Os mais belos sermões de Hugo de São Vítor – Parte 7

Daqui procede também
ter sido dito ao bispo de Filadélfia:

 “Guarda o que
tens, para que ninguém tome a tua coroa”; Apoc. 3, 11

 e igualmente, ao
bispo de Éfeso:

 “Tenho contra
ti que deixaste a tua primeira caridade. Lembra-te pois de onde caíste, arrepende-te e volta às tuas primeiras obras, do contrário virei a ti e removerei o teu candelabro do teu
lugar”. Apoc. 2, 4-5

De fato, o
candelabro de qualquer pastor réprobo é removido de seu lugar quando, por
exigência de seus pecados, a dignidade eclesiástica que lhe foi concedida lhe é
retirada como a um inútil e indigno e transferida a outro digno e capaz de
produzir frutos. Tal é o que vemos acontecer com freqüência, isto é, que os
réprobos, afastados de seus cargos, são substituídos por outros pelos quais os
deveres da Igreja são exercidos conforme é devido.

Semelhante pastor,
finalmente, é merecidamente chamado descalço, na medida em que, no que diz
respeito ao ministério eclesiástico, é espoliado das vestimentas da palavra e
do exemplo, e também despojado tanto do mérito como do prêmio. Na medida em que
amou gerar e propagar a família de seus vícios, abandonou ao outro os calçados
do ensino e da obra, pelos quais deveria ter fortalecido aos seus, que lhe
haviam sido confiados, em preparação ao Evangelho da paz. Oxalá que então se
cumpra a imprecação do salmista:

“Seja
exterminada a sua posteridade, e que em uma geração se apague o seu nome”. Salmo 108, 13

Lemos também no
livro de Rute que, com a recusa do parente mais próximo, todas as coisas que
haviam sido do defunto passaram por privilégio para a posse de Booz, que se
tornou seu novo usuário (Rute 4,9). Isto significa que, principalmente no que
diz respeito aos santos e aos perfeitos reitores de almas, eles mesmos fazem,
conforme no-lo ensina o Evangelho, as mesmas obras que Cristo fêz, e ainda “as fazem
maiores do que estas”. Jo. 14,12

Entende-se também
que eles, assim como Booz, comprem todas as coisas “da parte do campo de
Elimelec que estava para ser vendido” (Rute 4,2), na medida em que
renunciam às suas coisas e às suas vontades para obedecerem à divina vontade. É
por isto é que o bem aventurado Pedro diz a Cristo:

“Eis que nós
abandonamos tudo, e te seguimos”. Mat. 19, 27

Assim fez também o
mercador prudente, que “encontrando
uma pérola preciosa de grande valor, vende tudo o que tem e a compra”. Mat. 19, 27

 Feitas estas coisas,
felicitaram então os anciãos de Belém a Booz, dizendo-lhe:

“Faça o Senhor
que esta mulher, que entra na tua casa, seja como Raquel e Lia,

 que edificaram a casa de Israel”. Rute 4, 11

 Os anciãos de Belém
oram por Booz em favor de Rute, o que significa que na santa Igreja os
perfeitos auxiliam por suas contínuas orações ao prelado eclesiástico e a toda
a congregação que lhe é confiada. E assim como Raquel e Lia edificaram a casa
de Israel, assim também Rute edifica a casa de Booz, na medida em que a santa
congregação confiada ao prelado fiel, fecundada a descendência espiritual pelo
seu ministério, multiplica-lhe a posteridade que são os homens espirituais,
alguns dos quais se dedicam à contemplação, enquanto outros se ocupam com a
ação.

 “Que ela seja
um exemplo de virtude em Éfrata”, Rute 4,11

resplandecendo na Igreja
universal pela sua obediência.

“Que ela tenha
um nome célebre em Belém”, Rute 4,11

difundindo-se e
celebrando-se a sua boa fama por toda a Igreja.

E, finalmente, “que a tua casa
se torne como a casa de Farés, que Tamar deu à luz de Judá, pela descendência que o Senhor te der desta
jovem”. Rute 4,12

Isto ocorrerá sempre
que muitos entre os que dela forem gerados pelo ensino, purificados dos antigos
pecados pelo amargor de uma salutaríssima confissão e, em seguida, escolhidos e
divididos entre vários outros principalmente pelo dom da ciência e da virtude,
mereçam algumas vezes ser exaltados à culminância de reger a Igreja. Tamar,
efetivamente, significa `amargor’, Judas significa `o que confessa’, e Farés
significa `divisão’. E nisto a descendência de Farés, a quem Tamar deu à luz,
teve uma divisão mais duradoura do que a das demais tribos de Israel, pois dela
procedeu, com a linhagem de Davi, a dignidade real, conforme também se declara
no livro de Rute, onde está escrito:

“Estas são as gerações
de Farés: Farés gerou a Esron, Esron gerou a Aram, Aram gerou a Aminadab, Aminadab gerou a
Naason, Naason gerou a Salmon, Salmon gerou a Booz, Booz gerou a Obed, Obed gerou a Isaí, também conhecido como Jessé, e Isaí gerou a Davi”. Rute, 4, 18-22

Agora, portanto,
irmãos caríssimos, retornando a nós mesmos, desejemos que este Booz espiritual
sempre nos presida, e temamos que aquele inútil parente próximo reine sobre
nós. Quando é dado à Igreja um bom pastor, ele provém do dom de Deus. Quando,
porém, é um réprobo que preside, isto ocorre porque assim o exigem os pecados
do povo, pois, conforme o declaram as Escrituras, Deus faz reinar o hipócrita
sobre os homens por causa dos pecados do povo (Jó 36,8-9). O reitor
desordenado, portanto, na medida em que os homens reconheçam terem recebido o
regime de um pontífice perverso por causa de seus próprios méritos, não deve
ser julgado pelo povo. Deus, efetivamente, dispõe a vida dos governantes de
acordo com os méritos do povo, como é manifesto no exemplo do pecado de Davi, o
qual pecou à semelhança dos príncipes que prevaricam por causa do mérito do
povo. Se o reitor exorbitar da fé deverá ser repreeendido pelos súditos, mas
pelos costumes réprobos mais deverá ser tolerado pela plebe do que desprezado.
Agora, portanto, caríssimos, não presumamos despedaçar temerariamente os
prelados naquilo em que eles tenham procedido desordenadamente. Segundo a
sentença do bem aventurado S. Gregório, nenhum de nós, mesmo que injustamente
ordenado, repreeenda temerariamente a sentença de seu pastor, para que não
ocorra que, ainda que injustamente ordenado, pela soberba de uma repreensão
inchada surja uma culpa que antes não existia. Se, porém, virmos um verdadeiro
Booz solicitamente suscitar a descendência espiritual para propagar o nome de
Cristo pela palavra do ensino e pelo exemplo da boa obra, alegremo-nos. E nós
mesmos, bem vivendo, e admoestando-nos um ao outro, empenhemo-nos em ser seus
consortes no mérito, para que mereçamos tornar-nos também seus consortes no
prêmio.

E que para tanto se
digne vir em nosso auxílio Nosso Senhor Jesus Cristo, que é, em tudo, Deus
bendito, pelos séculos dos séculos.

Amén.

SERMO LX

 Sobre todos os
Santos.

 Diletíssimos irmãos,
Cristo Jesus, Nosso Salvador, esposo da santa Igreja universal, louva
elegantemente no Cântico dos Cânticos o variado e múltiplo fruto de sua esposa.
Ele deseja, por meio deste louvor, incentivá-la e inflamá-la a coisas ainda
maiores. Dela Ele diz, em algum lugar, o seguinte:

“Jardim fechado
és, irmã minha esposa, jardim fechado,
fonte selada. Tuas procedências
são um paraíso de romãs com árvores frutíferas. Os cipres com o
nardo, o nardo com o
açafrão, a cana aromática e o
cinamomo, com todas as árvores
do Líbano; a mirra e o aloés, com todos os primeiros
unguentos”. Cant. 4,12-13

 Em todas estas
coisas o esposo se alegra e se congratula com a esposa, e o bem da esposa é
louvado com elegância pelo esposo. A própria santa Igreja no Cântico dos
Cânticos é chamada por vários nomes. Algumas vezes, efetivamente, é chamada de
esposa, outras de amiga, de irmã, de pomba, de bela ou de formosa. Ela é, de
fato, esposa pela fé, amiga pelo amor, irmã pela participação da herança
celeste, pomba pela simplicidade, formosa pela doçura da justiça.

“Jardim fechado
és, irmã minha esposa, jardim
fechado”.

Pelo jardim da santa
Igreja entendemos a sua santa conversação, da qual incessantemente vemos
originar-se o rebento das virtudes e das boas obras. Corretamente este jardim é
dito fechado, por ser defendido em toda a sua volta pela forte guarnição da
disciplina, para que não aconteça que o inimigo traiçoeiro irrompa em algum
lugar e arranque e leve a plantação da justiça. Este jardim é nomeado
abertamente por duas vezes, para com isto designar manifestamente seu duplo
fruto, a saber, a fé e a obra, ou os casados e os continentes, ou também a
distinção de Deus e do povo, ou certamente a vida ativa e a contemplativa.
Está, portanto, escrito:

 “Jardim fechado
és, irmã minha esposa, jardim fechado,
fonte selada”. Cant. 4, 12

 Pela fonte deste
jardim entende-se a sabedoria celeste. Esta fonte, como para irrigar o paraíso,
divide-se em quatro rios, na medida em que a divina sabedoria se estende sobre
toda a Igreja pela pregação dos quatro evangelhos. Este jardim também no-lo é
corretamente apresentado como selado, porque a sabedoria de Deus está velada
nas Sagradas Escrituras por muitos e diversos enigmas. Por isto é que o
Apóstolo Paulo diz:

 “Pregamos a
sabedoria de Deus no mistério, que está encoberto, que Deus predestinou antes dos séculos para a nossa glória”. I Cor. 2, 7

 Este é aquele livro
selado, do qual diz Isaías:

 “Quando o derem
a um homem que sabe ler, e lhe disserem: `Lê este livro’; ele responderá: ‘Não posso, porque está
selado’.  Is. 29, 11

 Trata-se também do
mesmo livro da vida, aquele sobre o qual o bem aventurado João afirma ter visto

 “Na mão direita
do que estava sentado sobre o trono, um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos, que ninguém podia, nem no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, abrí-lo, nem olhar para ele, senão o leão da tribo de Judá,

 a estirpe de Davi, que venceu e era como um Cordeiro que parecia ter sido imolado, o qual tinha sete
chifres e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus mandados por toda a terra”. Apoc. 5, 1-6

 Somente Ele pôde
abrir esta fonte ou este livro. Somente Ele pôde também, com todo o direito,
dizer aos seus discípulos:

“A vós é
concedido conhecer o mistério do Reino dos Céus”. Mt. 13, 11

 Por isto é que está
também escrito em outro lugar dEle e de seus discípulos:

“Abriu-lhes o
entendimento, para que compreendessem as Escrituras”. Luc. 24, 45

Ninguém, portanto,
poderá provar o gosto desta fonte salutar senão aquele a quem o Salvador, o
único que a abre a a fecha, dignar-se abrir o seu selo. Mas não poderá também
possuir os frutos deste jardim aquele a quem esta fonte não fornecer uma
salutar irrigação, o próprio Salvador demonstrando que abre a alguns e fecha a
outros o rio desta fonte, quando diz aos seus discípulos:

“A vós é
concedido conhecer o mistério do Reino dos Céus, mas a eles não lhes
é concedido; por isso lhes falo em parábolas, para que vendo não vejam, e ouvindo não ouçam”. Mat. 13, 11-13

E, em outro lugar,
diz ao Pai:

“Graças te dou,
ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e aos prudentes, e as revelaste aos pequeninos”. Mat. 11, 25

O jardim, portanto,
é fechado, e a fonte é selada. O jardim é fechado pela disciplina, a fonte é
selada pela alegoria. O jardim é fechado para que nela não irrompa o inimigo
traiçoeiro; a fonte é selada para que o estranho não beba dela. O jardim é a
justiça; a fonte, a sabedoria. O esposo fala primeiro do jardim florescente e
da fonte irrigante. Depois expõe mais amplamente o fruto do florescimento e da
irrigação, dizendo:

“Tuas
procedências são um paraíso de
romãs com árvores
frutíferas”.

Procedem da santa
mãe Igreja os seus partos espirituais. Nesta passagem, porém, mencionam-se
principalmente os mártires, designados pelo nome de romãs, os quais são
admitidos no céu saindo do mundo e procedendo da Igreja. A Igreja não os perde,
mas os envia e confia ao Cristo. As romãs, pelo seu suco, são azedas em seu
interior e contém sementes rubras. São, por isto, figuras dos mártires, os
quais podem ser ditos rubros não apenas exteriormente, como também
interiormente, porque há dois gêneros de martírio, um interior e outro
exterior, um no coração e outro na carne, e de nada vale o que é exterior se
falta o que deve ser interior. De fato, de nada aproveita a paixão da carne a
quem falta a compaixão do coração, conforme está escrito:

 “Toda a glória
do rei provém do interior”. Salmo 44, 14

As romãs que
procedem deste jardim são comparadas ao paraíso porque assim como o paraíso é
repleto de diversas árvores, assim também a santa Igreja é repleta e densamente
ornamentada de inúmeros mártires. Quem, de fato, entre os calculadores mais
peritos poderá compreender ainda que apenas o número talvez centenário ou milenário
dos mártires? Dos quais, conforme clama a Escritura, alguns foram mortos em
ferros, outros queimados pelas chamas, outros ainda açoitados pelo chicote,
afogados na água, escalpelados vivos, perfurados pelos narizes, atormentados no
patíbulo, aprisionados às correntes, outros tiveram suas línguas cortadas,
foram mortos por apedrejamento, sofreram frio e fome, tiveram cortadas mãos e
partes do corpo ou foram entregues, por causa do nome do Senhor que levavam,
como espetáculo ao desprezo do povo (Heb. 11,35-38).

Pode ser causa de
admiração como o martírio se compara ao paraíso, se o martírio possui amargura
enquanto que o paraíso possui alegria. Isto não será causa de espanto, porém,
se examinarmos o assunto com mais diligência. Todos os gêneros de tormentos
foram causa de alegria para os santos mártires, e tudo para eles era doce. O
que o poder adverso lhes podia infringir pelo nome da cristandade era tido por
eles como pouco, conforme está escrito dos apóstolos:

“Saíram os
apóstolos da presença do Conselho contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas
pelo nome de Jesus”. Atos 5, 41

 E o Apóstolo Paulo,
considerando quão grande dom era para ele poder sofrer por Cristo, diz,
escrevendo aos Filipenses, que

 “A vós é dado
por amor de Cristo não somente que creiais nele, mas também que sofrais por ele”. Fil. 1, 29

Diz ainda o Cântico
dos Cânticos:

 ”De ti procede
um paraíso de árvores frutíferas”.

 Os santos mártires
têm frutos no mundo e têm frutos no céu. No mundo têm os frutos da justiça, no
céu têm os frutos da glória. No mundo, os frutos do mérito; no céu, os frutos
do prêmio.

“Os cipres com
o nardo, o nardo com o
açafrão”.O cipre é uma erva
aromática do Egito, de semente branca e odorífera, que se cozinha no óleo para
depois espremer-se. Dele se prepara um ungüento chamado real. O cipre,
portanto, é o dom de reinar. Designa o discernimento, e pode-se entender com
certeza que ele significa convenientemente os reitores de almas. O nardo é uma erva
de pouca estatura; designa, por isso, os súditos humildes.

O açafrão, sendo de
cor dourada, designa corretamente aqueles que ensinam resplandecendo de
sabedoria celeste.

Pensamos que as
Escrituras nos apresentam aqui os cipres no plural, enquanto que todos as
demais coisas que se lhe seguem no-las são apresentadas no singular, para que
por isto possamos entender que qualquer prelado deve ser, entre todos, rico de
todas as virtudes e boas obras. Eis o motivo pelo qual o bem aventurado
Agostinho preceituava sobre o prelado, dizendo:

“Ofereça-se
para com todos como exemplo de boas obras. Corrija os inquietos, console os pusilânimes, socorra os enfermos, seja paciente para com todos. Siga a disciplina com alegria, mas saiba também impô-la com respeito. E, embora ambas estas coisas sejam
necessárias, todavia mais deseje ser amado do que ser
temido”.

 Ensinados por estas
palavras do bem aventurado Agostinho, os prelados devem dedicar-se a todos os
que lhe forem confiados com toda a bondade, e esforçar-se para que, pela
plenitude de suas virtudes, feitos tudo para todos, aproveitem a todos. Os
cipres com o nardo são, portanto, os prelados quando se submetem humildemente
aos preceitos divinos juntamente com os seus súditos. Por isso é que está
escrito:

 “Se te
constituírem para governar, não te ensoberbeças por isso; permanece entre eles como um deles
mesmos”. Ecles. 32, 1

Quando, de fato, os
santos reitores, conforme o devem, dizem o que é reto e juntamente com os seus
súditos fazem humildemente o que dizem, verdadeiramente então serão cipres com
nardo.

O nardo está com o
açafrão quando as multidões dos humildes súditos, aproximando-se dos santos
doutores resplandecentes de sabedoria celeste, ouvem de boa vontade sua
doutrina salutar e, crendo e operando com fidelidade, assentem às suas
palavras, cumprindo o preceito do Apóstolo Tiago, quando diz:

 “Seja todo
homem pronto para ouvir, tardo porém para falar e tardo para se
irar”. Tg. 1, 19

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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