Os primeiros escritores cristãos

Após os escritos do Novo Testamento, houve, ainda no século I e no começo do II, os dos Padres Apostólicos (assim chamados porque estiveram em contato direto com os Apóstolos). Sobrevieram, nos séculos II/III, os Apologetas ou escritores que defenderam a fé cristã contra os pagãos e as primeiras heresias.

Os Padres Apostólicos

Dada a sua antiguidade, são muito estimados. Os seus escritos têm certa semelhança com os do Novo Testamento, a ponto que alguns chegaram a ser considerados canônicos (assim a Didaquê, a epístola de Clemente, a do Pseudo-Barnabé). Não escreveram tratados teológicos, mas geralmente cartas em língua grega, que abordam assuntos de disciplina, recomendam a unidade da Igreja e a autoridade dos Apóstolos. Eis os principais autores:

1. São Clemente de Roma (? 102?) foi, a quanto parece, o terceiro bispo de Roma após São Pedro. Pouco se sabe a respeito de sua vida, que nos foi narrada fantasiosamente por fontes espúrias. Por cerca de 96, escreveu uma carta aos coríntios, exortando-os à concórdia e à submissão aos legítimos pastores. O tom caloroso e firme desse escrito já manifesta a consciência que o bispo de Roma tinha de sua autoridade. Foram atribuídos a Clemente outros escritos, hoje reconhecidos como não autênticos.

2. S. Inácio, bispo de Antioquia (? 107), foi condenado à morte na perseguição de Trajano (98-117). Durante a viagem que, prisioneiro, fez da Síria a Roma, onde devia ser lançado às feras do Coliseu em espetáculo público, Inácio escreveu seis cartas às comunidades de Éfeso, Magnésia, Trales, Filadélfia, Esmirna, Roma respectivamente, e uma ao bispo Policarpo de Esmirna. – Nestes escritos percebe-se o ardente amor de Inácio a Cristo e à Igreja; o autor professa clara doutrina da Encarnação: Jesus é Deus, que se fez homem no seio de Maria Virgem; mostra que no começo do século II já havia o episcopado monárquico, ou seja, o bispo como pastor supremo da sua diocese; chama a igreja de Roma “aquela que preside na caridade”.

3. São Policarpo (? 156), bispo de Esmirna, viu e ouviu São João Evangelista. Escreveu uma carta aos filipenses. Famoso é o relato do Martírio de São Policarpo, a mais antiga Ata de martírio que temos.

4. Pápias (? 130 aproximadamente) foi bispo de Hierápolis na Ásia Menor. Redigiu cinco livros intitulados “Explicações dos dizeres do Senhor”, que infelizmente se perderam, excetuados poucos fragmentos, muito preciosos porque referem datas e circunstâncias atinentes à redação dos Evangelhos.

5. A Didaquê (Doutrina dos Doze Apóstolos), de autor desconhecido, é um catecismo simples da vida cristã e um ritual, que trata do Batismo, da Eucaristia, da celebração do domingo, do jejum… Pode ter sido redigido ainda no fim do século I.

6. A Epístola do Pseudo-Barnabé foi erroneamente atribuída a este companheiro de São Paulo. O autor quer valorizar o Antigo Testamento como mensagem dirigida aos cristãos e propõe as duas vias – a da luz e a das trevas -, que levam respectivamente à vida e à morte.

7. O Pastor de Hermas deve-se a um personagem que não podemos identificar. Trata da penitência sacramental, que era ministrada com grande rigor e uma só vez para cada cristão; os antigos confiavam à misericórdia de Deus aqueles que, após a dura praxe penitencial da época, recaíssem nos mesmos pecados.

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Sobre a Vida dos Primeiros Cristãos

Sobre a Vida dos Primeiros Cristãos (Parte 2)

O combate escrito aos cristãos

Nos seus três primeiros séculos, os cristãos tiveram que enfrentar, além das heresias, dois tipos de adversários: os pagãos e os gnósticos.

As acusações dos pagãos

Além dos judeus, os pagãos lançavam acusações contra os cristãos. Estes eram tidos como ateus porque não cultuavam os deuses do Império nem reconheciam César como deus; eram escarnecidos por adorarem uma cabeça de asno (os pagãos apresentavam o Crucificado com cabeça de asno, visto que a Cruz era, para eles, loucura); dizia-se que comiam crianças (pois recebiam sacramentalmente o Corpo e o Sangue do Senhor Jesus) e que em suas assembleias apagavam as luzes para realizar uniões incestuosas após o banquete. As calamidades (enchentes, incêndios, epidemias…) eram atribuídas à impiedade dos cristãos. Os intelectuais pagãos menosprezavam os cristãos porque não compartilhavam das expressões mitológicas da cultura; muitas vezes na própria casa de família abstinham-se das celebrações domésticas (aniversários, casamentos…), pois estas estavam impregnadas de espírito religioso politeísta (havia os dimanes, deuses da família). Em grande parte, os cristãos se recrutavam nas camadas mais humildes da população; por isto eram tidos como ingênuos, vítimas de um ou mais exploradores da sua simploriedade.

Os preconceitos que assim corriam de boca em boca, levavam a crer que os cristãos constituíam um perigo para o Império Romano. – De resto, as acusações levantadas contra eles tinham, às vezes, fundamento nas crenças ou nas práticas de grupos dissidentes do Cristianismo (montanismo, correntes gnósticas…); os pagãos não distinguiam entre a chamada “Grande Igreja” e os conventículos que professavam apenas parte da mensagem cristã.

O Gnoticismo

A gnose é uma corrente sincretista que funde entre si elementos das religiões orientais, da mística grega e da revelação judeo-cristã. Tentou envolver o Cristianismo no processo de fusão, pondo em xeque a pureza da mensagem evangélica nos séculos II/III. Por isto já em 1Tm 6,20 há uma advertência a Timóteo para que evite “as contradições de uma falsa gnose (pseudónymos gnosis)”.

Os gnósticos atraiam os homens prometendo-lhes um conhecimento superior ao da simples fé cristã, reservado aos iniciados. Esse conhecimento (gnosis) forneceria a solução cabal dos problemas fundamentais da filosofia (origem do mal, gênese do mundo, redenção e felicidade definitiva do homem).

Os gnósticos eram, antes do mais, dualistas, isto é, admitiam um princípio bom, que seria a Divindade (simbolizada pela Luz) e, em oposição, a matéria (simbolizada pelas trevas), má por si mesma. Da Divindade emanariam os seres (eones) num sistema de (365?) ondas concêntricas, cada vez mais distanciadas do bem e próximas do mal. O homem seria um elemento divino que, em conseqüência de um acontecimento trágico, terá sido condenado a se revestir de matéria (corpo) e viver na terra. O Criador do mundo material seria um eon inferior, que era identificado com o Deus justiceiro do Antigo Testamento.

Para libertar as centelhas de luz ou de bem aprisionadas na matéria e levá-las ao reino da luz, terá sido enviado ao mundo um eon superior, o Logos (Cristo). Este revelou aos homens o Deus Sumo e Verdadeiro, que eles ignoravam; anunciou-lhes que o mundo da luz os espera e lhes transmitiu as maneiras eficazes de vencer e eliminar a matéria.

O Salvador assim entendido tinha, conforme algumas escolas gnósticas, apenas um corpo aparente (docetismo) ou, segundo outras, tinha um corpo real, no qual o Logos desceu e permaneceu desde o Batismo até a Paixão de Jesus.

A salvação só pode ser obtida pelos homens pneumáticos (espirituais) ou gnósticos, nos quais prevalece a luz. A maioria dos homens ou a massa é material (hílica) e será aniquilada como a matéria. Entre os espirituais e os materiais haveria os psíquicos ou os simples crentes católicos, que poderiam chegar a gozar de uma bem-aventurança de segunda ordem.

Os gnósticos admitiam o retorno de todas as coisas às condições correspondentes à sua natureza originária.

Pelo fato de desprezarem a matéria, os gnósticos deveriam praticar severa ascese ou abstinência de prazeres carnais. Facilmente, porém, passavam ao extremo oposto: recusando o Deus do Antigo Testamento, que era também o autor da Lei, rejeitavam normas de conduta moral e caiam em libertinismo desenfreado. Julgavam supérflua a confissão de fé perante as autoridades hostis, porque a verdadeira profissão de fé, o martírio (testemunho em grego) consistia na gnose; quem possui a esta, não está obrigado a sacrifício algum.

O gnosticismo se ramificou em escolas diversas: o oriental, mais rígida, a helênica, mais branda, a de Marcião, mais chegada ao Cristianismo, a dos Ofitas (cultores da serpente), a dos Cainitas, a dos Setianos… Floresceu principalmente entre 130 e 180, contando com chefes de capacidade notável (Basílides, Valentim, Carpócrates, Pródico…). Produziram rica bibliografia (tratados de filosofia, comentários de textos bíblicos, hinos…), de que nos restam poucos fragmentos.

O confronto entre a gnose aparatosa e o Cristianismo nascente foi de enorme perigo para este; a Igreja teve que desenvolver eloquente e densa apologética representada principalmente por S. Justino, S. Irineu, Tertuliano, Hipólito de Roma… Os bispos se uniram entre si como autênticos guardas do patrimônio da fé; Roma, onde os
principais mestres da gnose queriam implantar-se, soube desenvolver ação particularmente benemérita. Na confusão que entre os cristãos podia estabelecer-se no debate doutrinário, o critério para julgar a veracidade de determinada sentença era a conformidade ou não desta com os ensinamentos da Igreja de Roma; estes eram decisivos, pois a comunidade de Roma estava fundada sobre a pregação e o martírio dos dois principais Apóstolos (Pedro e Paulo): “É com esta Igreja (de Roma), em razão de sua mais poderosa autoridade de fundação, que deve necessariamente concordar toda igreja, isto é, devem concordar os fiéis procedentes de qualquer parte; nela sempre se conservou a Tradição que vem dos Apóstolos” (Contra as Heresias III, 3, 1-3).

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Os Apologetas

1. São Justino (? 165 aproximadamente) recebeu o cognome de “filósofo”. Desde jovem, passou pelas principais escolas de filosofia de sua época (o Estoicismo, o Aristotelismo, o Pitagorismo, o Platonismo); finalmente conheceu os Profetas do Antigo Testamento e assim chegou a Cristo, cuja mensagem lhe satisfez plenamente; por isto dizia que o Cristianismo é a verdadeira filosofia; revestido do pálio dos filósofos, deixou sua terra natal, a Palestina, e foi pelo mundo até estabelecer sua escola em Roma. Deixou duas Apologias e o “Diálogo com Trifão judeu”. Os principais pontos doutrinais aí apresentados são:

A teoria do Verbo seminal. Onde há verdade, esta foi comunicada pelo Verbo de Deus. A filosofia grega contém gérmens de verdade, que o Verbo lhe transmitiu através do Antigo Testamento. Também todo homem possui no seu íntimo um gérmen do Verbo, que o capacita a conhecer a verdade. Após a vinda de Cristo, a plenitude da verdade se acha entre os cristãos.

O paralelo Eva-Maria foi formulado por São Justino pela primeira vez. Eva virgem (antes de se relacionar com Adão), pela desobediência, trouxe a morte ao mundo; Maria Virgem pela sua fé trouxe a Vida-Cristo à humanidade.

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2. Tertuliano (? após 220) fez-se cristão em idade adulta, quando já exercia a profissão de advogado. Teve o grande mérito de criar uma terminologia precisa e afinada com as categorias do Direito para exprimir a mensagem cristã. Cheio de fantasia, sátira e eloquência, tendia ao rigorismo, que o levou a abandonar a Igreja para aderir ao Montanismo (que apregoava a proximidade de nova era, a do Espírito). Deixou 31 obras dedicadas a reafirmar o Cristianismo frente aos adversários.

3. Minúcio Félix é o autor do diálogo Octavius, do século III. Apresenta a troca de idéias entre o cristão Otávio e o pagão Cecílio; refuta as acusações contra os cristãos e traça um quadro atraente da vida destes.

4. A Epístola a Diogneto é de autor anônimo, que se dirige a um pagão de alta categoria para valorizar a ética dos cristãos: “Participam de tudo como cidadãos, mas tudo suportam como estrangeiros. Qualquer terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Casam-se e procriam, mas nunca lançam fora o que geraram… Na terra vivem, participando da cidadania do céu… Para resumir numa palavra: o que a alma é no corpo, são os cristãos no mundo”.

O estudioso muito lucrará se dedicar-se à leitura de tais obras, pois lá encontrará fontes de inestimável riqueza para a fé e a espiritualidade. Recomenda-se, pois: Cirilo Folch Gomes, Antologia dos Santos Padres. Ed. Paulinas. À guisa de introdução, ver: A. Hamman, Os Padres da Igreja. Ed. Paulinas.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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