Revista “PERGUNTE E
RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 398 – Ano : 1995 – p. 298
Em síntese: Burton L. Mack
procura reconstituir uma hipotética fonte dos Evangelhos Sinóticos, que
constaria apenas de sentenças de Jesus (sem referência a feitos e ao fim de
vida de Cristo); é dita “fonte Q” (de Quelle, fonte, em alemão). Segundo essa fonte, recomposta a partir dos
discursos de Jesus em Mt, Mc e Lc. Jesus terá sido um Sócrates judeu ou um mestre
de bons costumes, sem querer romper com o povo judeu. Os seus discípulos nem eram cristãos, diz
Mack.
Os seguidores desse Jesus
terão construído a imagem do Senhor Jesus Cristo como se acha em Mt, Mc e Lc.
Assumindo mitos do paganismo. Assim teve
origem o Cristianismo, dizem os críticos que seguem Burton L. Mack.
A tese do livro em foco é
extremamente frágil e hipotética, sem fundamento sólido no texto bíblico e em
textos extra-bíblicos, pois se baseia em preconceitos não provados. A leitura dos livros mesmos do Novo
Testamento permite evidenciar a inconsistência das hipóteses, como se depreende
da leitura do artigo que se segue.
Burton L. Mack é professor
de S. Escritura do Novo Testamento, da Faculdade de Teologia de Claremont
(U.S.A.) e autor do livro A Myth of Innocence (Um Mito de Inocência). Publicou a obra The Lost Gospel em 1993, obra
traduzida para o português por Sérgio Alcides e publicada na coleção Bereshit
da Editora Imago (Rio de Janeiro). É
obra extremamente revolucionária, construída, porém, sobre hipóteses e
preconceitos que lhe tiram a seriedade científica, como se poderá averiguar
após atento estudo de seus dizeres.
O CONTEÚDO DO LIVRO
Vejamos, antes do mais,
A tese do autor
O autor julga poder
reconstituir uma hipotética fonte (Quelle, em alemão) dos relatos de Mateus,
Marcos e Lucas. Essa fonte ter-se-à
perdido, mas os críticos, entre os quais Burton L. Mack, afirmam ter restaurado
o seu conteúdo: conteria apenas sentenças de Jesus, e não dados
biográficos. As conclusões de Burton L.
Mack são assim expressas na quarta capa do livro :
“O estudo de Q (= Quelle)
revela que Jesus foi mitificado como o Salvador dos evangelhos do Novo
Testamento com fins religiosos e até políticos.
O Livro de Q nos conta enfaticamente que os primeiros seguidores de
Jesus não o consideravam filho de Deus nem acreditavam que ele tivesse
ressuscitado depois de morto. Em vez
disso, eles o viam como um Sócrates judeu – mestre e líder contracultural.
As implicações do Livro de
Q são
sensacionais e controversas:
Os seguidores de Q não
entendiam os ensinamentos de Jesus como uma acusação ao judaísmo. Eles não achavam que Jesus fosse o Messias ou
Cristo, e muito menos um deus. Eles não
criaram um culto a Cristo. Na verdade,
eles nem eram cristãos”.
Segundo B. L. Mack, o
Cristianismo se originou porque às idéias do Sócrates judeu chamado Jesus foram
associadas concepções pagãs mitológicas, de modo que o Cristianismo é mitologia
sob a capa de história. Entre outras
passagens, eis uma das mais significativas :
“Explosão de imaginação
coletiva é sinal de mudança, e foi justamente isso que o primeiro século
cristão vivenciou. Essa explosão
manifesta o clima de incerteza da época e registra a grande concentração de
energia humana e atividade intelectual
na produção de mitos. Os cristãos não
eram o único grupo que estava criando novos mitos. A literatura da época é famosa por seus
mundos fantásticos e pela exploração de figuras lendárias. Foram os cristãos, contudo, que elaboraram a
mitologia que a cultura ocidental acabou aceitando para si própria (…).
O mito concentrava-se na
importância de Jesus como o fundador dos movimentos, congregações e
instituições que os cristãos estavam formando.
Assim a história e o mito fundiam-se numa caracterização única, e os
mitos de origem eram escritos e imaginados como se de fato tivessem acontecido
num passado recente, num lugar específico.
Os cristãos dos séculos II, III e IV notaram com inquietação a
semelhança entre seus mitos e as mitologias grega e judaica. Eles só conseguiram se afastar dessas outras
culturas e distinguir sua própria mitologia enfatizando a recente conformação
histórica de seus mitos e a impressão deixada pelos evangelhos narrativos de
que esses mitos realmente aconteceram”. (p. 199).
Examinaremos agora alguns
pormenores da tese:
Considerando mais
atentamente…
A hipótese de que existiu
uma fonte (Quelle) donde Mateus, Marcos e Lucas tiraram os dizeres de Jesus, se
deve ao fato de que os três evangelistas têm em comum muitos sermões de Jesus:
o das bem-aventuranças, o da confiança em Deus, o do desapego dos bens
materiais, parábolas … Ora afirmam os críticos que esses dizeres de Jesus
foram colhidos por Mateus, Marcos e Lucas numa coletânea comum de sentenças do
Mestre. Essa coletânea, também chamada
Quelle, ter-se-á perdido (daí “o Evangelho perdido”), mas as suas sentenças
foram transcritas por Mateus, Marcos e Lucas de modo que pode ser reconstituído
o “Evangelho perdido”. Em conseqüência Burton L.
Mack, na Parte II do seu livro, julga poder apresentar o texto do “Evangelho
Perdido”, terá passado por duas redações: o Livro de Q original e o Livro de Q
completo, redações que B. L. Mack distingue usando composição tipográfica
diferente. Eis um espécimen de original (grego traduzido para o português).
“Ele disse : “A colheita é
abundante, mas os trabalhadores são poucos; peçam então ao dono da colheita que
envie mais trabalhadores para a sua colheita.
Vão. Mas, olhem, estou enviando
vocês como cordeiros no meio de lobos.
Não levem dinheiro, nem
bolsa, nem sandálias. E não falem com
ninguém pelo caminho” (p. 75).
“Em suas orações rezem:
Santificado seja seu nome, pai. Que se
cumpra o seu domínio. Dê-nos o pão de
cada dia. Perdoa nossas dívidas assim como perdoamos nossos devedores. E não
nos ponha à prova (= em situação difícil)”. (p. 76).
“Ele disse: Como é o reino
de Deus ? a que poderia compará-lo? Ele é como um grão de mostarda que um homem
pegou e plantou no quintal. Ele cresceu,
tornou-se uma árvore e as aves do céu fizeram ninhos em seus galhos”.
Ele disse ainda: “O reino de
Deus é como o fermento que uma mulher pegou e misturou a três medidas de
farinha de modo que toda a massa ficasse fermentada” (p. 78).
São Paulo terá sido um dos
grandes responsáveis pela introdução de mitos pagãos na mensagem de Jesus. Assim “os movimentos de Jesus (= Sócrates)
tornaram-se as congregações de Cristo”, a Igreja organizada, com toda a mística
que as epístolas paulinas sugerem; c.f p. 212.
O livro de Q terá
desaparecido, porque os Evangelhos de Mateus e Lucas passaram a contar uma
história mais interessante, colocando Jesus na crista dos acontecimentos; as
instruções contidas em Q já não bastavam para o tipo de pregação que os
cristãos exerciam. “Q foi relegado por
mitologias posteriores, que não tinham espaço para se enfoque particular sobre
a autoridade de Jesus” (p. 223).
Quanto ao Evangelho de João,
tem características gnósticas1, que o aproximam do apócrifo Evangelho de
Tomé. “João retratou Jesus como a
manifestação do filho de Deus vindo dos domínios da luz, a própria expressão de
Deus que criou o mundo, mas que repetidamente fracassou em obter reconhecimento
até o surgimento de Jesus” (p. 214).
Ditas estas coisas, o autor
divaga ainda longamente sobre as possíveis modalidades das sentenças
originárias de Jesus, sobre os fatores que terão provocado a adoção de concepções mitológicas entre os
discípulos do Mestre, sobre o papel dos bispos na formação do catálogo bíblico… jogando com hipóteses e hipóteses que Burton L. Mack apresenta como se
fossem proposições seguras.
A conclusão do livro soa do
seguinte modo:
“Se os cristãos reconhecerem
seu evangelho como mito, outros povos poderão achar possível conversar conosco
sobre isso. E nós, cristãos, poderemos
achar possível fazer alguma contribuição à urgente tarefa de crítica cultural
onde ela parece mais importante : a compreensão das conseqüências sociais da
mitologia cristã” (p. 246s).
Como se vê, o autor,
reduzindo o Evangelho a mitos, julga que assim o povo cristão se põe em
condições de dialogar com povos não cristãos, também criadores de mitos, o
diálogo que daí resultará, poderá redundar em benefício da sociedade.
A esta altura talvez alguém
diga: pobre e magra conclusão!
Pergunta-se agora:
QUE DIZER?
Quatro pontos nos parecem
merecer especial atenção.
A hipótese Q
A hipótese de que os
Evangelhos Sinóticos (Mt, Mc e Lc) dependem de duas fontes, já data do século
passado: uma dessas fontes seria uma coletânea de sentenças de Jesus, chamada
propriamente Quelle (= fonte, em alemão, donde Q); a outra seria um compêndio
de façanhas de Jesus, que alguns identificam com o núcleo inicial de S.
Marcos. Todavia os críticos mais antigos
não viam hiato entre a fonte Q e o texto canônico do Evangelho; não viam por
que admitir na fonte Q um Jesus-Sócrates diferente do Jesus-Messias e Salvador
encontrado nos Sinóticos. Ademais é de
notar que a existência mesma da fonte Q é hipotética; mais hipotético ainda é o
seu caráter não cristão apregoado por B. Mack.
Aliás, a hipótese de que a
coletânea Q só incluía sentenças de Jesus, sem mencionar os feitos, a Paixão e
a Ressurreição do Senhor, não quer dizer que os supostos autores da coleção não
conhecem o desfecho cruento da pregação de Jesus. O propósito desses compiladores terá sido
apenas o de oferecer aos primeiros cristãos, uma súmula de sentenças do Mestre,
sem pretender entrar em traços biográficos. – Existem obras semelhantes
referentes a autores modernos, entre as quais uma coletânea de dizeres de
Gandhi (ed. Cidade Nova, São Paulo), a qual não significa em absoluto que
Gandhi não tenha morrido assassinado.
Antologias de autores clássicos (Alexandre Herculano, Eça de Queiroz,
Machado de Assis, Gonçalves Dias…) são usuais em nossas escolas; contêm
apenas trechos seletos, sem pretender negar algo da biografia dos respectivos
autores.
O Progresso da Papirologia
A hipótese Q tem que ser
revista à luz das descobertas recentes de papiros, que mais e mais aproximam de
Jesus a redação dos Evangelhos. Como
observamos às pp. 290-294 deste fascículo, a identificação de papiros muito
antigos leva a crer que a redação dos Evangelhos, como hoje eles são, deve ter
começado quando ainda havia testemunhas oculares da vida e dos feitos de
Jesus. A p. 293, citam-se os papiros do
Magdalen College e os de Qumran como testemunhos de muito antiga redação dos
Evangelhos. Segundo Burton L. Mack, o
livro de Q terá tido vigência e exercido influência durante quarenta anos – o
que significa: (…) até o ano de 70 aproximadamente 1. Ora a papirologia vai levando os estudiosos a
recuar sempre para mais perto de Jesus a confecção dos Evangelhos (ou, ao
menos, de parte dos Evangelhos).
O testemunho de São Paulo
É de notar outrossim o
testemunho das epístolas de São Paulo. Embora à p. 220 Burton L. Mack só
reconheça (arbitrariamente) sete delas como genuínas, é notório que foram
escritas entre 50/51 e 67. Ora esses
documentos, evidenciam que, dois decênios após a Ascensão do Senhor, os
cristãos professavam elevadas concepções cristológicas, reconhecendo Jesus como
o Kyrios (Senhor) ressuscitado, Cabeça do Corpo Místico da Igreja, Redentor dos
homens por sua Paixão gloriosa … Essas idéias brotaram imediatamente da
consciência dos Apóstolos e discípulos que acompanharam Jesus antes e depois da
sua Páscoa final.
De modo particular, seja
citado o texto de 1Cor 15,3-8:
3 Transmiti-vos, antes de
tudo, aquilo que eu mesmo recebi, a saber, que Cristo morreu por nossos
pecados, conforme as Escrituras.
4 e que foi sepultado
e que ressuscitou ao terceiro dia conforme as
Escrituras
5 e que apareceu a Cefas,
depois aos doze.
6 Posteriormente apareceu de
uma vez a mais de quinhentos irmãos, dos quais a maior parte vive até hoje,
alguns porém, já morreram.
7 Depois apareceu a Tiago e,
em seguida, a todos os Apóstolos.
8 Por fim, depois de todos,
apareceu também a mim, como a um abortivo”.
Estes dizeres são de época
muito antiga ou do sexto decênio do século I (56/57); pouco mais de vinte anos
apenas os separam da Ascensão de Jesus.
Referem-se à pregação que São Paulo realizou em Corinto entre os anos de
50 e 52; nessa época, o Apóstolo entregou aos fiéis os ensinamentos que lhe
haviam sido anteriormente entregues.
Aliás, também em 1Cor 11,23
afirma o Apóstolo ter transmitido, a saber: a mensagem referente à Ceia do
Senhor.
E quando recebeu Paulo tais
ensinamentos?
Ou por ocasião da sua
conversão, que se deu aproximadamente no ano de 35, ou no ensejo de sua visita
a Jerusalém, que teve lugar em 38, ou, ao mais tardar, por volta do ano de 40.
Observe-se agora o estilo do
texto de 1Cor 15, 3-8: as frases são curtas, incisivas, dispostas segundo um
paralelismo que lhes comunica um ritmo notável.
Abstração feita dos vv. 6 e 8, dir-se-ia que se trata de fórmulas esterotípicas,
forjadas pelo ensinamento oral e destinadas a ser freqüentemente
repetidas. Nesses versículos
encontram-se várias expressões que não ocorrem em outras cartas de São
Paulo: assim “conforme as Escrituras”, “no
terceiro dia”, “aos doze”, “apareceu” (expressão que só ocorre sob a pena de
São Paulo num hino citado pelo Apóstolo em 1Tm 3,16).
Estas indicações dão a ver
que São Paulo em 1Cor 15, 3-8 reproduz uma fórmula de fé que ele mesmo recebeu
já definitivamente redigida poucos anos (dois, cinco, oito anos?) após a
Ascensão do Senhor Jesus. O v. 6,
quebrando o ritmo do conjunto, talvez tenha sido introduzido posteriormente,
quanto ao v. 8, é por certo uma notícia pessoal que São Paulo acrescenta ao
bloco.
Vê-se, pois, que desde os
primeiros anos da pregação do Evangelho já existia entre os fiéis uma profissão
de fé na ressurreição de Cristo formulada em frases breves e pregnantes: tais
frases eram transmitidas como expressões exatas da mensagem dos Apóstolos.
Ora essa fórmula de fé
antiquíssima professa a ressurreição corpórea de Cristo como realidade
histórica. Para a comprovar, havia
testemunhas oculares, das quais, diz São Paulo, muitas ainda viviam vinte e
poucos anos após a ressurreição do Senhor.
O testemunho de São Paulo
É de notar outrossim o testemunho das epístolas de São Paulo. Embora à p. 220 Burton L. Mack só reconheça (arbitrariamente) sete delas como genuínas, é notório que foram escritas entre 50/51 e 67. Ora esses documentos, evidenciam que, dois decênios após a Ascensão do Senhor, os cristãos professavam elevadas concepções cristológicas, reconhecendo Jesus como o Kyrios (Senhor) ressuscitado, Cabeça do Corpo Místico da Igreja, Redentor dos homens por sua Paixão gloriosa … Essas idéias brotaram imediatamente da consciência dos Apóstolos e discípulos que acompanharam Jesus antes e depois da sua Páscoa final.
De modo particular, seja citado o texto de 1Cor 15,3-8:
3 Transmiti-vos, antes de tudo, aquilo que eu mesmo recebi, a saber, que Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras.
4 e que foi sepultado e que ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras
5 e que apareceu a Cefas, depois aos doze.
6 Posteriormente apareceu de uma vez a mais de quinhentos irmãos, dos quais a maior parte vive até hoje, alguns porém, já morreram.
7 Depois apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os Apóstolos.
8 Por fim, depois de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo”.
Estes dizeres são de época muito antiga ou do sexto decênio do século I (56/57); pouco mais de vinte anos apenas os separam da Ascensão de Jesus. Referem-se à pregação que São Paulo realizou em Corinto entre os anos de 50 e 52; nessa época, o Apóstolo entregou aos fiéis os ensinamentos que lhe haviam sido anteriormente entregues.
Aliás, também em 1Cor 11,23 afirma o Apóstolo ter transmitido, a saber: a mensagem referente à Ceia do Senhor.
E quando recebeu Paulo tais ensinamentos?
Ou por ocasião da sua conversão, que se deu aproximadamente no ano de 35, ou no ensejo de sua visita a Jerusalém, que teve lugar em 38, ou, ao mais tardar, por volta do ano de 40.
Observe-se agora o estilo do texto de 1Cor 15, 3-8: as frases são curtas, incisivas, dispostas segundo um paralelismo que lhes comunica um ritmo notável. Abstração feita dos vv. 6 e 8, dir-se-ia que se trata de fórmulas esterotípicas, forjadas pelo ensinamento oral e destinadas a ser freqüentemente repetidas. Nesses versículos encontram-se várias expressões que não ocorrem em outras cartas de São Paulo: assim “conforme as Escrituras”, “no terceiro dia”, “aos doze”, “apareceu” (expressão que só ocorre sob a pena de São Paulo num hino citado pelo Apóstolo em 1Tm 3,16).
Estas indicações dão a ver que São Paulo em 1Cor 15, 3-8 reproduz uma fórmula de fé que ele mesmo recebeu já definitivamente redigida poucos anos (dois, cinco, oito anos ?) após a Ascensão do Senhor Jesus. O v. 6, quebrando o ritmo do conjunto, talvez tenha sido introduzido posteriormente, quanto ao v. 8, é por certo uma notícia pessoal que São Paulo acrescenta ao bloco.
Vê-se, pois, que desde os primeiros anos da pregação do Evangelho já existia entre os fiéis uma profissão de fé na ressurreição de Cristo formulada em frases breves e pregnantes: tais frases eram transmitidas como expressões exatas da mensagem dos Apóstolos.
Ora essa fórmula de fé antiquíssima professa a ressurreição corpórea de Cristo como realidade histórica. Para a comprovar, havia testemunhas oculares, das quais, diz São Paulo, muitas ainda viviam vinte e poucos anos após a ressurreição do Senhor.
Tal depoimento de primeira hora, concebido e transmitido pelos discípulos imediatos do Senhor, já seria argumento suficiente para remover qualquer teoria tendente a desvirtuar a fé na ressurreição corporal de Cristo. Esta fé não surgiu tardiamente na história das primeiras comunidades cristãs, mas é o eco direto da missão de Cristo acompanhada dia a dia pelos Apóstolos.
Assim vemos como é errôneo admitir um hiato entre Jesus (tido como mero “Sócrates judeu”) e o Cristianismo; este, com toda a riqueza de seu pensamento e sua Mística, já se acha contido no âmago da consciência dos primeiros discípulos, convictos da grandeza de Jesus após a ressurreição do Mestre e Pentecostes.
Mito e Logos
Ainda mais carece de fundamento a hipótese de que os discípulos de Jesus tenham assumido mitos do paganismo para ilustrar a figura e a obra de Jesus. Com efeito; sabemos que os judeus eram totalmente avessos aos pagãos, que eles consideravam imundos e que os oprimiam politicamente desde o século VI a.C., suscitando o ódio dos judeus; o monoteísmo de Israel caracterizava esse povo, tornando-o um quisto quando disperso entre pagãos, e o impermeabilizava à mitologia pagã. Quanto aos cristãos, sabe-se que morreram mártires até 313 para não trair sua fé em um só Deus e no Evangelho; foram boicotados e perseguidos, mas guardaram intacta a mensagem religiosa que professavam, avessa aos mitos. Em consequência, torna-se irreal a hipótese de adoção de crenças pagãs por parte dos discípulos de Jesus. São Paulo mesmo, em 1 Cor 1-2, faz a antítese entre a sabedoria deste mundo e a sabedoria do Evangelho, que é a da Cruz; em 2Cor 6,15s diz ainda o apóstolo: “Que acordo há entre Cristo e Beliar? Que relação entre o templo de Deus e os ídolos?” Isto bem mostra que o Apóstolo, escrevendo em 57, tinha nítida consciência de que o Cristianismo nada tem que ver com o paganismo.
Mais: os Apóstolos, em suas cartas, distinguem ciosamente entre mythoi (mitos) e lógos. Sabem que podia haver tentativas de introduzir mitos na pregação cristã, mas alertavam os fiéis contra os mesmos; não eram simplórios a ponto de equiparar a verdade e as “belas histórias” dos mitos. Eis os textos em que São Paulo acautela contra os mitos:
1Tm 1,3s: “(…) foi para admoestares alguns a não ensinarem outra doutrina, nem se ocuparem com fábulas (mythois) e genealogias sem fim”.
1Tm 4,7: “Rejeita as fábulas (mythous) ímpias, coisas de pessoas caducas”.
2Tm 4,4: “Desviarão seus ouvidos da verdade, orientando-os para as fábulas (mythous)”.
Tt 1,14: “Não dêem ouvidos a fábulas (mythois) judaicas.
Ver também 2Pd 1,16: “Não foi seguindo fábulas (mythous) sutis que vos demos a conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Em contraste, a palavra do Evangelho é dita logos …, como se depreende dos seguintes textos:
a Palavra (sem mais) em 1Ts 1,6; 1Pd 3,1; At 4,4; 11,19; Lc 1,2;
a Palavra de Deus: At 4,31;
a Palavra da sua graça : At 14,3;
a Palavra da salvação: At 13,26;
a Palavra … a Boa Nova da paz: At 10,36;
a Palavra da verdade, o Evangelho da vossa salvação: Ef 1,13;
a Palavra da verdade, o Evangelho : Cl 1,5.
Este textos evidenciam suficientemente a consciência, dos Apóstolos, de que verdade e mito não se identificam. Os pregadores do Evangelho faziam questão de dizer que partiam de fatos históricos realmente ocorridos e não de ficções. Sejam a propósito considerados os textos de
1 Cor 11,23: “Eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti na noite em que foi entregue (…)”.
1 Cor 15,3: “Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi. Cristo morreu por nossos pecados (…)”.
Cl 2, 6-8: “Assim como recebestes o Cristo Jesus, o Senhor, assim nele andai, arraigados nele, sobre ele edificados, e apoiados na fé, como aprendestes, e transbordando em ação de graças. Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas especulações da filosofia, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo”.
Ver ainda 1Cor 11,2; 2Ts 2,14s; Fl 4,9; Gl 1,8-12; 2,2s.
Passemos a breve conclusão:
Burton L. Mack é movido por preconceitos e apresenta hipóteses frágeis e artificiais para estabelecer um corte entre o Jesus real e o Jesus concebido pelos Evangelistas. É desmentido, porém, por uma leitura atenta dos próprios textos do Novo Testamento, que não somente não dão margem à sua hipótese, mas ainda lhe contradizem … desmentido também pela evidência da pesquisa empírica ou da papirologia.
O livro pode causar impressão, com suas 265 páginas e seu esforço de construir hipóteses, mas não merece o assentimento de quem estuda seriamente o Novo Testamento.
1 O gnosticismo é uma corrente de pensamento dualista, que opunha entre si matéria (má) e espírito (bom) e julgava haver doutrinas secretas reservadas aos iniciados.
1 Eis o que se lê p. 228 de Burton L. Mack.
“O livro de Q vai questionar a versão das origens cristãs oferecida pelo Novo Testamento, propondo outra, mais plausível, acerca dos primeiros quarenta anos. O movimento de Jesus é um grupo de pessoas mais verossímil do que os discípulos e os primeiros cristãos retratados pelos evangelhos narrativos. Q fornece uma documentação desse movimento que os evangelhos narrativos não podem fornecer para a ficção congregacional que propõem”.
***
por
Burton L. Mack