Maria Madalena nos Evangelhos e nos Apócrifos

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Maria Madalena é citada cinco vezes nos Evangelhos; não há porquê a identificar com uma prostituta. Ocorrem nos Evangelhos quatro mulheres distintas: a pecadora anônima de Lc 7, 36-50, a mulher que acompanhava Jesus e lhe servia com as suas posses (Lc 8, 1-3), a irmã de Marta e Lázaro (Jo 12, 1-12) e a mulher adúltera de Jo 8, 1-11. Nos apócrifos de origem gnóstica e maniqueia (não cristã, porque dualista) aparece Madalena como confidente de Jesus. É desta fonte que alguns autores modernos pretendem desenvolver a figura de Jesus descrita pelos evangelistas. Esta tendência carece de todo fundamento, pois a tradição cristã é diversa no tocante a Madalena após a ressurreição de Jesus.

O romancista Dan Brown, em seu “O Código da Vinci”, focalizou Maria Madalena como pretensa esposa de Jesus e antepassada de uma dinastia de reis da França. Esta notícia, por mais estranha que seja, despertou a curiosidade de muitos leitores, sugerindo assim o aprofundamento de tal temática. É o que será feito nas páginas subsequentes.

1. Maria Madalena nos Evangelhos

A Madalena dos Evangelhos costuma ser identificada, desde o século VII com a pecadora que lavou os pés de Jesus com suas lágrimas, e com a irmã de Marta e Lázaro, pois esta ungiu os pés de Jesus com bálsamo. Ver Lc 7, 36-50; Lc 8, 1-3 e Jo 12, 1-11.

Esta identificação que faz de três mulheres uma só, hoje em dia não é aceita pelos melhores exegetas. Vejamos por quê.

1.1. A identificação da mulher de má vida (Lc 7, 36-50) com Madalena (Lc 8, 1-3) carece de base sólida

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Eis o que se lê em Lc 8, 2s: “Acompanhavam Jesus os doze e algumas mulheres que ele havia curado de espíritos imundos e de enfermidades: Maria Madalena, da qual haviam saído sete demônios, Joana, mulher de Cuza, mordomo de Herodes, Suzana e muitas outras, que lhe ministravam com seus bens”.

Detenhamo-nos sobre Maria Madalena.

O nome “Maria” era muito comum no povo de Israel; tenha-se em visto Jo 19, 25, onde se lê que, dentre quatro mulheres, três se chamavam Maria. A predileção por tal nome talvez se deva ao fato de que a irmã de Moisés se chamava Maria (cf. Ex 15, 20), tornando célebre o respectivo nome.

Daí o uso de um aposto para diferenciar as Marias; esse aposto podia ser o lugar de origem, que, no caso, era Mágdala, povoado situado à margem ocidental do lago da Galiléia, 5 km ao norte da cidade de Tiberíades. É assim que se explica o nome “Maria Madalena”.

O fato de ter sido possuída por sete demônios não quer dizer que fosse necessariamente uma grande pecadora. Nos Evangelhos, a filha da mulher siro-fenícia em Mc 7, 29s era possessa, mas pode-se crer, pelo contexto, que era doente; o mesmo se diga do jovem possesso “desde a infância” (Mc 9, 21): a criança não tem a responsabilidade necessária para cometer pecado grave (como se crê). Sabe-se, de outro lado, que as doenças eram atribuídas aos demônios (cf. 2Cr 16, 12); “sete demônios” (número de plenitude) significariam doença muito grave. Na base destas considerações pode-se dizer que Maria Madalena não era a pecadora que a posteridade imaginou.

1.2. As demais ocorrências de Maria Madalena nos Evangelhos

Em quatro outras passagens aparece Maria Madalena nos Evangelhos, a saber:

Mc 15,40: Madalena, com outras mulheres, contemplava Jesus atormentado na Cruz.

Mc 15,47: “Maria de Mágdala e Maria, mãe de José, observavam onde depositaram Jesus descido da Cruz”.

Mc 16,1: “Passado o sábado, Maria de Mágdala, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram perfumes para embalsamar Jesus”.

Jo 20, 1-18: No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo logo de manhã. Recebeu então de Jesus a ordem de ir anunciar aos Apóstolos a Boa-Nova da Ressurreição. “Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: ‘Vi o Senhor'”.

Como se percebe, Madalena aparece nos Evangelhos em situações que lhe merecem honra. Como então pôde ser desfigurada em prostituta?

Leia também: Qual a importância dos evangelhos apócrifos?

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1.3. Os Equívocos

O aviltamento da figura de Maria Madalena começa pela falsa identificação com a mulher de má vida apresentada em Lc 7, 36-50. Ter sete demônios parecia indicar grave situação de pecadora. Quando Jesus a terá libertado desses maus espíritos? – A resposta parecia estar em Lc 7: a mulher caiu em prantos aos pés de Jesus, arrependida de seus pecados e recebeu do Senhor o perdão; este episódio ocorrido em casa de Simão o fariseu é colocado por Lucas logo antes da apresentação de Madalena em Lc 8; daí a fusão das duas mulheres na imagem de uma pecadora agraciada chamada Maria Madalena.

Ora tal fusão é gratuita S. Lucas fez questão de guardar o anonimato da mulher de má vida. Seja respeitada a delicadeza do evangelista!

A seguir, visto que em Jo 12, 1-12 aparece uma mulher chamada Maria a ungir os pés de Jesus com bálsamo, identificaram-na com Maria Madalena, de modo que a irmã de Marta e Lázaro passou a ser a pecadora convertida Maria de Mágdala. Todavia verifica-se que tal identificação é artificial, pois a pecadora de Lc 7 banha os pés de Jesus com lágrimas e só depois disto os unge com bálsamo, ao passo que a irmã de Lázaro não chora, mas aplica diretamente os seus perfumes.

Por não levar em conta tais pormenores, vários autores chegaram a identificar Madalena ainda com uma terceira mulher, ou seja, com a pecadora adúltera de Jo 7, 53 e mais… com a samaritana de seis maridos ocorrente em 4, 17s…!

Por conseguinte tem razão a moderna exegese ao reabilitar Maria Madalena, isentando-a da nódoa de prostituta.

Passemos agora ao estudo da tradição relativa a Maria Madalena.

2. Maria Madalena na Tradição

Distinguiremos a tradição cristã e a tradição gnóstica.

2.1. Tradição cristã

Eis o que refere o famoso hagiógrafo Butler em sua obra “Vida dos Santos”, t, VII (22 de julho):

“Segundo a tradição oriental, Maria Madalena, depois de Pentecostes, acompanhou Nossa Senhora e S. João até Éfeso, onde veio a falecer e foi enterrada. O peregrino inglês S. Vilibaldo teve a oportunidade de ver, lá, o seu túmulo, em meados do século VIII. Todavia, de acordo com a tradição da França, no Martirológio Romano, e conforme a concessão de diversas festas locais, ela, junto com Lázaro, Marta e outros, evangelizaram a Provença. Os últimos trinta anos de sua vida, segundo se afirma, ela os passou numa gruta formada por rochas, La Sainte Baume, no alto dos Alpes Marítimos, sendo transportada milagrosamente, instantes antes da morte, para a capela de S. Maximino. Ela recebeu os últimos sacramentos das mãos deste santo, sendo por ele enterrada”.

A referência mais antiga que se conhece a respeito da vinda desses cristãos orientais até a França é do século XI, em conexão com as relíquias de S. Maria Madalena, reivindicadas pela abadia de Vézelay, na Burgúndia. A formulação da história parece ter-se espalhado pela Provença somente durante o século XIII. A partir de 1279, as relíquias de Maria Madalena, segundo consta, estão sob a custódia dos monges de Vézelay e dos frades dominicanos de Saint-Maximin, sendo ainda muito popular a peregrinação que se faz até o túmulo da Igreja desses últimos e à gruta de La Sainte Baume. Todavia, a pesquisa, especialmente por parte de Mons. Duchesne, demonstra, cada vez mais claramente, que nem as relíquias nem a história da viagem dos amigos de Nosso Senhor até Marselha podem ser consideradas autênticas. Apesar da defesa que fazem os que estão piedosamente interessados em favor da crença local, não se pode pôr em duvida que toda a história não passa de pura ficção.

Entre os outros contos curiosos e sem fundamento sobre a santa, existentes na Idade Média, está aquele que afirma que ela era noiva de S. João Evangelista, quando Cristo o chamou para ser seu discípulo. “Com isso, ela ficou indignada por ver seu noivo arrebatado dela e partiu entregando-se a toda sorte de deleites. Mas, porque não convinha que o chamamento de S. João servisse de ocasião para a sua condenação, Nosso Senhor, em misericórdia, a converteu à penitência, e, por tê-la privado do supremo deleite da carne, recompensou-a com o supremo deleite espiritual, acima de todos os demais, isto é, o amor a Deus (Legenda Áurea)”.

2.2. Tradição gnóstica

Em PR tem sido publicadas algumas explanações do que é o gnosticismo. É um sistema dualista não cristão, pois repudia a matéria, que, segundo o Cristianismo, foi criada por Deus. Propagava suas idéias por meio de escritos semelhantes aos livros da Bíblia, de modo que são chamados escritos apócrifos gnósticos.

Dentre esses escritos destaca-se, no nosso caso, a Pistis Sophia (Fé Sabedoria), obra na qual Madalena desempenha papel importante. Com efeito, de 46 questões 39 dão o predomínio às perguntas e aos dizeres de Madalena. É a interlocutora privilegiada do Senhor, dita “bem-aventurada, herdeira da luz, Maria pura e cheia do Espírito…”. Interroga Jesus com firmeza e segurança, levando Jesus a responder-lhe com grande alegria. Prostra-se aos pés de Jesus, que ela adora e oscula. Jesus proclama: “Maria Madalena e João o Virgem serão superiores a todos os discípulos”.

O filósofo Celso (século II) fala dos “discípulos de Mariamme”, tal é a importância que a ela cabe.

No Evangelho segundo Filipe (séc. III/IV “Madalena é a mais importante das três mulheres” que caminhavam sempre com Ele: Maria, a mãe de Jesus, outra Maria, irmã de Maria Ssma., e Madalena, pois esta é, para Jesus, irmã, mãe e companheira).

Existe o Evangelho de Maria (Madalena) datado provavelmente do século II. Aí Madalena incentiva os Apóstolos a pôr em prática as palavras do Senhor e lembra-lhes a assistência permanente que Ele lhes prometeu, Pedro pede-lhe que dê a conhecer aos Apóstolos as palavras de Cristo. Então relata ela uma longa visão de Jesus, que lhe disse: “Bendita és tu, porque não hesitaste quando me viste”. Perante André e Pedro, pouco dispostos a crer, Levi toma a defesa de Madalena: “Se o Senhor a julgou digna, quem somos nós para rejeitar? O Salvador, sem dúvida, a conheceu muito bem. Eis por que Ele amou a ela mais do que a nós”. Maria Madalena aparece assim como a mediadora e mensageira da doutrina gnóstica: ela é colocada acima dos Apóstolos.

Como se vê, o ponto de vista é totalmente diverso do da literatura apócrifa cristã, que conserva a hierarquia “Jesus – Apóstolos”, como também difere das estórias que se contavam sobre Madalena após a ressurreição de Jesus.

2.3. Tradição maniqueia

O maniqueísmo é outro sistema dualista, que os cristãos tiveram de enfrentar nos seus primeiros séculos.

Apresenta o Salmo de Heráclito, comentário poético de Jo 20, 17:

“Maria, Maria, reconhece-me e não me detenhas. Prende as lágrimas dos teus olhos e reconhece que eu sou o teu Mestre. Só te peço que não me detenhas, pois ainda não vi a face do meu Pai”. Jesus confia-lhe a missão de reunir seus Apóstolos, “órfãos errantes”. Ao que Maria respondeu: “Rabi, meu Mestre, cumprirei tuas ordens com alegria e de todo o meu coração”. Glória e vitória à alma da bem-aventurada Maria. “O espírito da Sabedoria escolheu Maria”.

Numerosos outros salmos maniqueus aparecem dedicados a Madalena.

Resta investigar as razões pelas quais Maria Madalena desempenhou papel tão saliente nesses ambientes gnósticos e maniqueus. Será tarefa árdua, pois não há muitos pontos de referência para o pesquisador nesse campo de trabalho.

2.4. Outras lendas

Existem outras lendas que desenvolveram o pensamento gnóstico a respeito de Jesus e Maria Madalena.

Com efeito, uma dessas lendas afirma que Jesus se casou com Madalena por ocasião das bodas de Cana (cf. Jo 2, 1-12), quando Jesus transformou a água em vinho – o que é inaceitável, visto que Jesus e o noivo se distinguem claramente um do outro nesse episódio.

A insistência dessa corrente inspirada pelo gnosticismo na tese de que Jesus era casado, se explica, segundo autores modernos, pelo fato de que os judeus não podiam conceber que um homem sadio e normal não se casasse; por conseguinte terão feito de Jesus o esposo de Madalena aos trinta anos ou no começo de sua vida pública. Não é necessário demonstrar longamente quão inconsistentes são tais proposições.

Mais ainda: a lenda diz que Madalena se retirou para o Sul da França levando consigo dois preciosos valores:

– o Santo Graal ou o cálice que Jesus terá usado na última ceia ou, segundo outra versão, o cálice que recolheu as gotas de sangue de Jesus pendente da Cruz. As divergências dessas estórias já contribuem para insinuar o seu caráter lendário;

– o filho que Madalena terá tido com Jesus e que se terá tornado o fundador de uma dinastia de reis da França. – Vale aqui mais uma vez registrar o caráter fantasioso e irreal dessa narrativa.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº 530 – Ano 2006 – p. 341

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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