Medianeira, Coredentora e Advogada – EB

Revista “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Revista nº 425, Ano 1997, p. 445

Novo Dogma?

Em síntese: Nos últimos anos têm sido levadas à Santa Sé petições no sentido de que o Papa João Paulo II defina solenemente, como dogma de fé, os títulos de Maria Medianeira, Coredentora e Advogada. O Santo Padre tem consultado os teólogos a respeito; de modo especial salienta-se uma Declaração de peritos católicos e não católicos reunidos em Czestochowa (Polônia) em agosto de 1996; tal documento afirma a con­veniência de se manter a posição do Concílio do Vaticano II sóbria frente a tais títulos. Em consequência, conclui-se que a solene definição dogmática é inoportuna, de mais a mais que os próprios teólogos divergem entre si quanto ao sentido do título de Coredentora.

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Nos últimos decênios registrou-se na Igreja um movimento favorável à definição de um dogma referente a Maria Santíssima Medianeira, Coredentora e Advogada do gênero humano. As expressões desse movi­mento, que levou à Santa Sé as suas petições, vão, a seguir, analisadas, ao que acrescentaremos o parecer de teólogos consultados pelo S. Pa­dre João Paulo II a respeito.

Os Fundamentos Teológicos

Um dos expoentes mais significativos do movimento pró-definição é o Prof. Mark Miravalle, docente de Mariologia na Universidade Franciscana de Steubenville, Ohio, U.S.A. Publicou em 1996 a obra Mary: Coredemp­trix; Mediatrix, Advocata. Theological Foundations II. (Queenship Publishing Company, Santa Barbara, Califórnia, U.S.A.). O livro tem o Prefácio do Cardeal Edouard Gagnon, que lhe dá certa autoridade e que argumenta do seguinte modo: não basta que o povo de Deus acredite na função medianeira da Ssma. Virgem: é preciso que esta seja solenemente pro­clamada.

No corpo do seu livro, o Prof. Miravalle propõe a seguinte formulação dogmática:

 “A Coredenção de Maria é aquele privilégio pelo qual a Imaculada sempre Virgem Mãe de Deus cooperou livremente com e sob Jesus Cristo, seu Filho e Redentor, na Redenção  histórica da família humana, desde o seu Fiat na Anunciação até o sacrifício do seu coração materno no Calvário; e assim Maria se tornou para nós a Medianeira de todas as graças  da Redenção e Advogada do Povo de Deus”.

O autor da obra não se esquece o aspecto ecumênico ou pouco ecumênico que tal definição apresenta; sabe que tanto os protestantes quan­to os cristãos ortodoxos veriam na definição um obstáculo a mais para o diálogo ecumênico; julga, porém, que uma reflexão aprofundada eviden­ciaria os fundamentos patrísticos do dogma. Com efeito; registra-se na literatura cristã dos primeiros séculos a expressão Nova Eva, que parece conter implicitamente os títulos de Medianeira e Coredentora.

Mais: Miravalle cita textos patrísticos e, entre outros, um sermão de S. Cirilo de Alexandria (+ 444), que dizia:

“Salve Maria, Mãe de Deus (Theotókos), venerável tesouro do mun­do inteiro, é por meio de vós que a Ssma. Trindade é adorada e glorificada”.

Cita outrossim o teólogo russo Sérgio Bulgakov, que escreveu:

“A fé em Cristo que não inclua o seu nascimento virginal e a veneração de sua mãe e uma outra fé, é outro Cristianismo diferente do da Igreja Ortodoxa”.

Para corroborar sua posição, Miravalle afirma outrossim que a pro­clamação da coredenção de Maria lembraria ao mundo que a participação nos sofrimentos de Cristo é colaboração com a obra redentora do Senhor também quando ocorre nas gerações posteriores à de Maria Ssma.
Consequentemente a Igreja estaria dizendo uma palavra de reconforto aos que sofrem em nossos dias e julgam que eutanásia e aborto são a solução para certos casos dolorosos; eis palavras de Miravalle:

“O exemplo de Maria Coredentora diz à Igreja e ao mundo que o sofrimento é co-redentor. Isto tem imediato significado para as tragédias do aborto e da eutanásia, recursos estes que, cada qual a seu modo, negam os efeitos fecundos do sofrimento”.

O teólogo norteamericano dilata mais ainda o seu olhar, juntamente com o teólogo anglicano John Maquarre; é da opinião de que a definição da livre participação de Maria na obra redentora seria uma réplica ao determinismo professado por Lutero e Karl Barth, assim como pelos ma­terialistas totalitários de direita e de esquerda: a livre cooperação da Vir­gem Ssma. seria paradigma da liberdade com que todos  os homens podem e devem responder ao chamado de Deus, cumprindo a missão a eles confiada. Maria seria o símbolo da perfeita harmonia que deve existir entre a vontade de Deus e a resposta dos homens ao plano do Pai.

Eis as principais razões aduzidas por Mark Miravalle em favor da definição dogmática dos títulos de Maria Medianeira, Coredentora e Advogada.

De resto, Miravalle não é senão o porta-voz de cerca de 500 Bispos, 40 Cardeais e numerosos fiéis do mundo inteiro que, seguindo os passos do Cardeal Mercier e de S. Maximiliano Kolbe, pediram à Santa Sé, no século XX, a mencionada definição.

Vejamos agora a atitude do magistério oficial da Igreja em resposta à demanda.

A Resposta da Santa Sé

A atitude da Santa Sé frente às mencionadas petições  tem sido sóbria e prudente.

1. Assim nos anos anteriores ao Concílio do Vaticano II ou, mais precisamente, entre 1959 e 1962 foram levadas à Comissão Preparatória do Concílio 265 petições de Bispos que solicitavam “fosse a doutrina da Mediação Universal de Maria definida como dogma de fé”, 48 Bispos pediam o mesmo, acrescentando, porém “se isso for considerado oportuno” – o que perfazia um total de 313 petições, número não   desprezível. Durante o Concílio mesmo, tais pedidos tornaram-se raros, chegando a cessar à medida que se adiantavam os estudos das sessões do Concílio, estudos sempre acompanhados de oração. Finalmente a Constituição Lumen Gentium, em seu capítulo VIII, apresenta uma síntese mariológica que não contém a definição dogmática da Mediação Universal de Maria; tal documento foi aprovado em 21/11/1964 por 2151 votos numa assembléia de 2156 votantes. Este resultado beirava a unanimidade e exprimia bem o pensamento do magistério da Igreja: entre os 2151 votos favoráveis estavam certamente quase todos os dos 313 Bispos que haviam pedido a definição dogmática da Mediação Universal de Maria Santíssima.

Ora trinta e três anos após a promulgação da Constituição Lumen Gentium – o que é pouco tempo, se se leva em conta que os Concílios gerais são raros e excepcionais – os referenciais eclesiológicos, teológicos e exegéticos do magistério da Igreja não terão mudado. De resto, o Papa Paulo VI, ao encerrar a terceira sessão do Concílio em 21/11/64, declarou que o capítulo VIII da Lumen Gentium vem a ser a mais vasta síntese que um Concílio ecumênico jamais ofereceu “da doutrina católica referente à posição que a Santíssima Virgem Maria ocupa no mistério de Cristo e da Igreja”.

Ora na base de tais fatos compreende-se que o Santo Padre João Paulo II se veja obrigado a cautela e reservas diante do movimento pró definição.

2. Ademais é de notar que as próprias noções de Medianeira  e Coredentora são ainda ambíguas e obscuras no campo teológico. Com efeito: os manuais de Mariologia publicados nos dez últimos anos – e são cerca de vinte – não concordam entre si na maneira de entender o significado de tais atributos da Virgem Ssma. Todos são cautelosos no sentido de não afetar a figura singular e o papel único de Jesus Cristo Redentor do gênero humano. Ora essa falta de unanimidade é suficiente para se dei­xar de lado qualquer tentativa de definição dogmática.

3.  Nota-se outrossim que os principais pronunciamentos da Igreja editados nos últimos decênios  têm evitado sistematicamente o uso do termo Co-redentora. Assim sejam citadas a Constituição Munificentissi­mus Deus (1950) e as encíclicas Fulgens Corona (1950) e Ad Caeli Regi­nam (1954) de Pio XII; a Constituição Lumen Gentium do Concílio do Vati­cano II (1964); as Exortações Apostólicas Signum Magnum (1967) e Marialis Cultus (1974) de Paulo VI e a encíclica Redemptoris Mater (1987) de João Paulo II. Todos estes textos davam ocasião a que se mencionas­se o título de Co-redentora, mas observou-se absoluto silêncio a respeito. Ora, se tal tem sido a orientação do magistério, pode-se entender que nos dias atuais o mesmo hesite em proceder à definição solene de tal título.

4. Ao invés de Coredenção, pode-se falar, sem os mesmos riscos de ambigüidade e desvios doutrinários, de Cooperação de Maria na obra da salvação do gênero humano. Tal vocábulo se encontra em Lumen Gentium nº 53. 56. 61. 63. Já S. Agostinho utilizava o termo cooperatio em sua obra De Sancta Virginitate 6. O Papa João Paulo II, em sua catequese de 6/4/1997, falou amplamente da cooperação de Maria na obra da salvação.

Em lugar de Medianeira, recomenda-se o recurso ao título de Mãe de Deus (Theotókos) e Mãe dos homens (cf. Jo 19, 25-27): Jesus quis confiar o gênero humano à tutela e à intercessão de Maria Ssma. (cf. Lumen Gentium nº 53-56.58.61.63.65.67.69). Na qualidade de Mãe, Maria intercede em favor dos homens desde a sua gloriosa Assunção até a consumação da história da humanidade, como se lê na seguinte passa­gem da Lumen Gentium:

“A maternidade de Maria na dispensação da graça perdura ininterruptamente a partir do consentimento que ela fielmente prestou na Anun­ciação, que sob a Cruz ela resolutamente manteve e manterá até a perpé­tua consumação de todos os eleitos. Assumida aos céus, não abandonou esta salvífica função, mas por sua multíplice intercessão continua a gran­jear-nos os dons da salvação eterna. Por seu maternal amor cuida dos irmãos do seu Filho que ainda peregrinam rodeados de perigos e dificuldades, até que sejam conduzidos à feliz pátria.

Por isto e Bem-aventurada Virgem Maria é invocada na igreja sob os títulos de Advogada, Auxiliadora, Protetora, Medianeira. Isto, porém, se entende de tal modo que nada derrogue, nada acrescente à dignidade e eficácia de Cristo, o único Mediador.

Com efeito; nenhuma criatura jamais pode ser colocada no mesmo plano com o Verbo Encarnado e Redentor. Mas, como o sacerdócio de Cristo é participado de vários modos seja pelos ministros, seja pelo povo fiel, e como a indivisa bondade de Deus é realmente difundida nas criaturas de maneiras diversas, assim também a única mediação do Redentor não exclui, mas suscita nas criaturas uma variegada cooperação, que participa de uma única fonte.

A Igreja não hesita em proclamar essa função subordinada de Maria. Pois sempre de novo experimenta e recomenda-se ao coração dos fiéis para que, encorajados por esta maternal proteção, mais intimamente dêem sua adesão ao Mediador e Salvador” (nº 62),

Posteriormente o Papa Paulo VI escrevia em sua Exortação Apostólica Signum Magnum nº 1:

“A Virgem continua agora no céu a exercer a sua função materna, cooperando para o nascimento e o desenvolvimento da vida divina em cada uma das almas dos homens redimidos. É esta uma verdade muito reconfortante, que, por livre disposição de Deus sapientíssimo, faz parte do mistério da salvação dos homens; por conseguinte, deve ser objeto da fé de todos os cristãos”.

Este texto chama a atenção por propor, não em termos de definição dogmática, mas como algo de muito lógico, a cooperação de Maria Ssma. Na obra de salvação dos homens.

De resto, deve-se frisar bem que nem todas as verdades de fé hão de ser promulgadas por definições solenes do magistério extraordinário da Igreja. O magistério ordinário, que ocorre mediante o ensinamento constante e moralmente unânime dos Bispos, é suficiente para fundamentar uma verdade ou um artigo de fé. O magistério extraordinário da Igreja (que se exprime em definições solenes) há de ser sempre extraordinário; intervém por excelência em caso de debates teológicos para dissipar heresias que ameacem o patrimônio da fé.

O Papa João Paulo II, em sua encíclica Redemptoris Mater concebe a mediação mariana como mediação materna. É por essa mediação materna que a Vigem coopera para a salvação de todos os homens.

Todas estas ponderações estavam presentes aos teólogos que redigiram parecer sobre a solicitada definição, quando reunidos em Czestochowa, atendendo a um pedido do Papa João Paulo II. – Eis o teor de tal notícia como se encontra no jornal L’OSSERVATORE ROMANO de 24/6/1997 (edição francesa):

3.  A Declaração de Czestochowa

“Tendo a Santa Sé pedido que o XII Congresso Mariológico Internacional, que se celebrou em Czestochowa (Polônia), em Agosto 1996, estudasse a possibilidade e a oportunidade da definição dos títulos marianos de “Mediadora”, “Coredentora” e “Advogada” como determinados círculos atualmente solicitam à mesma Santa Sé, pareceu oportuno constituir uma Comissão, escolhendo quinze teólogos especificamente preparados nesta matéria, que pudessem debater juntos e analisar a questão com reflexão amadurecida. Além da sua preparação teológica, preocupou-se com a maior heterogeneidade geográfica entre eles, de maneira que os seus eventuais consentimentos se tornassem especialmente significativos. Procurou-se ainda enriquecer este grupo de estudo, agregando-lhe como membros externos alguns teólogos não católicos presentes no Congresso. Assim chegou-se a uma dúplice conclusão:

Os títulos, como são propostos, resultam ambíguos, dado que podem compreender-se de maneiras muito diversas. Além disso, pareceu oportuno não abandonar a linha teológica seguida pelo Concílio Vaticano II, que não quis definir nenhum deles: não utilizou no seu magistério o título de “Coredentora”, e dos títulos “Medianeira” e “Advogada” fez um uso muito sóbrio (cf. Lumen Gentium, 62). Na realidade o termo “Co-redentora” não é utilizado pelo magistério dos Sumos Pontífices, em documentos de relevo, desde os tempos de Pio XII. A este propósito, há testemunhos sobre o fato de ele ter evitado intencionalmente o seu uso. Quanto ao título de “Medianeira”, não se deveriam esquecer eventos históricos bastante recentes: nos primeiros decênios deste século a Santa Sé confiou a três comissões diferentes o estudo da sua definição; tal estudo levou a Santa Sé à decisão de abandonar a questão.

2. Ainda que aos títulos se atribuísse um conteúdo, do qual se poderia aceitar a pertença ao depósito da Fé, a sua definição, na situação atual, não seria contudo teologicamente perspícua, enquanto tais títulos e as doutrinas que lhes são inerentes necessitam ainda de um ulterior aprofundamento numa renovada perspectiva trinitária, eclesiológica e antropológica. Enfim, os teólogos, especialmente os não católicos, demonstraram-se sensíveis às dificuldades ecumênicas que uma definição dos mencionados títulos implicaria.

A Comissão era formada pelos seguintes membros: Pe. Paolo Melada e Pe. Stefano Cecchin, respectivamente Presidente e Secretário da Pontifícia Academia Mariana Internacional; Pe. Cândido Pozo, S.I. (Espanha); Pe. Ignácio M.. Calabuig, ºS.M. (“Marianum”, Roma) Pe. Jesus Castellano Cervera, O.C.D. (“Teresianum”, Roma); Pe. Franz Courth, S.A.C. (alemanha); Pe. De Fiores R. P.. Stefano, S.M.M. (Itália); Pe. Miguel Angel Delgado, O.S.M. (México); Pe. Manuel Felício da Rocha (Portugal); Pe. Georges Gharib, melquita (Síria); Pe. René Laurentin (França); Pe. Jan Pach O.S.P.P.E (Polônia); Pe. Adalbert Rebic (Croácia); Pe. Jean Rivain (frança); Pe. Johannes Roten, S.M. (E.U.A.); Pe. Ermanno Toniolo, O.S.M. (Itália); Mons. Teofil Siudy (Polônia); Pe. Anton Ziegenaus (Alemanha); Côn. Roger Greenacre, anglicano (Inglaterra); Dr. Hans Cristoph Schmidt-Lauber, luterano (Áustria); Pe. Gennadios Limouris, ortodoxo (Constantinopla); Pe. Jean Kawak, ortodoxo (Síria); e Prof. Constantin Charalampidis, ortodoxo (Grécia)”.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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