O conceito de Deus na Maçonaria – EB (Parte 1)

Maçonariapor Valério Alberton

Em síntese: O livro em foco tem em mira redimir a Maçonaria da acusação de antirreligiosa. Afirma que a Maçonaria tradicional e regular, professando o Grande Arquiteto do Universo, de um lado, evita toda forma de ateísmo e, de outro lado, não se enquadra em tipo algum de ateísmo; documentação e não pode deixar de ter valor no diálogo entre a Maçonaria e a Igreja Católica, pois esclarece atitudes e princípios.

Ora esta conclusão parece um tanto simples demais, pois dentro da Maçonaria regular há um amplo leque de posições religiosas inclusive a profissão de fé cristã (nas Lojas de origem protestante). Além disto, há Lojas de Maçonaria dita “irregular” que rejeitam a proclamação do Grande Arquiteto do Universo. Donde se vê que as posições da Maçonaria diante da Religião são múltiplas. Como quer que seja, o livro é muito rico em documentação e não pode deixar de ter valor no diálogo entre a Maçonaria e a Igreja Católica, pois esclarece atitudes e princípios.

Comentário: O Pe. Valério Alberton S. J. tem-se distinguido por seus estudos sobre a Maçonaria”, que é a sua tese apresentada ao I Congresso Maçônico Internacional de História e Geografia do Rio de Janeiro (19-21/03/1981). O livro tenciona esclarecer o debate sobre o caráter religioso ou irreligioso, teísta ou deísta, da Maçonaria – o que lhe confere importância, pois a problemática é decisiva para uma justa avaliação daquela sociedade. Abaixo exporemos o conteúdo do livro, ao que se seguirá breve comentário.

O livro em pauta

O autor distingue duas fases na história do conceito de Deus dentro da Maçonaria: 1) o período operativo (desde as origens até 1723), 2) o período especulativo (de 1723 até nossos dias). Este último se subdivide em outros dois: a) o da Maçonaria regular ortodoxa, que vai de 1723 aos nossos tempos; b) o da Maçonaria irregular, heterodoxa, que é uma dissidência da Regular a partir de 1877 até nossos dias.

1.1. O período operativo

Chama-se “período operativo” a fase da Maçonaria medieval que constava de corporações de pedreiros (operativos, porque voltados para a operação ou o trabalho manual). As origens desta fase são as das próprias corporações de artífices medievais.

Como se compreende, os pedreiros da Idade Média tinham um conceito de Deus haurido na S. Escritura ou trinitário. Os documentos da época, chamados Old Charges (Antigos Deveres), geralmente se abrem em nome da SS. Trindade, acrescentando, por vezes, a menção da SS. Virgem Maria e de santos. Eis alguns espécimens:

A Constituição de York, datada de 926, se é autêntica (há quem o conteste, ao lado de quem o afirme), vem a ser o mais antigo documento dos pedreiros medievais hoje existente. Assim reza o seu preâmbulo:

“Que a Onipotência de Deus Eterno, Pai e Criador do céu e da terra, a sabedoria do seu Verbo e a influência do Espírito por Ele enviado estejam conosco e com os nossos trabalhos e nos concedam a graça de nos conduzir, de modo a merecer a sua proteção nesta vida e a vida eterna na outra, depois da nossa morte!”

O Estatuto dos Trabalhadores de Pedra de Ratisbona, datado de 1459, começa da seguinte forma:

“Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, da bem-aventurada Virgem Maria, como, também, de seus bem-aventurados servos os quatro santo coroados, à sua eterna memória”.

Ainda em 1686 um manuscrito dos Old Charges se inicia com as seguintes fórmulas:

“Temei a Deus e guardai seus mandamentos, porque é este o dever do homem.

Em nome do Grande e Santo Deus, a Sabedoria do Filho e a Bondade do Espírito Santo, três Pessoas e um só Deus, sejam conosco agora e sempre. Amém”.

A documentação demonstra que tal profissão de fé em Deus vasada em linguagem tradicional católica esteve em
uso nas Lojas de Pedreiros até o século XVIII.

1.2. O período especulativo:… até 1877

Sabe-se que as corporações medievais de pedreiros perderam a sua voga no século XVI, quando a cultura e a arte em geral tomaram novos rumos. Os construtores em pedra, que eram favorecidos por privilégios das autoridades civis e religiosas, declinaram no cenário público. Em conseqüência, foram recebendo em suas agremiações pensadores e filósofos, que nada tinham em comum com a profissão dos pedreiros, mas que davam novo prestígio às respectivas Lojas. Assim a Maçonaria dita “operativa” tornou-se “especulativa”.

Em 1723 foram promulgadas as Constituições elaboradas pelo pastor protestante escocês James Anderson como Magna Carta da Maçonaria Especulativa, que então iniciava a sua história.

Essas Constituições ainda aludem à Bíblia, mas adotam a expressão “Grande Arquiteto do Universo” para designar o Senhor Deus; tal apelativo já era, de certo modo, conhecido e propagado pela arte medieval, que se comprazia em apresentar Deus como Arquiteto do mundo; todavia não era propriamente bíblica nem se achava nos Old Charges.

Eis, por exemplo, como se exprime o artigo 1º da Parte II das Constituições de Anderson:

“Adão, nosso Pai, criado à imagem de Deus, O GRANDE ARQUITETO DO UNIVERSO (…)”

Nesta frase, vê-se que o título “Grande Arquiteto do Universo” ainda é colocado em relação com a revelação bíblica ou com o conceito teísta de Deus.

Em 1738 as Constituições da Grande Loja de Londres redigidas por Anderson foram modificadas (…). No tocante à Religião, ai está dito o seguinte:

“Um maçom é obrigado na sua dependência, a observar a Lei Moral como um verdadeiro noaquita e, se entende corretamente o ofício, nunca será um estúpido ateu nem um libertino irreligioso, nem agirá contra a sua consciência.

Nos tempos antigos os maçons cristãos eram obrigados a concordar com os usos cristãos de cada país por onde viajavam ou trabalhavam; mas, sendo a Maçonaria fundada em todas as Nações, mesmo nas que praticam várias religiões, são eles agora unicamente obrigados a aderir àquela religião na qual todos os homens estão de acordo (cada irmão vivendo em sua própria e particular opinião), que é a de serem homens bons e sinceros, homens honrados e pobres, quaisquer que sejam as denominações, religiões ou crenças que possam distingui-los, por estarem todos de acordo com os três grandes artigos de Noé, que são suficientes para preservar o Cimento da Loja. Assim a Maçonaria é o Centro de sua União e o Feliz Meio de conciliar pessoas que teriam ficado perpetuamente separadas”.

Como se vê, este texto afirma que todo maçom “há de aderir à religião na qual todos os homens devem estar de acordo”. Esta passagem preconiza indiretamente uma religião meramente natural ou racional sem confissão religiosa revelada (é o que parece, de seu modo, insinuar a menção de Noé, patriarca anterior a Abraão e à revelação judeo-cristã; cf. Gn 6-9). Em conseqüência, o texto das Constituições tenta incutir apenas preceitos de lei natural, a saber: a proibição de servir aos ídolos e falsos deuses, a de blasfemar e a de matar. Foi provavelmente essa fórmula deísta¹ que suscitou reservas por parte da Santa Sé  e, consequentemente, a primeira Bula de condenação da Maçonaria datada de 1738 (“In Eminenti” de Clemente XII). Todavia V. Alberton afirma que a formulação deísta era entendida em sentido cristão por não poucas Lojas maçônicas cujos membros protestantes (na Inglaterra) ou católicos (na França).

Sobre este pano de fundo é que teve origem uma nova modalidade da Maçonaria.

1.3. O período especulativo a partir de 1877O que é o repouso no Espírito?

1.3.1. Na França

A França do século XVIII se ressentiu fortemente do racionalismo dos enciclopedistas, que chegou até o ateísmo no século XIX. Ora as Lojas Maçônicas francesas foram recebendo em seu grêmio pensadores liberais, o que contrariava aos princípios da Constituição de
1738. Tenha-se em vista, por exemplo, o caso do ateu proudhon: por ocasião de sua iniciação na Maçonaria, foi-lhe dirigida a pergunta ritual: “Quais são os deveres do homem para com Deus?” Ao que respondeu taxativamente: “A guerra”. Apesar disto, foi admitido aos 8/06/1847, violentando-se assim um preceito fundamental da Maçonaria. Infiltraram-se nesta ainda as idéias dos “Iluminados da Baviera”, dos “Filadelfos”, dos “Carbonários” e de outras correntes anticlericais, anti-religiosas e antiteístas. Disto resultou em 1877 a eliminação, por parte do Grande Oriente que prescrevia a crença em Deus e na imortalidade da alma; ao mesmo tempo foram eliminados do Ritual do Grande Oriente do Universo”. A razão alegada para tal reviravolta foi a defesa da “absoluta liberdade de pensamento”, princípio este que estava muito em voga na época em que levava ao relativismo e ao liberalismo.

Eis como o Pe. Valério Alberton descreve o andamento dos debates que terminaram com a supressão do famoso artigo 1º das Constituições de Anderson:

O Grande Oriente da França reuniu-se em assembléia geral a partir de 10/12/1877, presentes 180 delegados sob a presidência do Ir. De Saint Jean. “Na Quinta sessão foi posto em ordem do dia o pedido de alteração do art. 1º das Constituições, que suprimia a declaração nela contida de que “a Maçonaria francesa professa como princípio fundamental a crença em Deus e na imortalidade da alma”.

Relator oficial era o pastor protestante Frederico Desmons, a quem se atribui, sobretudo, esta supressão. Muitas vezes lembraram esta sua qualificação de pastor para afirmar que o Grande Oriente, na ocorrência, dera grande prova de tolerância e, se se ousa dizer, deixou a Deus todas as suas chances. A verdade, porém, é que, como lembra Allec Mellor, cinco anos depois este radical apostatou de sua Igreja e na sua morte teve exéquias puramente civis, tendo sido sua carreira política de um radical da IIIº República.

Desmons procura justificar dois temores, em seu discurso: o perigo de o Grande Oriente de França acabar ficando isolado, e o de que a atitude contra o art. 1º pudesse ser interpretada como propaganda ateística.

Quanto à primeira, Desmons relembra que a solicitada supressão já havia ocorrido na Grande Loja de Buenos Aires, sua ausência nas Constituições da Grande Loja húngara e que na França mesma o artigo discutido fora introduzido apenas em 1848.

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 266 – Ano 1983 – p. 40

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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