Os mais belos sermões de Hugo de São Vítor – Parte 9

SERMO LXX

Sobre o dia de Pentecostes

“Graça e glória dará o Senhor”. Salmo 83, 12

 Caríssimos, o homem
foi feito à imagem e semelhança de Deus para isto: para que pudesse ser
participante pela graça daquele bem que Deus é por natureza. Á imagem de Deus
foi feito segundo a razão, à semelhança de Deus segundo o amor. Á imagem
segundo o conhecimento da verdade, à semelhança segundo o amor da virtude. Á
imagem segundo o intelecto, à semelhança segundo o afeto. Deus artífice fêz
assim a criatura à sua imagem e semelhança para que, sendo feito à semelhança
de Deus, a Deus amasse e, conhecendo e amando, possuísse a Deus, e possuindo
pudesse ser bem aventurado, assim como em um só elemento, a saber, o fogo, há
duas coisas diversas e distintas entre si, isto é, o esplendor e o calor. Nem o
esplendor é o calor, nem o calor é o esplendor, porque o esplendor brilha e é
visto, enquanto que o calor arde e é sentido; nem o esplendor arde ou é
sentido, nem o calor brilha ou é visto. Assim também na criatura humana a
imagem e a semelhança de Deus parecem ser diversas e de certo modo distintas
entre si, pois segundo aquele bem pelo qual foi feito à imagem de Deus a
própria criatura humana brilha para o conhecimento e segundo aquele bem pelo
qual foi feito à semelhança de Deus aquece-se ao amor. Que, porém, a imagem e a
semelhança de Deus possam ser tomadas segundo as precedentes distinções, os
doutores o declaram ao exporem as palavras do salmista, onde se lê:

 “Levanta sobre
nós a luz do teu rosto, ó Senhor! Infundiste no meu coração a alegria.” Salmo 4,7-8

Pela luz que se
levanta sobre nós ou em nós distingüem, de fato, a divina imagem, que a apontam
na discrição da razão; já pela alegria distingüem a divina semelhança, que a
apontam na radiosidade do amor.

O homem, portanto,
criado à imagem e semelhança de Deus, foi ele próprio constituído como que na
parte mais excelente da providência divina como senhor do mundo no paraíso das
delícias. A mesma divina providência acrescentou à razão do homem a advertência
necessária para conservar o bem que possuía e o instruíu na busca e na obtenção
dos bens que ele ainda não possuía pelo preceito da obediência juntamente com a
operação da graça. O demônio porém viu e invejou que aquele homem subiria pela
obediência ao lugar de onde ele próprio pela soberba havia caído. Como, porém,
não poderia causar-lhe dano pela violência, voltou-se para a fraude, para poder
vencer pela trapaça ao homem, a quem não poderia superar pela virtude.
Enganando assim o demônio ao homem, inflingiu-lhe dois males principais que se
opõem a estes dois bens principais, ferindo-o com duas chagas mortais. Onde o
homem havia sido feito à imagem de Deus segundo a razão, feriu-o pela
ignorância do bem. Onde o homem havia sido feito à semelhança de Deus segundo o
amor, feriu-o pelo desejo do mal. Estes são os dois males principais a partir
dos quais procedem todos os demais males do homem. Da ignorância procede o
delito, da concupiscência procede o pecado. O delito ocorre quando não se faz o
que deveria ser feito. O pecado ocorre quando se faz o que não se deve fazer. O
homem, portanto, espoliado e ferido, espoliado dos bens, ferido pelos males,
foi deixado semivivo, pois ainda que na natureza humana a divina semelhança que
consiste no amor possa ser inteiramente corrompida, todavia a imagem divina,
que está na razão, não pode ser totalmente apagada. De fato, embora a malícia
possa tomar conta de alguém a tal ponto que nada mais ele possa desejar de bom,
ninguém pode, porém, tornar-se cego por uma tamanha ignorância que nada mais
possa conhecer da verdade. Isto é patente no próprio demônio, o príncipe do
mal, o qual, embora tenha-se corrompido a tal ponto que nada mais ame do bem,
ainda assim não lhe foi possível tornar-se cego a tal ponto que nada mais
conheça da verdade. Corretamente, portanto, se diz que o homem foi deixado
semivivo, pois ainda que pelos males primordiais tivesse se corrompido em
parte, não está, todavia, inteiramente cego. Não é de se admirar, pois, que
mesmo depois de assim ser ferido, tenha vivido aquele ao qual foi deixada uma
centelha de algum entendimento; a espada do inimigo não pôde extingüir
completamente o homem, na medida em que nele não pôde destruir completamente a
dignidade do bem da natureza.

O salmista canta
este entendimento onde diz:

 “Cria em mim, ó
Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito reto”. Salmo 50, 12

 Pelo coração puro,
de fato, o salmista designa a semelhança divina, e pelo espírito reto designa a
divina imagem. Enquanto pede que lhe seja criado um coração puro, pede que lhe
seja renovado o espírito reto, indicando com correção que a divina semelhança
pode ser inteiramente corrompida, enquanto que a divina imagem nunca pode ser
totalmente destruída. Ali, de fato, onde nada restou de bom, se o bem é
restaurado, estará sendo criado, e ali, onde algo de bom ainda existe, ele se
renova. A pureza do coração consiste no perfeito amor de Deus e a retidão do
espírito na saúde da razão. Concorda também com este sentido aquele outro verso
do Salmo 103:

 “Todos, Senhor, esperam de ti. Envia o teu espírito, e serão criados, e renovareis a face da terra”. Salmo 103, 27-30

O homem, portanto,
foi honrado por estes dois bens principais. Não entendeu, porém, a honra a que
tinha sido elevado; e, consentindo ao demônio, corrompeu em si estes dois bens
pelos males de que já falamos. Não podendo, depois disto, nem desfazer-se deste
mal, nem sendo capaz de reformar o bem que ainda possuía, a divina providência
concedeu-lhe estes dois principais remédios pelos quais poderia curar-se dos
males que lhe haviam sido inflingidos e recuperar os bens que havia perdido;
são estes o conselho e o auxílio.

Para que o homem
conhecesse a sua enfermidade, foi em primeiro lugar entregue inteiramente a si
próprio, para não suceder que viesse a julgar a graça como coisa supérflua, não
conhecendo antes o defeito de sua enfermidade. Veio assim o tempo da lei
natural, para que a natureza operasse por si própria, não porque pudesse alguma
coisa por si mesma, mas para que conhecesse a sua impossibilidade. Entregue a si
mesmo, começou a afastar-se da verdade pela ignorância; obrigado a admitir a
sua cegueira, seria depois também obrigado a admitir a sua enfermidade. Foi-lhe
dado, então, a lei escrita, para que iluminasse a sua ignorância, mas não
fortalecesse a sua enfermidade, para que o homem pudesse ser ajudado naquela
parte em que tivesse reconhecido o seu defeito, sendo abandonado, porém, a si
próprio ali onde ele ainda achava que poderia sustentar-se por si próprio.
Recebida, assim, a ciência da verdade que lhe veio através da lei, principiou o
homem a esforçar-se para progredir; pressionado, porém, pelo desejo do mal,
pois não possuía o auxílio da graça, foi incapaz de entregar-se à obra da
virtude. A sentença do apóstolo concorda perfeitamente com este sentido, ali onde
diz:

“Pois pelas
obras da lei não será justificado nenhum homem diante de Deus”. Rom. 3, 20

 E também:

“A lei nenhuma
coisa levou à perfeição”. Heb. 7, 19

Por que? O que nos
vem pela lei? Apenas o conhecimento do pecado a que estamos submetidos. Pela
lei nos vem apenas o conhecimento do pecado, não a sua extinção. A lei
preceitua ensinando, mas o homem que possuía o conselho da lei sem possuir o
auxílio da graça era incapaz de praticá-la. A lei dava o conhecimento do que
deveria ser feito, não, porém, o vigor para fazê-lo. O pobre enfermo
continuaria em sua fraqueza a não ser que o médico que lhe havia dado o
conselho de escapar dela lhe oferecesse também o seu remédio. Não pode o homem
enfraquecido pelo pecado justificar-se apenas pela lei, a não ser que se lhe
ofereça a graça, que é o remédio do pecado. O homem foi assim obrigado a
admitir ambas estas coisas, isto é, que por si próprio não poderia nem conhecer
a verdade, nem realizar o bem. No tempo da lei natural foi obrigado a admitir a
sua cegueira; no tempo da lei escrita a sua enfermidade. Foi assim que o
profeta Davi, vendo que nem a natureza, nem a lei poderiam ser suficientes para
libertar o homem, compreendendo a graça ser necessária e observando na lei a
benevolência divina para com o gênero humano, exortou a si próprio e a todos
para que confiassem não nas obras da lei mas na graça de Deus, dizendo:

“A graça e a
glória dará o Senhor”. Salmo 83, 12

Assim, depois que o
homem conheceu sua cegueira e sua enfermidade, convenientemente lhe foi dada a
graça, pela qual se iluminaria o cego e se sararia o enfermo; iluminaria a
ignorância, esfriaria o desejo do mal; iluminaria para o conhecimento da
verdade, inflamaria ao amor da virtude. Por causa disto o Espírito foi dado em
fogo, para que tivesse luz e chama. Luz para o conhecimento, chama para o amor.

A sagrada solenidade
desta dádiva excelente e perfeita, “que vem do
alto e descende do Pai das luzes”, Tg 1,17

não é coisa nova,
desconhecida e repentina, mas é antiga, célebre e autêntica, já celebrada
figuradamente por Moisés e pelos filhos de Israel no monte Sinai. A lei, de
fato, “foi dada por
Moisés, a graça e a verdade foram feitas por Jesus Cristo”. Jo. 1,17

A lei foi dada no
alto do monte, a graça foi dada no alto do cenáculo. A lei foi dada nos
fulgores do fogo, a graça foi dada em línguas de fogo. A lei foi dada para doze
tribos, a graça foi dada primeiro para doze apóstolos. A lei foi escrita em
duas tábuas, a graça se consuma nos dois preceitos da caridade. A lei foi
escrita pelos dedos de Deus em tábuas de pedra, a graça foi escrita pelo
Espírito Santo em corações humanos. A lei foi dada no qüinquagésimo dia depois
de ter sido celebrada a Páscoa na terra do Egito, a graça foi dada no
qüinquagésimo dia depois da ressurreição do Senhor. De fato, “quando se
completaram os dias do Pentecostes, estavam os discípulos igualmente no mesmo
lugar; e, de repente, veio do céu um estrondo, como de um vento que soprava impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados.

E apareceram-lhes
repartidas umas como línguas de fogo, e pousou uma sobre
cada um deles. E foram todos cheios do Espírito Santo”. Atos 2,1-4

O Espírito, cuja
plenitude está na cabeça, a participação está nos membros. A cabeça é Cristo, o
membro é o cristão. A cabeça é uma, os membros são muitos; e o corpo é
constituído de cabeça e membros, e um só Espírito em um só corpo. Se, pois, há
um só corpo e um só Espírito, quem não está no próprio corpo não pode ser
vivificado pelo Espírito, assim como está escrito:

“Se alguém não
tem o Espírito de Cristo, este não é dele”. Rom 8,9

Quem, portanto, não
possui o Espírito de Cristo, não é membro de Cristo. Um só corpo, um só
Espírito. Nada há de morto no corpo, nada há de vivo fora do corpo. Esta é
aquela unção na cabeça a qual “desce sobre a
barba, a barba de Aarão, que desce até a orla de seu vestido”. Salmo 132,2

A cabeça, conforme
dissemos, significa Cristo, que é a cabeça de todos os fiéis. A barba, que está
junto à cabeça e é sinal de virilidade, designa os apóstolos, que aderiram a
Cristo enquanto ele vivia no mundo, junto com ele comeram e beberam, ouviram a
sua doutrina de salvação, viram seus milagres e, depois de sua ascensão, tendo
recebido o Espírito Santo, mais plenamente fortalecidos, agiram com virilidade,
pregando a fé em Cristo pelos reinos do mundo, sendo levados por causa de seu
nome aos tribunais, flagelados nas sinagogas, conduzidos diante de reis e
governantes: e em tudo isto foram vencedores. A unção, portanto, do Espírito Santo,
que está na cabeça em sua plenitude, “desce”, por participação,
“sobre a barba”, isto é, sobre os apóstolos, quando Cristo lhes diz:

“Recebei o
Espírito Santo”; Jo. 20, 22

e também quando,
depois de sua ascensão, ele lhes enviou o mesmo Espírito. Desceu “até a
orla de seu vestido”, porque o mesmo Espírito é concedido aos santos que
haverá no futuro até o fim do mundo.

E agora, caríssimos,
volvamos nosso olhar a nós mesmos, e observemos se nos purificamos de toda
mácula da carne e do espírito, para que possamos dignamente nesta solenidade
sagrada possuir ou receber o Espírito Santo:

 “Na alma
malignanão 
entrará  a sabedoria, nem habitará no corpo sujeito ao pecado, porque o Espírito Santo, que  a
ensina, foge das ficções, e afasta-se dos pensamentos que são sem entendimento, e é expulso pela iniqüidade
superveniente”. Sab.1, 4-5

Imitemos, pois, os
nossos pais, os santos apóstolos, de cujas obras recebemos nosso odor.
Imensamente recomendável e digno de imitação é o que deles foi escrito:

“Estavam todos
igualmente no mesmo lugar”. Atos 2,1

Estejamos também
nós, irmãos, igualmente não apenas no mesmo lugar da casa, mas também em uma só
fé, esperança, caridade, devoção, oração, invocação e expectativa do Espírito
Santo, para que igualmente mereçamos sua aceitação e participação para que,
assim como sejamos por Ele justificados no tempo, igualmente sejamos
glorificados na eternidade.

Digne-se para tanto
Jesus Cristo, Nosso Senhor, vir em nosso auxílio, ele que é Deus, bendito por
todos os séculos.

Assim seja.

SERMO LXXXIV

 Sobre a perfeição e
as alegrias da Igreja
militante e triunfante, por
ocasião da festa de Santo
Agostinho.

 “Ó minha alma, bendize ao Senhor, porque libertou
Jerusalém, sua cidade.

Ditoso de mim, se
restar alguém de minha
descendência para ver o esplendor
de Jerusalém. As portas de
Jerusalém serão construídas de safiras e de
esmeraldas, e de pedras
preciosas todo o circuito de seus muros. Todas as suas ruas
serão calçadas de pedras brancas e puras, e pelas suas vilas
se cantará aleluia. Bendito seja o
Senhor, que a exaltou, que o seu reino
sobre ela seja pelos séculos dos
séculos.

Amén”. Tobias 13, 19-23

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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