Os mais belos sermões de Hugo de São Vítor – Parte 2

Seguem-se os remos,
que saem do navio e mergulham nas águas, os quais significam as boas obras, que
procedem da fé e se estendem às águas, isto é, aos próximos. As águas são os
povos, que tem suas origens pelo nascimento, fluem pela mortalidade, e refluem
pela morte. Devemos, porém, ter estes remos não apenas à direita, para que não
façamos o bem apenas àqueles que nos fazem o bem, mas também à esquerda, para
que façamos o bem àqueles que nos fazem o mal, conforme está escrito:

“Fazei bem aos
que vos odeiam” Mt. 5, 44

 E também:

“Se o teu
inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber”.

 Rom. 12, 20

O leme, pelo qual se
dirige o navio, significa o discernimento pelo qual somos conduzidos em frente,
de modo que não nos dissipemos à direita pela prosperidade, nem sucumbamos à
esquerda pela adversidade. A nossa âncora é a humildade, que é lançada para
baixo e pela qual nosso navio se estabiliza, para que não ocorra que, soprando
o vento das sugestões diabólicas e agitando-se o mar de nossos pensamentos
nosso navio se rompa e afunde nas profundezas. O navio de nossa fé deve,
portanto, tornar-se firme e estável pela humildade, para que no tempo da
tentação embora não possa se entregar a um livre curso, possa permanecer firme
em seu lugar.

Devemos ter nosso
alimento pelo estudo das Escrituras. Os maus não apetecem este manjar, conforme
está escrito:

“Sua alma
aborrecia todo alimento, e chegaram às portas da morte” Salmo 106, 18

Ele é dado aos bons,
conforme está escrito:

“Enviou a sua
palavra para curá-los, para livrá-los da ruína”. Salmo 106, 20

 A rede significa a
pregação. Devemos utilizá-la sem cessar, para poder com ela pescar os homens
submersos nas ondas do mundo presente e, retirando-lhes as escamas dos pecados,
prepará-los para Nosso Senhor Jesus Cristo. Devemos também, conforme o costume
dos marinheiros, cantar as canções do mar pela modulação do louvor divino,
conforme nos diz o Salmista:

“Bendirei o
Senhor em todo o tempo, o seu louvor estará sempre na minha
boca”.

Salmo 33, 1

Depois de tudo isto,
porém, ainda será necessário para nós a ação do vento, que significa a
inspiração do Espírito Santo, para que por ela nos dirijamos ao porto da
tranqüilidade, ao médico da salvação, à terra prometida, à casa da eternidade.
O Senhor nos dará o vento pela inspiração de seu Espírito, conforme está
escrito:

“Toda dádiva
excelente e todo dom perfeito vem do alto e desce do Pai das luzes”. Tiago 1, 17

 As luzes são os
dons; o Pai das luzes é o autor, o doador e o distribuidor destes dons. O dom
perfeito significa os dons da graça. Ele, que nos deu os demais bens, seja os
que nos vem pela natureza, seja os que nos são dados pela graça, nos dará
também o vento favorável, isto é, o Espírito Santo.

Para que, porém,
irmãos caríssimos, possamos atravessar este mar com proveito, saudemos
freqüentissimamente a Estrela do Mar, isto é, a bem aventurada Maria, e
invoquemo-la saudando-a dizendo:

“Ave, Estrela
do Mar”.

Segundo o costume
dos marinheiros, ergamos sempre nossas preces à bem aventurada Maria, assim
como ao seu Filho. Seja ela para nós uma mãe espiritual, por meio de Jesus,
fruto de seu ventre, o qual, nascido dela e por nós entregue, é Deus, e reina
feliz, pela vastidão dos séculos que hão de vir. Amén.

 
SERMO XXIII

Aos Sacerdotes
reunidos em Sínodo.

“Ide, anjos
velozes, a uma gente desolada e dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há outro, uma gente que espera
e é pisada, cujos rios destroçaram sua terra”. Is. 18, 2

 Eis, irmãos
caríssimos, o divino ofício que nos foi confiado. Eis o cuidado, a solicitude e
o trabalho dos sacerdotes. Eis a piedosa, mas perigosa responsabilidade que lhes
foi imposta:

“Ide, anjos
velozes”.

A palavra profética,
ou melhor, a palavra divina, nos admoesta nesta passagem que não desprezemos o
ministério que nos foi divinamente confiado, nem que abandonemos esta santa
responsabilidade, para que não ocorra que os homens, formados à imagem e
semelhança de Deus, redimidos pelo precioso sangue de Cristo, por nossa
negligência deslizem para a condenação eterna por suas culpas temporais. E que
não venha a ocorrer que não somente neles se encontre o pecado por causa de
seus próprios delitos, mas que também em nós, além dos nossos próprios, se
acrescentem os pecados alheios. Haveremos, efetivamente, de dar conta não
somente de nós, mas também das almas que nos tiverem sido confiadas, a não ser
que lhes tivermos anunciado insistentemente a palavra da salvação.

Ouçamos, pois, mais
atentamente o que nos é divinamente ensinado:

“Ide, anjos
velozes, a uma gente desolada”.

 Os sacerdotes são
anjos, como se depreende de uma passagem da Escritura em que se afirma que

“Os lábios do
sacerdote são os guardas da sabedoria, e pela sua boca se há de buscar a lei, porque ele é o anjo do Senhor dos
exércitos”. Mal. 2, 7

Se somos, portanto,
sacerdotes do Senhor, também somos, pelo mesmo ofício, seus anjos, isto é, seus
mensageiros, e devemos anunciar ao povo as coisas que são de Deus.

 “Ide, anjos
velozes, a uma gente desolada”.

 Demonstra-se de dois
modos que a natureza humana provém de Deus e que nEle possui suas raízes,
conforme já o dissemos em outro lugar. Primeiramente, por ter sido criada à
imagem de Deus, na medida em que pode conhecer a verdade; depois, por ter sido
criada à Sua semelhança, na medida em que pode amar o bem. Segundo estes dois
modos pode ser reconhecida como unida a Deus não apenas a criatura humana, como
também a angélica, na medida em que pelo conhecimento contempla a Sua sabedoria
e pelo amor frui de Sua felicidade. Por estes dois modos evita o mal, pois pelo
conhecimento da verdade que possui desde a origem na divina imagem que lhe foi
enxertada repele o erro e pelo amor da virtude que possui na semelhança divina
odeia a iniquidade. Pela sugestão diabólica, porém, entrando a ignorância na
natureza humana, e desarraigou-se no homem a raiz do conhecimento divino;
sobrevindo também a concupiscência, arrancou-se a planta do amor.Qualquer gente
ímpia, portanto, afastada pela culpa dos bens divinos e celestes, plantada
primeiramente no bem pelos dois bens precedentes, sobrevindo-lhe os dois males
seguintes é corretamente apresentada e chamada de desolada do bem:

 “Ide, anjos
velozes, a uma gente desolada”.

E, deve-se notar, a
palavra divina não diz apenas desolada, como também acrescenta
“dilacerada”, desolada por ter sido afastada do bem, dilacerada por
ter mergulhado no mal. A natureza humana, efetivamente, depois que é afastada
do bem, é imediatamente e de múltiplas maneiras dilacerada pelo mal, conduzida
por diversos vícios e pecados à condenação. Alguns pelo orgulho, outros pela
inveja, outros pela ira, outros pela acédia, outros pela avareza, outros pela
gula, outros pela luxúria, outros pela usura, outros pela rapina, outros pelo
furto, outros pelo falso testemunho, outros pelo perjúrio, outros pelo
homicídio, outros contemplando a mulher para desejá-la, outros chamando `louco’
a seu irmão, e por tantos outros vícios ou pecados, interiores e exteriores, os
quais pela brevidade do presente não queremos nem podemos enumerar.

 “Ide”,
portanto, “anjos velozes, a uma gente desolada
e dilacerada”, para que, pelo vosso
ensino, torneis a unir o que foi dilacerado pelo mal, e replanteis o que foi
desenraizado do bem. “Ide, anjos”, ide “velozes”, ide “a uma gente
desolada e dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há outro”.

 Todas as vezes,
irmãos caríssimos, que o homem  pela
justiça conserva a nobreza, a elegância e a beleza de sua condição,
verificamo-lo possuir uma aparência formosa. Quando, porém, pela culpa mancha
em si mesmo o decoro da beleza, encontramo-lo imediatamente deforme e horrível,
dessemelhante de Deus, tornado semelhante ao demônio.

E então? Nos dias de
domingo e nas solenidades festivas o povo confiado aos vossos cuidados aflui à
igreja, ajusta sua forma corporal, reveste-se com roupas mais ornamentadas e
tingidas de diversas cores. Vós, talvez, contemplando homens e mulheres
trajados de modo tão fulgurante, vos gloriareis de terdes tais súditos e de
serdes seus prelados. Não é boa, porém, esta vossa glória se é nisto que vos
gloriais e se o povo a vós confiado for encontrado desolado e afastado do bem,
dilacerado pelo mal e terrível pelos diversos vícios e pecados. Prestai
diligentemente atenção em suas vidas, considerai seus costumes, julgai a sua
beleza segundo as coisas que pertencem ao homem interior e não segundo as que
pertencem ao exterior, enrubescei e compadecei-vos deste povo que é vosso
súdito, se tal o virdes como aqui ouvis, isto é,

 “uma gente
desolada e dilacerada, um povo terrível, após o qual não há outro”,

 porque talvez vossa
seja a culpa, vossa a negligência, vossa a preguiça, por ele ser tal porque não
lhe anunciastes os seus pecados e as suas impiedades.

 “Ide”,
portanto, “anjos velozes, a uma gente desolada
e dilacerada,

 a um povo terrível, após o qual não há outro”.

 “Ide,
anjos”, porque é o vosso ofício. “Ide, velozes”, para que a vossa
demora não cause perigo.

 “Ide a uma
gente desolada e dilacerada  a um povo terrível, após o qual não há outro”, para que pelo vosso
ensino se alcance o remédio:

 “Não queirais
sentar-vos no conselho da vaidade, nem associar-vos com os que planejam
a iniquidade.

 Odiai a sociedade dos malfeitores, e não queirais sentar-vos com os ímpios”. Salmo 25, 4-5

 Alguém de vós poderá
pensar silenciosa ou mesmo responder abertamente, dizendo:

 “Tu nos
proíbes, pelo exemplo que nos colocas do Salmista de nos dirigirmos a
estes, mas é a estes que o Senhor nos encaminha quando nos diz:

 `Ide, anjos velozes, a uma gente desolada e dilacerada, a um povo terrível, após o qual não há
outro'”.

 Entendei, porém, que
onde o Senhor diz: “Ide, anjos velozes, a uma gente desolada e dilacerada,
a um povo terrível, após o qual não há outro”, Ele vos impõe aqui um
ofício, e vos dá o preceito de ensinar aos ímpios; ali, porém, onde dissemos:
“Não queirais sentar-vos no conselho da vaidade, nem associar-vos com os
que planejam a iniquidade; odiai a sociedade dos malfeitores, e não queirais
sentar-vos com os ímpios”, aqui, digo, vos é continuamente negada a
permissão para pecar com os ímpios.

“Ide”,
portanto, “anjos”, para ensinar; não queirais ir para pecar.
“Ide a um povo terrível”, para que pela palavra da salvação o torneis
de formosa aparência; não queirais ir, para que pela deformidade de seu pecado
vos torneis a vós mesmos semelhantes a eles. Cristo comeu com os pecadores para
associá-los consigo mesmo no bem, mas não comeu com eles para que se associasse
com eles no mal. “Assim como Cristo o fêz, assim fazei-o vós também; assim
como Ele não fêz, assim não o queirais vós fazer”.

“Ide, anjos
velozes”.

Quão velozes? Tão
velozes que “pelo caminho não saudeis a ninguém” (Luc. 10, 4), e,
“se alguém vos saudar”, “não lhe
respondais”. 2 Reis 4, 29

Não que a salvação
não deva ser anunciada a todos; por estas palavras o Espírito Santo quer dar a
entender quão velozes e pressurosos importa que sejam os sacerdotes no anúncio
da salvação, como se dissesse:

“Prega a
palavra, insiste a tempo e fora de tempo, repreende, suplica, admoesta com toda a paciência e
doutrina”, 2 Tim. 4, 2 e

“não queirais
adiar a palavra dia após dia, de domingo a domingo, de solenidade a
solenidade, mas que, ao menos nos domingos e nas solenidades festivas não vos seja suficiente celebrar somente as
missas para o povo reunido na igreja segundo o
costume.

 Não seja suficiente para o homem apostólico e para cada uma das
ordens fazer um discurso genérico ou anunciar a festa da semana seguinte.

Antes, castigai o
povo sobre o mal, ensinai-o e formai-o
no bem, declarai-lhes a pena
que há de vir sobre os pecadores e a glória reservada aos justos”.

“Ide, anjos;
ide velozes”. Se adiais de domingo a domingo pregar ao povo a palavra da
salvação, quem saberá dizer se então estareis vivos, sãos ou presentes? E ainda
que ocorra que estejais vivos, sãos ou presentes, quem saberá se alguém que
antes estava presente estará então ausente e não mais ouvindo o bom conselho
para a sua alma, surpreendido por uma morte inesperada e súbita, seja
arrebatado para a pena eterna sem se ter lavado da sua culpa? Porventura de
vossas mãos Deus não pedirá com justiça contas do sangue deste homem?

 “Ide”,
pois, “anjos velozes, a uma gente desolada e dilacerada,

a um povo terrível, após o qual não há
outro”,

 O que significa:
`Depois do qual não há outro’? Porventura depois deste povo não haverá mais de
nascer ou de viver quem faça o bem ou quem faça o mal? Certamente que não. O
que significa, então, o `após o qual não haverá outro’? Significa que não
haverá, diante do supremo juiz, ninguém pior, mais torpe pela culpa, mais
terrível do que este. Três são os povos: o cristão, o judeu, e o pagão. Aqueles
que no povo cristão são cristãos segundo o nome, mas que pela injustiça servem
ao demônio, são mais terríveis que os judeus ou os pagãos, já que são piores
pela iniquidade. De fato, quanto mais facilmente, ajudados pela graça, se
quiserem, podem permanecer na justiça, tanto mais gravemente ofendem não
querendo abster-se da culpa. Aquele a quem mais foi confiado, mais lhe será
exigido. Quanto mais alto for o degrau, tanto maior será a queda, e mais pecou
o demônio no céu, do que o homem no paraíso. Conforme no-lo ensina a Escritura,

 “Aquele servo, que conheceu a vontade de seu Senhor, e não se preparou, e não precedeu conforme a sua vontade, levará muitos açoites. O servo, porém, que
não a conheceu, e fêz coisas dignas de castigo, levará poucos açoites”. Lc. 12, 47-8

 Assim como no-lo é
manifestado por esta sentença, assim também o Senhor repreendeu as cidades em
que havia feito vários prodígios, pelo fato de não haverem feito penitência,
dizendo:

 “Ai de ti,
Corozaim!

 Ai de ti, Betsaida!

Porque, se em Tiro e
em Sidônia tivessem sido feitos os milagres que se realizaram em vós, há muito tempo eles
teriam feito penitência em cilício e em cinza.

 Por isso eu vos digo que haverá menor rigor para Tiro e Sidônia
no dia do Juízo

 do que para vós. E tu, Cafarnaum, elevar-te-ás porventura até o céu? Não, hás de ser abatida até o inferno. Se em Sodoma tivessem sido feitos os milagres que se fizeram em ti, ainda hoje existiria. Por isso vos digo que no dia do Juízo haverá menos rigor para a terra de Sodoma que
para ti”. Mt. 11, 21-24

Deste mesmo modo
pode-se repreender também este povo de falsos cristãos, depravado por diversas
impiedades, feito terrível, distante da divina semelhança da qual se afastou
segundo a sua iniquidade:

 “Ai de ti, povo
iníquo, povo mentiroso, povo apóstata, que pela tua má vida
conculcas o Filho de Deus, que manchaste o sangue do Testamento em que foste santificado e fazes injúria ao Espírito da graça! Melhor seria para estes não conhecer o caminho da justiça do que depois de o terem
conhecido, tornarem para trás daquele mandamento que lhes foi dado.

De fato realizou-se
neles aquele provérbio verdadeiro:

 `Voltou o cão para o seu vômito e a porca lavada tornou a revolver-se no
lamaçal”(2 Pd. 2, 21-22)”.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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