”No silêncio da minha noite…” EB

No silêncio da noiteO mês de junho é, pela piedade cristã, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus. Este vem a ser o símbolo mais concreto e realista do amor de Deus para com todos os homens,… amor que quis compartilhar a natureza do próprio homem, com seu coração, para pulsar e vibrar através deste na realidade comezinha ou nos altos e baixos de cada dia.

O amor de Deus assim expresso tem algo de paradoxal ou desconcertante: é o Amor primeiro “aquele que primeiro nos amou” (1Jo 4,19), e nos ama, não porque encontre na criatura valores atraentes, mas, sim, porque lhe quer bem gratuitamente e, em conseqüência, lhe deseja suscitar os valores que a criatura não têm.

Para nós, homens, – francamente falando – é difícil relacionarmo-nos com um tal amor. Sempre nos volta a imagem do amor humana de cada dia,… amor que só surge e se exerce quando atraído por valores preexistentes. A experiência dessa dureza, fê-la o grande frade dominicano francês Henri Lacordaire (1802-1861). Aos 25 anos de idade, após uma adolescência acidentada, sentia o chamado para a consagração total ao senhor mediante os votos religiosos e a ordenação sacerdotal. Todavia julgava-se frustrado e estraçalhado, porque todos os caminhos que havia tentado para encontrar, de maneira mais sensível, a Deus, lhe pareciam não ter saída; julgava haver fracassado na procura ardente daquele Senhor cujo chamado ele percebera. Depois de muito haver lutado, finalmente ouviu uma palavra da parte do Senhor que lhe clareou os horizontes, manifestando-lhe o sentido do Amor que o chamava e atraía. Eis o depoimento do próprio Lacordaire:

“Senhor, eu poderia enfeitar, falar bonito, mas não quero faltar à verdade.  Meu desabafo é sincero, veraz: esvaziei a taça da vida e a embriagues não veio, a paz não aconteceu. Chamei pela felicidade a ponto de ficar rouco, e o eco não me respondeu. Andei caminhos e descaminhos, estradas possíveis e impossíveis, e até hoje não achei o que tanto procuro.

 Terei errado na escolha da vocação?  O tédio me abate e a angústia retalha.  E sigo cansado, tateando no escuro…
Busquei liberdade, pensando ser ela a grande solução. Mas sinto nos lábios e no fundo da alma o trago amargo da frustração. E com o poeta eu choro:  “Como me pesa hoje o esquife dos meus sonhos mortos !”

 É duro, Senhor, caminhar sempre em tua direção, quando há tantos outros apelos mais lisonjeiros solicitando minha adesão. É duro, Senhor, acreditar na oração e em nenhum momento ter gosto para reza., para fazer meditação.

Bebi, tu sabes em quantas jornadas, na fonte da Escritura, mas contínuo sedento. Alimentei-me, tu sabes quantas vezes, do pão eucarístico, mas continuo faminto em meu jornadear. Sorrindo, busquei partilhar as tuas riquezas, Senhor, porque em teu reino a gente cresce repartindo. no entanto, sinto-me tão pobre, subalimentado. Quanto mais te busco, mais distante me parece estar. Estarei vocacionalmente em barco errado? Ando esmagado, ferido e desnorteado.

E no silêncio da minha noite, toda feita de incertezas e contradição, ouvi uma voz que dizia no fundo de meu coração:

– Oferece-me o teu vazio… Preciso da tua miséria para manifestar a minha Misericórdia, de geração em geração!

Esta poesia tem alto significado precisamente por causa do seu estilo paradoxal… Ela nos diz que a miséria da criatura que procura sinceramente a Deus, mas julga não o encontrar, tem valor aos olhos do Senhor. É, sim, a ocasião para que Deus aja mais pura e evidentemente na criatura, manifestando nesta a sua misericórdia ou o seu amor. Justamente a palavra misericórdia vem de miser e cor e significa “coração voltado para a miséria a fim de lhe dar o que ela não tem”.

Caro leitor, se descobriste um pouco de ti e da tua história na descrição da miséria proposta por Lacordaire, podes também, com todo o direito, sentir-te interpelado pela palavra de luz que se lhe segue: o teu Deus é o Deus que, para se dar, não espera senão um coração de pobre e pequenino, vazio de si, mas sequioso do Amor que desde toda a eternidade nos disse um Sim divino, isto é, irreversível, para todo o sempre!

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Autor: Estevão Bettencourt, Osb
Nº 210, Ano 1977,  p. 233

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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