O Dom da Vida: Respostas a questões de Bioética – EB (Parte 1)

Revista: “PERGUNTE E
RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 302 – Ano 1987 – p.
299

 Em síntese: A instrução Donum
Vitae (O Dom da Vida) toma posição negativa diante das modernas técnicas de reprodução
que menosprezam o que há de específico na procriação humana, equiparando-a
praticamente à dos animais inferiores. Na verdade, o corpo humano não é mero
conjunto de tecidos e órgãos, mas, penetrado por uma alma espiritual, vem a ser  o espelho da pessoa humana; conseqüentemente
quem toca o corpo, toca a pessoa; quem trata o corpo como coisa, inflige tal
tratamento à pessoa. Esta não pode ser tratada como algo (mero objeto ou
coisa), mas é sempre alguém (sujeito).

Daí o respeito que a
transmissão da vida humana merece e que não é levado em consideração pelas
técnicas de manipulação das sementes vitais e dos embriões humanos.

O único berço digno de um
novo ser humano é o ato sexual realizado entre cônjuges. Estes, dando-se
reciprocamente numa comunhão de amor total, são chamados pelo próprio Deus a
participar na transmissão da vida.

Com a data de 22/02/1987 foi
publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé um documento longamente
esperado, ou seja, a Instrução sobre o Respeito à Vida Humana Nascente e a
Dignidade da Procriação. Assinado pelo Cardeal Joseph Ratzinger e aprovado pelo
S. Padre João Paulo II, este texto responde a numerosas e insistentes  interrogações levadas à  Santa Sé por clérigos e leigos (cientistas,
casais…) a respeito das novas técnicas biomédicas referentes à  procriação e ao feto humano; seriam
lícitas  aos olhos da Moral Católica?

Desde o começo de 1980,
foram recolhidos dados científicos e teológicos; foram também consultados
Bispos, cerca de sessenta peritos moralistas e vinte e dois cientistas
(geneticistas, biólogos, médicos, sexólogos, psiquiatras) de nacionalidades e
tendências diversas para se poder ter uma visão objetiva e lúcida de tão
delicadas questões. O texto básico derivado de tais estudos foi relido por especialistas,
que contribuíram para aperfeiçoá-lo e finalmente julgaram oportuno dar-lhe a
forma de um questionário com suas respostas, a fim de que pudesse considerar
atentamente os diversos casos que a 
problemática geneticista propõe hoje à Moral católica.

A Instrução Donum Vitae (o
Dom da Vida) assim oriunda apresenta-se, pois, como um documento cuidadosamente
elaborado sobre um assunto delicado e complexo, no qual, em última análise,
estão em jogo a identidade e a dignidade da pessoa humana. Trata-se de saber se
a ciência e a técnica contemporâneas, poderosas e fascinantes como são, estão
subordinadas à Ética ou se acham emancipadas desta, de modo a não  conhecer limites, nem mesmo aqueles que a
dignidade da pessoa humana lhes impõe. A posição assumida pela Instrução é
coerente com toda a doutrina da  Igreja;
esta apregoa a subordinação da ciência à consciência moral, a fim de que a
ciência contribua para o engrandecimento do homem e do seu Criador, e não se
volte  contra estes (como pode acontecer
nos casos da ecologia e da energia nuclear). Por conseguinte, os  muitos Não que a Instrução formula diante de
certas técnicas de reprodução, vêm a ser um Sim dito ao homem e à sua
inconfundível dignidade; é, pois, o amor da Igreja ao homem, inseparável do
amor a  Cristo, que move a Igreja a se
pronunciar sobre a  complexa questão
biogenética. A boa intenção de cientistas e cônjuges desejosos de produzir ou
transmitir a vida humana por meios novos não basta para justificar as recentes
experiências e técnicas, se estas não levam em conta a peculiaridade
psicossomática ou a espiritualidade da pessoa humana.

Estas verdades serão
explanadas nas páginas seguintes, em que percorreremos o texto da Instrução,
procurando pôr em relevo os seus pontos principais.

O documento se desenvolve do
seguinte modo:

Introdução: Princípios
fundamentais de Antropologia e Moral, necessários para elaborar as respostas à
problemática.

Parte I: O respeito aos
embriões humanos.

Parte II: Intervenções na
procriação humana:

Fecundação artificial
heteróloga

Fecundação artificial
homóloga.

Parte  III: Moral e Lei Civil

Conclusão

Examinaremos sucessivamente
estas etapas

INTRODUÇÃO (Nºs 1-5)

Este proêmio enfatiza que

– a Igreja intervêm na
biogenética a pedido de muitos homens, que a reconhecem “perita em humanidade”
e esperam dela uma palavra sábia e amorosa (nº 1);

– a ciência e a técnica
estão a serviço da pessoa humana; não são valores absolutos, mas acham-se
subordinados à  Ética e aos direitos
inalienáveis do ser humano (nº 2);

– A pessoa humana, embora
conste de um corpo constituído por tecidos e órgãos, como o do demais animais,
não pode ser tratada como estes. De modo especial, a procriação humana está
ligada a valores que não se encontram em nenhum outro vivente criado. A corporeidade
no homem está integrada num conjunto que também é espiritual; em conseqüência,
quem toca o corpo, toca a pessoa com seus aspectos espirituais e
transcendentais; criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é chamado a se
realizar plenamente em
Deus. Isto quer dizer que nenhum biólogo ou médico pode, em
nome da ciência, decidir sobre a origem e o destino dos homens. É lícito, sim,
ao cientista instituir suas pesquisas genéticas desde que guarde sempre o
respeito  à pessoa humana (n.º 3).

Os critérios morais para se
julgarem as novas experiências são  dois:

a) a vida do ser humano não
é apenas o resultado de reações físico-químicas, mas é o patrimônio de alguém
chamado à  eternidade;

b) a transmissão da vida
humana foi, pela natureza, associada ao amor conjugal, que é sempre pessoal e
consciente; por conseguinte, não deve ser realizada  fora do contexto  conjugal (nº 4).

– O magistério da Igreja
tem-se pronunciado repetidamente sobre a Antropologia, lembrando, entre outras
coisas, que a alma espiritual de todo 
homem é imediatamente criada por Deus (Pio  XII, Encíclica Humani Generis, 1950; Paulo
VI, Credo do povo de Deus, 1968)…, que Deus é o único Senhor da vida humana
(Pio XII, Aos Médicos em 12/11/1944)…, que a transmissão da vida se realiza entre
esposo e esposa segundo as leis da natureza (Constituição Gaudium et Spes nº
51) (nº 5).

Parte I: O RESPEITO AOS
EMBRIÕES HUMANOS (Nº 1-6)

Esta Parte aborda seis
perguntas:

1. Que respeito se deve ao
embrião humano levando-se em conta a sua natureza e a sua identidade?

– O ser humano há de ser
respeitado como pessoa desde o primeiro instante da sua existência:

“A partir do momento em que
o óvulo é fecundado, inaugura-se uma 
nova vida  que não é a do pai ou a
da mãe, e sim a de um novo ser humano, que se desenvolve por conta própria.
Nunca se tornará humano se já não o é desde então. A esta evidência de
sempre… a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Esta
demonstrou que desde o primeiro instante já se encontra fixado o programa
daquilo que será este vivente: um homem, este homem-indivíduo com as suas notas
características já bem determinadas. Desde a fecundação tem início a aventura
de uma vida humana, cujas grandes capacidades exigem cada uma tempo para
organizar-se e para encontrar-se prontas a agir” (Congregação para a Doutrina
da Fé, Declaração sobre o Aborto Provocado, nº 12s).

2. O diagnóstico pré-natal é
moralmente lícito?

Se  o diagnóstico pré-natal respeitar a vida  e a integridade do embrião e do feto humano e
se orientar para a sua salvaguarda e para a sua cura individual, a resposta
será afirmativa.

É, porém, ilícito o exame
pré-natal planejado com a finalidade de eliminar os fetos atingidos por
deformações ou doenças hereditárias ou delas portadores.

3. As intervenções
terapêuticas no embrião humano são lícitas?

– Como qualquer intervenção
médica, as  intervenções no embrião
humano são lícitas sob a condição de que respeitem a vida e a integridade do
embrião, não comportem para ele riscos desproporcionais e sejam orientadas para
a sua cura, para a melhora de suas condições de saúde ou para a sua
sobrevivência individual.

4. Como julgar moralmente a
pesquisa e a experimentação com embriões e fetos humanos?

– Antes da resposta,
observe-se que

– por pesquisa se entende
todo processo indutivo-dedutivo que tenda a promover a observação de um
fenômeno ou a testar uma hipótese decorrente de observações anteriores;

– por experimentação,
entende-se toda pesquisa na qual o ser humano vem a ser objeto sobre o qual os
cientistas tencionam observar os efeitos de determinado tratamento
(farmacêutico, cirúrgico, teratogênico…)

Resposta: A pesquisa médica
deve abster-se de intervenções em embriões vivos, a menos que haja a certeza
moral de não causar dano nem à vida nem à integridade do nascituro e da mãe e
contanto que os pais tenham consentido na intervenção, de modo livre e
informado.

Disto se segue que qualquer
pesquisa, ainda que limitada à mera observação do embrião, se torna ilícita
desde que, por causa dos métodos empregados ou dos efeitos produzidos, implique
um risco para a integridade física ou para a vida do embrião.

Os embriões vivos, viáveis
ou não, devem ser respeitados como todas as pessoas humanas. Quanto à
experimentação não diretamente terapêutica com embriões, é sempre ilícita,
porque subordina, sem mais, a pessoa aos interesses da pesquisa.
Conseqüentemente compreende-se que a prática de manter em vida embriões
humanos, no organismo feminino ou em proveta, para fins experimentais ou
comerciais, é absolutamente contrária à dignidade humana.

Ainda é de notar: os
cadáveres dos embriões ou fetos humanos, voluntariamente abortados ou não,
devem ser respeitados como os restos mortais dos outros seres humanos. Isto
significa que a venda de tais despojos a fábricas de sabonetes ou cosméticos é
grave ofensa à pessoa humana, ofensa de que dão notícia os jornalistas Michael
Lichtfield e Susan Kentish no livro Bebês para Queimar (ed. Paulinas 1977); cf.
PR 213/1977, pp. 377-390.

5. Como julgar moralmente o
uso, para fins de pesquisa, dos embriões obtidos mediante a fecundação in
vitro?

– Os embriões humanos
produzidos em proveta são seres humanos e têm seus direitos, que devem ser
respeitados. Por isto é imoral

produzir embriões humanos
destinados a servir de material biológico para pesquisa;

expor deliberadamente à morte
embriões humanos obtidos em
provetas. Com efeito, quando se dá a fecundação em
laboratório, nem  todos os óvulos
fecundados são aproveitados para o 
transplante no organismo feminino; em consequência, os “excedentes” são
expostos à morte ou são explicitamente eliminados pela morte. Isto fere a
dignidade humana, porque reduz o ser humano à categoria de mero material de
pesquisa.

6. Como julgar os outros
procedimentos de manipulação de embriões, ligados às “técnicas de reprodução
humana”?

– Trata-se aqui das
tentativas de fecundação entre gametas de seres humanos  e de animais irracionais; também se têm em
vista a gestação de seres humanos em úteros de animais irracionais ou em úteros
artificiais (máquinas incubadoras) (…) ou ainda a obtenção de um ser humano
independentemente da cópula sexual, ou seja, mediante fusão gemelar, clonagem
ou partenogênese… – Todos estes procedimentos são contrários à Moral e ferem
tanto a dignidade da procriação humana quanto a da união conjugal.

Leve-se em conta outrossim a
intervenção no patrimônio cromossômico ou genético não para fins terapêuticos,
mas  para produzir seres humanos
selecionados de acordo com critérios preestabelecidos ou para obter séries de
pessoas programadas (intelectuais, artistas, esportistas, líderes
militares…). Esta forma de manipulação é outro atentado à identidade humana.

 

O congelamento de embriões –
ainda que tenha em mira conservar a vida do feto – constitui uma ofensa ao ser
humano, pois o expõe a riscos de morte ou de danos à sua integridade física,
privando-0, ao menos temporariamente, da acolhida e da gestação maternas…

PARTE II: INTERVENÇÃO NA
PROCRIAÇÃO HUMANA (Nºs. 1-8)

As intervenções dos
cientistas na procriação humana deram origem à chamada “fecundação ou
inseminação artificial”. Esta pode realizar-se por interferência direta  no organismo feminino (o espermatozóide
extraído do organismo masculino é colocado diretamente nas vias genitais da
mulher) ou pode ser praticada dentro de proveta 
(há a fecundação in vitro e a transferência do embrião para o organismo
feminino; donde o nome FIVETE).

Ora a fecundação in vitro
supõe muitas tentativas de fecundação; algumas são totalmente estéreis, outras
só têm sucesso parcial (originam um ser humano defeituoso), poucas logram pleno
êxito. Os cientistas costumam eliminar os deficientes; dentre os bem sucedidos,
há os “excedentes”, que não são implantados nas vias genitais da mulher. Mesmo
dentre  os embriões implantados, às vezes
alguns são sacrificados por razões eugênicas, psicológicas ou econômicas. – Tal
destruição voluntária de seres humanos é contrária aos princípios de Moral já
recordados.

Visto que a fecundação in vitro
está freqüentemente ligada à destruição 
de embriões humanos (defeituosos ou íntegros), tal prática se torna
moralmente ilícita; por ela o homem pretende ser senhor da vida e da morte dos
seus semelhantes – o que não lhe cabe.

Posto este princípio, a
Instrução examina sucessivamente a fecundação artificial heteróloga e homóloga.

Fecundação artificial
heteróloga (nº 1-3)

Por fecundação artificial
heteróloga entendem-se as técnicas que visam a produzir um feto  humano mediante a intervenção de um doador ou
de terceira pessoa (diversa do esposo e da esposa). Essas técnicas podem
realizar-se por implantação dos espermatozóides do doador diretamente nas vias
genitais da mulher ou por recurso a uma proveta, onde se encontram os óvulos da
mulher e os espermatozóides do doador.

A propósito três perguntas
se colocam:

1. Por que a procriação
humana deve ocorrer dentro do matrimônio?

– Para que a procriação seja
realmente assumida com responsabilidade, deve ser fruto do matrimônio ou de um
compromisso estável entre esposo e esposa que se disponham a gerar e educar a
sua prole. – Também a fidelidade dos esposos ao seu matrimônio implica o
direito de se tornarem pai e mãe somente através um do outro. Com efeito; os
genitores têm no filho uma confirmação e um complemento da sua doação
recíproca; a prole, por seu lado, é a imagem do amor mútuo de esposo e esposa;
além disto, é através da referência segura aos seus genitores que a prole
descobre a sua identidade.

Mais: o equilíbrio da
sociedade exige que os filhos venham ao mundo no seio de uma família e que esta
seja estavelmente fundada no matrimônio.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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