Os Bispos da França e a AIDS – EB (Parte 1)

D. Estêvão Bettencourt – osb
Em síntese:
Um livro publicado pela Comissão Social da Conferência dos Bispos da França
causou estranheza, pois parece abonar o uso dos preservativos, ao menos no caso
de casais estáveis que corram o risco de contágio de um dos cônjuges por parte
do outro.

O artigo
abaixo analisa as linhas principais do livro. O escrito frisa bem que o
preservativo não é solução para o problema da AIDS, pois não toca na causa mais
profunda do flagelo, que é a libertinagem sexual. Assim como não se combate o
desemprego mantendo os mecanismos que o geram, assim também não  se combate a Aids mantendo o fato básico que
lhe dá origem na maioria dos casos. Em quatro apenas das suas 235 páginas, o
livro toca no uso do preservativo como solução necessária e recomendada por
alguns médicos no caso de casais estáveis, dos quais uns dos cônjuges está
contaminado. Ao referir esta posição, Monsenhor Albert Rouet, Presidente da
Comissão Social do Episcopado Francês, logo acrescenta que o preservativo vem a
ser “uma resposta insuficiente e perversa”, caso o queiram aplicar a
todos os tipos de união sexual.

O
pronunciamento de tais Bispos franceses provocou aplausos e réplicas,
consignados nas páginas subseqüentes. Quem replica, faz eco fiel ao magistério
da Igreja, Mãe e Mestra, (que lembra aos seus filhos 1) a necessidade do
autocontrole, sem o qual nada de grande se consegue; 2) a precariedade ou
insuficiência do preservativo em grande número de casos, conforme estatísticas
fidedignas. Ademais o argumento do “mal menor” não se aplica ao caso do
preservativo, (pois 1) ninguém é obrigado a ter relações sexuais contagiantes
ou de risco, (e 2) entre o uso do preservativo (mal menor) e a contaminação do
parceiro (mal maior) existe uma terceira opção, que é a abstinência sexual
(abstinência que a muitos parece defasada ou utópica; donde o impasse da AIDS).

A imprensa
deu notícia de uma decisão de Bispos da França 
datada de 12/02/1996 relativa ao uso de preservativos, “decisão
inédita que contraria a doutrina do Vaticano”, conforme noticiou a
imprensa leiga. A mais questionada frase do documento em foco é a seguinte:

“Muitos
médicos dizem que o preservativo é hoje o único meio de prevenção. A este
título é necessário e admissível para os casais estáveis que correm grave risco
de contágio. Mas esta é uma resposta insuficiente e perversa, pois enfrenta a
questão no plano individual. A solução que na verdade servirá, é a mudança de
estilo de vida e da visão da sexualidade”.

Este texto
suscitou calorosa celeuma, que passamos a esclarecer nas páginas seguintes.

1. O TEOR
DO DOCUMENTO

Antes do
mais, convém observar que não se trata de um pronunciamento do Episcopado
francês como tal, mas, sim, de uma Comissão dita “Comissão Social”,
presidida por Mons. Albert Rouet, Bispo de Poitiers. Por conseguinte, não se
pode dizer que os Bispos da França como tais se manifestaram sobre o
preservativo. A mencionada Comissão publicou uma coletânea de artigos num total
de 235 páginas intitulada “AIDS: a Sociedade em Questão”; o objetivo
da obra é considerar as reações da sociedade contemporânea perante o flagelo da
Aids ou averiguar que relações existem entre os enfermos, os familiares e a
própria Igreja.

A obra,
devida a vários autores, consta de uma Introdução e sete capítulos, que abordam
os principais aspectos da liberdade sexual e da Aids assim como as respostas da
sociedade contemporânea; cada artigo é da responsabilidade exclusiva do
respectivo autor. O volume se abre precisamente com a seguinte observação: .

“A
Aids flagela hoje mais de vinte milhões de pessoas no mundo inteiro; as
previsões estimam para o ano 2000 um total três ou quatro vezes superior. Como
reagirá a sociedade a esse flagelo?”.

Os autores
verificam que a primeira reação é a do medo,… medo que desencadeia
“fenômenos de exclusão aos toxicômanos, homossexuais, migrantes,
marginalizados… Os doentes são, muitas vezes, mortos psicologicamente antes
de morrerem fisicamente”.

O  livro se refere a atitudes drásticas da
sociedade frente aos aidéticos:

“O
fato de que a Aids se transmite pelo esperma e pelo sangue provocou reações de
rejeição bastante duras ou mesmo de condenação. Alguns viram nisso um juízo de
Deus, como se a Aids fosse uma sanção pior do que outras doenças”.

A medicina
se revela até hoje incapaz de curar a Aids. Para evitar a transmissão do vírus
de uma pessoa atingida a uma pessoa sadia, a Organização Mundial da Saúde
recomenda três vias: a continência, a limitação do número de parceiros e o
preservativo.

É neste
ponto que Mons. Albert Rouet começa a comentar o uso de preservativos, dizendo
o seguinte:

“O
preservativo, pretendendo resolver o problema da imunização no plano meramente
individual, não pode responder ao fenômeno em sua amplidão. Como poderia a
nossa sociedade eliminar o problema do desemprego conservando os mecanismos que
provocam o desemprego? Assim também como pensar em superar a Aids com medidas
dependentes das pessoas, sem trocar as maneiras de encarar a vida que favorecem
a transmissão da Aids?”.

A seguir,
Mons. Rouet verifica que “muitos médicos competentes afirmam que o preservativo
de qualidade confiável é atualmente o único meio de imunização. A este título,
ele é necessário. Diversas campanhas publicitárias informaram a população a
respeito. Após um período de reação muito lenta, parece que os jovens o vão
mais e mais utilizando. Os responsáveis pela saúde pública sustentam a validade
do uso de preservativos. A Igreja, por causa da suspeita de lhe ser totalmente
contrária, se vê acusada de trabalhar em favor da morte. O problema está mal
colocado, pois confunde diversos setores que não têm a mesma qualificação
moral. A título de evitar a infecção, entram sorrateiramente reivindicações ou
requisitos que ultrapassam amplamente a questão da Aids. É normal que a Igreja
– a qual distingue mais matizes do que geralmente se diz – esteja atenta a
estas extrapolações. Pensar, como já dissemos, numa imunização meramente
individual não responde às dificuldades sociais. Imaginar que o uso
generalizado do preservativo eliminará todos os riscos significa limitar-se às
conseqüências sem examinar as causas e as condições da expansão da Aids. É uma
resposta insuficiente”.

Não só
insuficiente…, mas também perversa, diz o autor, pois promete “amor sem
risco”, banaliza o ato sexual, dando a crer que é normal procurar o amor
multiplicando as relações.

“É
preciso reconhecê-lo, mesmo que isto desagrade, que se espalha a idéia de uma
banalização do ato sexual, como se a multiplicação e a diversidade das relações
sexuais fossem indispensáveis e, por conseguinte, normais para descobrir o
amor.

Insensivelmente
as pessoas passam da tentativa de imunizar à indução de um comportamento de
iniciação sexual tido como habitual e mesmo como normativo. A resposta aqui é
perversa… Ela alimenta a confusão entre um meio preventivo, o único
conhecido, e um projeto educativo. Dá a crer que a proteção material do ato
sexual basta para se descobrir a qualidade do amor: Aconselhando o preservativo
a adolescentes e jovens, a sociedade os encarcera sob a autoridade dos seus
impulsos, em vez de os ajudar a compreender a sua identidade sexual.

Por
conseguinte se, de um lado, se pode compreender o uso do preservativo nos casos
em que uma atividade sexual já integrada na personalidade precisa de tentar
evitar um risco grave, de outro lado é necessário sustentar que esse meio não
constitui uma educação para a sexualidade adulta”.

O último
capítulo do livro se intitula: “Diante da Aids, lançar de novo a
esperança”. Em dez páginas, manifesta grande sensibilidade humana e pastoral.
Recordando que a Igreja foi enviada a anunciar o Evangelho partindo dos mais
pobres, os Bispos da Comissão escrevem:

“Pobre
é aquele que a Aids fere. Pobre é a geração que considera o amor ameaçado pelos
gestos mesmos que o devem exprimir. Pobre é a sociedade que nada mais tem a
propor senão precaver-se contra os riscos. Pobreza de saúde, de esperança e de
sentido de vida “.

Após esta
verificação, os Bispos recomendam aos leitores que “reflitam sobre a
orientação da sua própria vida para não sucumbir ao predomínio de modas e de
comportamentos que prendem a liberdade com seduções imediatistas. A liberdade
implica libertação interior”. Além disto, o documento pede aos fiéis que
afastem o medo, o sentimento difuso de punição para ficarem firmemente conscientes
de que, mesmo na doença, a vida humana conserva a sua dignidade e a capacidade
de responder à sua vocação. Ao dissertarem sobre as condições que assegurem a
contenção da propagação da Aids, os Bispos recomendam que “os fiéis
reflitam sobre o caráter singular da sexualidade humana e continuem os esforços
para promover uma educação afetiva e sexual que leve a descobrir a beleza e a
dignidade de todo relacionamento humano”.

Os Bispos
concluem recordando que Cristo, ao dar a vida pelos homens, nos ensinou a amar:
“Ou o amor se detém em nossa medida de pequenos proprietários do nosso
coração, de parasitas dos nossos afetos e assim declina lentamente para
recordações malsãs, ou o amor transporta o homem para além de si mesmo,
impelido pelo desejo de que Deus irá ao seu encontro”. Por isto não se
pode responder ao desafio da Aids permanecendo apenas no plano da Aids.
“Esta epidemia obriga a ultrapassar as causas biológicas até descobrir o
sentido mesmo da vida humana”.

2.
REFLETINDO…

Como se vê,
o documento em pauta é um grosso livro que trata da Aids e das reações da
sociedade perante a moléstia; pretende despertar o interesse dos leitores pela
ajuda aos irmãos flagelados, em lugar de os marginalizar e desprezar. Nesse
contexto trata dos meios que possam deter a expansão da moléstia; o
preservativo é recomendado por muitos médicos em casos especiais ao menos, ou
seja, entre cônjuges estáveis, dos quais um é capaz de transmitir o vírus ao
consorte respectivo. O Presidente da Comissão que responde pelo livro, Mons.
Albert Rouet, parece fazer eco favorável a esse parecer, mas logo acrescenta
que o uso generalizado do preservativo é insuficiente e perverso: insuficiente,
porque não vai ao âmago do problema; se a Aids se deve à libertinagem sexual,
qualquer pretensa solução que não encare a libertinagem é falsa; como combater
o desemprego mantendo os mecanismos que geram o desemprego? Paralelamente, como
combater a Aids mantendo o fato que mais a causa, a saber: a libertinagem
sexual? Poder-se-ia ainda acrescentar: a recomendação do uso do preservativo é
perversa, porque o preservativo não preserva ou não impede por completo a
passagem do vírus H IV, como comprova a própria medicina (ver artigo
subsequente deste fascículo).

Que dizer
então da posição de Mons. Albert Rouet? – Pretende realmente reconhecer como
válido o uso do preservativo em casos especiais ou apenas refere a sentença dos
médicos, que propõem o preservativo como necessário nos referidos casos? O
texto de Mons. Rouet parece aceitar a recomendação dos mencionados médicos, mas
logo observa que não se deve generalizar a pretensa solução. O problema da Aids
só poderá ser eficazmente debelado se houver, por parte da sociedade, uma
revisão da escala de valores ou a tomada de consciência de que libertinagem
sexual não traz a felicidade almejada. É preciso, pois, atacar a raiz do
problema corajosamente, tocando no ponto fundamental, sem o qual só se
apresentam falsos paliativos, aptos a iludir a juventude. É para esta tese que
o livro da Comissão Social do Episcopado Francês quer chamar a atenção, tese
muito válida e premente; no contexto de 235 páginas, quatro delas, atinentes ao
uso do preservativo, se tornou o ponto mais comentado pela imprensa.

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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