O Evangelho de Judas – EB

Revista:  PERGUNTE E RESPONDEREMOS

D. Estevão
Bettencourt, osb

Nº 528  – Ano: 2006 
– p. 282

 
Em síntese:
Foi recentemente publicada a tradução inglesa de um texto copta dito “Evangelho
de Judas”, que tenta reabilitar Judas: este não terá traído Jesus, mas terá
executado ordem divina, que lhe mandava entregar Jesus para a salvação do
mundo. – Esta tese é de origem gnóstica, não cristã. A tradição cristã, que
procede diretamente dos Apóstolos, vê em Judas um traidor, que se enforcou
arrependido (?) por volta de 30 e não pode ser o autor de um Evangelho escrito
por volta de 150.

Nas
imediações da Semana Santa de 2006 a imprensa noticiou um fato referente a
Judas Iscariotes, que agitou o público. Vai, a seguir, relatado e comentado.

O fato
sensacional

No dia
6/4/06 os meios de comunicação anunciaram a publicação da tradução inglesa de
um texto copta (língua dos antigos egípcios) dito “Evangelho de Judas”, que
inocenta Judas; este terá sido um dos discípulos mais chegados a Jesus, que
haverá cumprido ordem divina entregando Jesus para a salvação da humanidade.
Judas seria o único discípulo que conhecia a verdadeira identidade de Jesus; só
fez o que o Pai do céu e Jesus lhe pediram.

A notícia
causou estranheza, sugerindo a alguns a idéia de que estaria abalada a clássica
fé cristã.

Na verdade,
a notícia não tem tal alcance, como se depreenderá dos comentários seguintes.

Comentando…

Procederemos
em duas etapas.

O documento

Na década
de 1970 foi descoberto em Beni Masar (Egito) um manuscrito de 31 páginas
escrito em língua copta com o título de “Evangelho de Judas”. Foi traduzido
para o inglês e publicado no início de 2006. O manuscrito era propriedade da National
Geographic, em 2000 foi adquirido pela Fundação suíça Maecenas Foundation for
Ancient Art, que iniciou a sua tradução. Acreditam os peritos que a National
Geographic  tenha pago cerca de US$ 1
milhão pelos direitos de publicação.

O
autógrafo, que se perdeu, deve datar de 150 aproximadamente; só resta uma cópia
em língua copta, provavelmente traduzida do original  grego. Segundo o teste do Carbono 14, esse
exemplar copta deve datar do ano 300 aproximadamente.

Valor do
texto

O documento
em foco pertence ao acervo de apócrifos de origem não cristã, ou seja, de
origem gnóstica, dualista (a matéria seria má, o espírito bom). Os gnósticos
disseminaram suas idéias mediante uma bibliografia de estilo aparentemente
bíblico, mas posterior à literatura canônica, que data do século I. São obras
que começavam a se propagar no século II.

Para
compreender melhor o Evangelho de Judas , é oportuno lembrar que o gnosticismo
valorizava a gnose (o conhecimento) como meio que possibilita ao ser humano
escapar do cárcere do corpo e elevar-se ao espaço celestial. Ora em Jesus quem
estava encarcerada era a Divindade; daí a necessidade de promover a libertação
da Divindade presa no corpo de Jesus,… promovê-la mediante a morte de Jesus;
ora Judas a promoveu entregando o Senhor aos seus adversários, obedecendo aliás
a uma ordem do Pai Celeste. Assim Judas Iscariotes, em vez de merecer
antipatia, merece a gratidão dos cristãos. Ele foi o mais iluminado dos
Apóstolos. É de notar que, segundo o Evangelho em pauta, Jesus diz a Judas: “Tu
superarás a todos eles. E sacrificarás o homem que me abriga”.

Verifica-se,
porém, que a justificativa para o procedimento de Judas está baseada em
concepção gnóstica dualista, que não era compartilhada pelos judeus nem pelos
cristãos (também não por Judas). Aliás tal concepção não resiste ao crivo da
razão; esta ensina que nada há que seja ontologicamente mau ou mau por sua
essência; o corpo humano não é cárcere, mas criatura de Deus bom, que espelha
sua sabedoria na perfeição do corpo humano.

Ademais  a autêntica tradição cristã, que começa com
Jesus e os Apóstolos, sempre viu em Judas um traidor; cf. Mt 26, 14-16.48; At
1,15-20. Com isto não queremos condenar o infeliz discípulo ao inferno; só Deus
sabe quais terão sido os sentimentos de Judas antes de morrer.

Também não
se deve crer que Judas foi por Deus predestinado ao pecado e, por isto, agiu
sem culpa. Deus não impele a criatura ao pecado, mas dá-lhe sempre a graça para
resistir à tentação (cf. 1Cor 10,13). Deus não retira do homem a liberdade que
Ele lhe deu para dignificar a criatura.

Ademais,
ainda para explicar o surto do Evangelho de Judas, faz-se mister salientar que
no Egito antigo existiam correntes religiosas que se compraziam em exaltar
personagens e figuras bíblicos tidos como indignos. Assim os Cainitas prestavam
culto a Caim, o fraticida, assassino de Abel. Assim também os Ofitas cultuavam
a Serpente (ophis em grego), símbolo do tentador que levou os primeiros pais ao
pecado. Nesta linha de idéias estaria o autor do apócrifo Evangelho de Judas.

Mais: não
se diga que a Igreja ocultou os documentos apócrifos e outros que vêm causando
celeuma quando trazidos à tona por pesquisadores. – Na verdade, a Igreja não é,
nem foi, proprietária dos apócrifos do Egito nem de outros papiros guardados em
segredo porque revolveriam toda a história das origens do Cristianismo. A
Igreja não tem medo da verdade; antes, deseja que ela seja mais e mais
conhecida.

Não existe
monopólio de documentos antigos em favor da Igreja ou de outros interessados;
compra-os ou adquire-os quem tem meios para tanto.

É
importante ainda observar quanto segue.

Na própria
literatura apócrifa o traidor

Merece ser
realçado o fato de que a própria literatura apócrifa apresenta Judas também
como traidor; ele aparece assim no acervo mesmo dos documentos coptas que
inocentam Judas. Para evidenciá-lo, sejam citados os dois seguintes textos
publicados por Lincoln Ramos em sua obra EVANGELHOS APÓCRIFOS; Ed. Vozes, p.
189 e p. 196 respectivamente:

JUDAS E SUA
MULHER

V. 1  Apanhamos este homem, quando roubava aquilo
que todos os dias se depositava na bolsa. Levava-o à sua mulher, frustrando
desse modo os pobres. Todas as vezes que voltava a sua casa, levando nas mãos
as somas roubadas, ela costumava alegrar-se com o que ele fazia.

Constatamos
também que algumas vezes – deixando de seguir a malícia de seus olhos e sua
insaciabilidade – voltava para casa sem ter roubado; ela, então, zombada dele.

V.2.  Chegou a tal ponto que um dia em que ele
ficou em sua casa, aquela mulher, em sua insaciabilidade e perversão,
sugeriu-lhe um ato criminoso e terrível. Disse-lhe: “Eis que os judeus
perseguem o teu Mestre. Entrega-o, portanto, a eles. Eles te darão muito
dinheiro, que guardaremos em casa para viver”.

V.3.  Aceitando a sugestão da mulher, o infeliz
levantou-se e levou sua alma às sombras do Amenti. Como Adão escutou sua mulher
a ponto de desprezar a glória do paraíso e, por isso, a morte dominou sobre ele
e sobre sua descendência, assim também Judas escutou sua mulher e procedeu de
modo contrário às leis do céu e da terra, indo, em conseqüência, acabar no
lugar de prantos e gemidos.

Procurou os
judeus e contratou entregar seu Senhor por trinta pesos de prata78 .  E eles lhe deram a quantia.

 

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78 Trinta
pesos de prata. Cf. Mt 26,14-15; 27,3-10, onde a expressão é “moedas”, em vez
de “pesos”. Designa o “siclo” (Xequel), que corresponde a cerca de 12 gramas.

Cumpriu-se
assim a palavra que fora escrita: “Eles receberam os trinta pesos de prata como
preço daquele que é precioso”.

A traição
de Judas

I.1. Quando
o diabo entrou nele, o apóstolo Judas saiu e correu à procura dos sumos
sacerdotes.

Disse: “Que
me dareis, se eu vo-lo entregar?”

I.2. A
mulher de Judas tinha em sua casa o filho de José de Arimatéia, para criá-lo.

No dia em
que o infeliz Judas recebeu as trinta moedas de prata e as levou para casa, o
menino não quis mais alimentar-se.

José
dirigiu-se ao aposento da mulher de Judas… José chegou aflito por causa de
seu filho.

Quando o
menino viu o pai, embora tivesse apenas sete meses, gritou: “Vem, meu pai, e
tira-me das mãos desta mulher, que é uma fera selvagem. À hora nona de ontem2,
receberam o preço do sangue do justo”.

Ouvindo
isso, o pai o levou consigo.

I.3. Saiu
também Judas; apanhou3 … e outras pessoas do rei.

Prenderam
Jesus e o levaram ao procurador.

Disse-lhes
Pilatos: “Que quereis que eu lhe faça?”

Responderam-lhe:
“Crucifica-o!”

I.4. Quando
chegaram ao lugar onde devia ser crucificado, tiraram-lhe as vestes…
Trançaram uma coroa de espinhos e a colocaram sobre sua cabeça. Na mão direita
puseram-lhe uma vara. Junto com ele crucificaram dois ladrões: um à direita,
outro à esquerda, ficando ele no meio.

Levantou os
olhos ao céu e disse:

“Meu Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

E eles o
escarneciam.

Parece
assim comprovada a inconsistência da tese do Evangelho de Judas.

 

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1 Pesos.
Ver nota 78 da Primeira Parte.

2 Hora nona
de ontem. Corresponde às 3 horas da tarde. Como o dia terminava às 6 da tarde
(12ª hora), o “ontem” pode corresponder ao nosso “hoje”.

3 Apanhou.
A lacuna pode ser preenchida por “chefes judeus” ou “soldados”.

 

                                                                                                                     

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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