
razão especulativa ou dialética, mas da razão prática, ou seja, da sua
experiência de Cristo, unida ao testemunho apostólico que a garantia. Num
comentário a este texto, o cardeal Newman fala de “razões implícitas”
que são, para os crentes, mais intimamente persuasivas que as razões explícitas
e argumentativas17.

4. Um salto
de fé no Natal

Chegamos,
assim, à conclusão prática que mais nos interessa numa meditação como esta. Da
irrupção imprevista do sobrenatural na vida não precisam só os que não creem e
os racionalistas; necessitamos também nós, crentes, para reanimar a nossa fé. O
maior perigo que correm as pessoas religiosas é de reduzir a fé a uma sequência
de ritos e de fórmulas, repetidas, mesmo que com cuidado, mecanicamente e sem a
íntima participação de todo o ser. “Esse povo me procura só de palavra,
honra-me apenas com a boca, enquanto o coração está longe de mim. Seu temor
para comigo é feito de obrigações tradicionais e rotineiras” (Is 29, 13).

O Natal
pode ser uma ocasião privilegiada para ter esse salto de fé. Isso é a suprema
“teofania” de Deus, a mais alta “manifestação do Sagrado”.
Infelizmente, o fenômeno do secularismo está despojando esta festa de seu
caráter de “mistério tremendo” – isto é, que induz ao santo temor e à
adoração – para reduzi-lo somente ao aspecto de “mistério
fascinante”. Fascinante, o que é pior, somente no sentido natural, não
sobrenatural: uma festa dos valores familiares, do inverno, da árvore, das
renas e do Papai Noel. Existe, em alguns países, a intenção de trocar o nome de
“Natal” por “festa da luze”. Em poucos casos a
secularização é tão visível como no Natal.

Para mim, o
caráter “numinoso” do Natal está ligado a uma memória. Assisti, um
ano, à Missa do Galo, presidida por João Paulo II, em São Pedro. Chegou
o momento do canto da Kalenda, ou seja, a solene proclamação do nascimento do
Salvador, presente no antigo Martirológio e reintroduzida na liturgia natalina
depois do Vaticano II:

“Tendo
transcorridos muitos séculos desde a criação do mundo

Treze séculos
depois da saída de Israel do Egito

Na
centésima nonagésima quarta Olimpíada

No ano 752
da fundação de Roma

No
quadragésimo segundo ano do Império de César Augusto

Jesus
Cristo, Deus eterno e Filho eterno do Pai, tendo sido concebido por obra do
Espírito Santo, tendo transcorrido nove meses, nasce em Belém da Judeia, da
Virgem Maria, feito homem.” 

Chegados a
estas últimas palavras, senti aquilo que se chama “unção da fé”: uma
repentina clareza interior, pela qual me lembro de dizer a mim mesmo: “É
verdade! É tudo verdade isto que se canta! Não são somente palavras. O eterno
entra no tempo. O último evento da série rompeu a série; criou um
“antes” e um “depois” irreversível (olimpíada número tal,
reinado de tal…); agora tudo ocorre em relação a um único evento”. Uma
súbita comoção atravessou toda a minha pessoa, enquanto só podia dizer:
“Obrigado, Santíssima Trindade; e obrigado também a Vós, Santa Mãe de
Deus!”.

Ajuda muito
a tornar o Natal a ocasião para um salto de fé, encontrar espaços de silêncio. A
liturgia envolve o nascimento de Jesus no silêncio: “Dum medium silentium
tenerent omnia”, enquanto tudo em volta era silêncio. “Stille Nacht”,
noite de silêncio, é chamado o Natal num dos mas populares e amados cantos
natalinos. No Natal, devemos sentir como dirigido a nós o convite do Salmo:
“Parai! Sabei que eu sou Deus, excelso entre as nações, excelso sobre a
terra” (Sal 46,11).

A Mãe de
Deus é o modelo insuperável deste silêncio natalino: “Maria, porém,
guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração (Lc 2, 19). O silêncio
de Maria no Natal é mais que um simples calar-se; é maravilha, é adoração, é um
“religioso silêncio”, um ser “oprimido pela realidade”. A
interpretação mais real do silêncio de Maria é aquela encontrada nos antigos
ícones bizantinos, onde a Mãe de Deus aparece imóvel, com o olhar fixo, os
olhos arregalados, como quem viu algo que as palavras não podem expressar.
Maria, antes de todos, elevou a Deus o que São Gregório Nazianzeno chama
“um hino de silêncio”18.

Vive
realmente o Natal quem é capaz de fazer hoje, depois de tantos séculos, o que
teria feito se estivesse presente naquele dia. Quem faz o que Maria ensinou:
ajoelhar-se, adorar e calar!

1 J.H. Newman, Oxford
University Sermons, London 1900, pp.54-74; trad. Ital. di L. Chitarin, Bologna,
Edizioni Studio Domenicano, 2004, pp. 465-481.

2 Ib.p. XV
(trad. ital. Cit. p.726).

3 Ib., p. 183
(trad. ital. Cit. p.575).

4 Ibidem.

5 B.Pascal, Pensieri
267 Br.

6 S. Agostino,
Epist. 130,28 (PL 33, 505).

7 S.
Kierkegaard, Diario VIII A 11.

8 Newman, op.
cit., p. 262 (trad. ital. cit., p. 640 s).

9 B. Pascal, Pensieri,
n.146 (ed. Br. N. 277).

10Otto, Rudolf
(1992) O Sagrado. Sobre o Irracional na Ideia do Divino e sua Relação com o Irracional.
Lisboa: Edições 70.

11Bay, Dora
(2004) Fascínio e Terror: O Sagrado. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas,
número 61, Universidade Federal de Santa Catarina.

12 E. Kant,
Textos seletos. Introdução de Emmanuel Carneiro Leão. 3.ed. Petrópolis: Vozes,
2005.

13 F. Collins,
The Language of God. A Scientist Presents Evidence for Belief, Free Press 2006,
pp. 219 e 255.

14 In Clemente
Alessandrino, Stromati, 2, 9).

15 F.
Dostoevskij, I Fratelli Karamazov, parte II, VI,

16 Dionigi
Areopagita, Nomi divini II,9 (PG 3, 648) (“pati divina”).

17 Cf. Newman,
“Implicit and Explicit Reason”, in University Sermons, XIII, cit.,
pp. 251-277

18 S. Gregorio
Nazianzeno, Carmi, XXIX (PG 37, 507).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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