Liturgia da Palavra: “Vós sois o sal da terra… Vós sois a luz do mundo”

Por Dom
Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração

SÃO PAULO,
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia do
próximo domingo – V do Tempo Comum Is 58, 7 -10; 1 Cor 2, 1-5; Mt 5, 13
-16 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da
Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia
pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge
beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, sempre às
quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.

* * *

V DOMINGO
DO TEMPO COMUM

Leituras: Is
58, 7 -10; 1 Cor 2, 1-5; Mt 5, 13 -16

“Não vi
nenhum templo nela (na nova Jerusalém), pois o seu templo é o Senhor, o Deus
todo poderoso, e o Cordeiro. A cidade não precisa de sol ou da lua para
iluminar, pois a glória de Deus a ilumina, e sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21,
23) 

O profeta
do Apocalipse nos faz contemplar a santa cidade de Jerusalém que, no
cumprimento escatológico da sua história, brilha da luz do próprio Senhor, e
quase que se identifica com ele mesmo, partilhando do seu esplendor. Seus
habitantes, resgatados pelo sangue do Cordeiro imolado e vivente, ficam em
relação de total adesão ao próprio Senhor e irradiam a vida dele, sua glória e
sua luz. A cidade dos homens coincide ao final com a cidade de Deus. O futuro
prometido e esperado através de tantas promessas divinas, ansiedades e
provações, está finalmente presente. 

Até o
símbolo mais sagrado da presença e do compromisso de Deus para com seu povo
peregrino na história, o templo da Jerusalém terrestre, desaparece deixando o
lugar à sua realidade, que é a presença de Deus penetrada na vida cotidiana do
povo. Praças, ruas e lares coincidem com o templo, pois a vida dos habitantes
da cidade santa corresponde à aliança para com Deus, e nesta correspondência
entre vida e chamado de Deus realiza-se o verdadeiro culto ao Senhor. Ele é a
luz que ilumina e orienta a vida dos habitantes da nova Jerusalém, e eles se
tornam seu templo vivo. 

No centro
do “novo céu e da nova terra”, símbolo da renovação messiânica universal,
preanunciada pelos profetas (Is 65,17) e realizada plenamente em Cristo,
abrangendo pessoas e a criação inteira, está a nova Jerusalém, a esposa do
Cordeiro, enfeitada por ele mesmo para a festa das núpcias. O ideal do êxodo é
finalmente atingido: “Vi também descer do céu, de junto de Deus, a cidade
santa, a Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu
marido” (Ap 21, 2).

Sonhos,
fantasias? Fuga da ambígua e dura realidade do presente, à procura de consolo
no imaginário? Quanta luz, esperança e força interior, projeta no precário
caminho da história presente do povo de Deus esta visão da fé que antecipa a
realidade escatológica que agora fica escondida no ventre materno da própria
história! Ao longo dos séculos, ideologias filosóficas e políticas, e até
intuições religiosas, não pouparam esforços para propor perspectivas de
justiça, harmonia e paz que respondessem ao profundo anseio humano de plenitude
da vida e da felicidade. Promessas messiânicas de auto-salvação. Com certeza
algumas delas ajudaram numa certa medida o homem a fazer um trecho do caminho,
mas muitas vezes falharam ao alcançar o objetivo principal prometido, e se
transformaram em novas formas de escravidão humana e espiritual. É suficiente
lembrar a dramática história do século vinte e das suas principais ideologias!
 

Mas mesmo
as práticas religiosas não conseguem escapar ao risco da ilusão, – nos admoesta
o profeta Isaías (1 leitura) – quando a elas não corresponde uma vida que
assuma os horizontes e o estilo de Deus, que é a prática da justiça, o cuidado
pelos necessitados e a dedicação em favor dos mais frágeis. “Assim diz o Senhor:
Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos. Quando
encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne. Então brilhará tua luz
como aurora…. a frente caminhará tua justiça e a glória do Senhor te
seguirá” (Is 58,7-8). “O caminho do justo – canta a LH do comum dos
santos homens – é uma luz a brilhar: vai crescendo da aurora até o dia
mais pleno”.

Uma vida
que se deixa inspirar pelo estilo de Deus, é um caminho de profunda experiência
da presença transformadora de Deus e de libertação. Ela está em continuidade
com a saída do povo de Deus do Egito, quando o próprio Senhor guiava no deserto
seu caminho para a terra prometida com a nuvem de dia e com a coluna de fogo de
noite (cf. Ex 13,21). O dom da aliança e da Torá, deviam tornar permanente a
luz oferecida por Deus, para guiar o povo na estrada da felicidade e da vida e
construir uma sociedade digna dos filhos e das filhas de Deus. 

É
impressionante o oráculo, cortante como uma espada, de todo o capítulo 58 de
Isaías, o qual destaca a contradição em que vivem os chefes e o povo no que diz
respeito à aliança e à Torá. Reclama a interiorização das práticas religiosas,
segundo o espírito da aliança, como já tinham admoestado os grandes profetas
antecedentes. A trágica experiência do exílio tinha colocado a nu a
inconsistência de uma religiosidade, satisfeita com os aspectos exteriores, mas
desprovida de autêntica experiência de Deus e de compromisso solidário com os
irmãos. Da experiência do exílio nasce em Israel uma nova espiritualidade
profundamente renovada.

Talvez, na
misteriosa Providência divina, nós também hoje tenhamos de tirar proveito da
experiência purificadora da secularização da sociedade contemporânea, como o
Israel do exílio, para abrir os olhos sobre a fragilidade de uma religiosidade
às vezes superficial, e abrir os ouvidos à voz do Espírito, para fundamentar
nossa fé em maneira mais profunda e coerente.  

A mensagem
do profeta antecipa as cortantes posições do Novo Testamento: Jesus identifica
a si mesmo com os necessitados (cf. Mt 25, 40 ), Paulo, enraíza a exigência de
um novo estilo de vida dos discípulos na experiência pascal de Jesus através do
batismo (cf. Rm 12, 1-2; Cl 3, 1-4). Thiago reivindica a caridade operosa como
sinal da autenticidade da fé (cf. 2, 14-17), assim como João vai repetindo nas
suas cartas que “Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é
amor” (1 Jo 3, 8).

A Igreja
está plenamente consciente que o dinamismo transformador e iluminador vem do
próprio Senhor. É a razão porque cada ano continua celebrando, em maneira nova,
o mistério da luz de Cristo que brilha nas trevas e ilumina o caminho da
humanidade. Toda a liturgia do Tempo de Natal-Epifania foi uma proclamação e
uma celebração desta fé, feita com riqueza de textos bíblicos e litúrgicos, de
cantos e ritos, e de alegria. Qual energia divina esta liturgia libertou dentro
de nós? Quais compromissos ela suscitou, nos quais consiga irradiar-se a luz
que nos atingiu?

“O povo que
andava na escuridão viu uma grande luz… Fizeste crescer a alegria e
aumentaste a felicidade…” (Is 9, 1-6). As luzes que iluminaram as igrejas
assim como as pequenas capelas das comunidades, e mesmo os arranjos luminosos
das ruas das cidades e dos lares familiares, não deveriam apagar-se no
vencimento da programação dos dias festivos.

A Igreja
está ciente de quão complicado seja o coração do homem e da mulher. A
celebração da luz manifestada na fragilidade da carne de Jesus se faz uma
invocação, para que ela nos acompanhe além da festa do Natal: “Ó Deus, que
fizestes resplandecer esta noite santa com a claridade da verdadeira luz,
concedei que, tendo vislumbrado na terra este mistério, possamos gozar no céu
sua plenitude” (Natal- Missa da noite, Oração do dia).

Ter os
olhos fixos para Cristo, verdadeira luz, nos proporciona a capacidade de julgar
e gozar em maneira correta das tantas luzes que hoje brilham no caminho dos
homens e das mulheres, mesmo fora do tempo das festas natalinas. 

Luzes que
deixam brilhar o amor de quem tem cuidado com ternura dos que estão na dor, no
abandono, no desespero, fora dos holofotes da publicidade, escondidos nos
apartamentos, nos hospitais, nas sombras obscuras das ruas super-iluminadas da
cidade. 

Luzes dos
escritórios e das lojas, acesas sem interrupção, testemunhas mudas do homem que
fica empenhado sem parar na construção do próprio presente e do próprio futuro
com suas próprias mãos.

Luzes que
às vezes se apresentam como alternativas definitivas na busca do sentido e da
felicidade da vida, nos brilhantes shopping centers, as novas “catedrais”
das metrópoles modernas, que atraem multidões ao novo culto da cobiça pelas
mercadorias de todo tipo, expostas com abundância nas vitrines.

Luzes e
sombras, autenticidade e aparências, se misturam no dia a dia e parecem
refletir-se umas nas outras. Babilônia e Jerusalém se cruzam. Somente o olho
dos que “vivem na luz” do Senhor pode distinguir uma da outra e ajudar a cidade
dos homens a tornar-se um pouco mais cidade de Deus desde já, na medida em que
se torna mais autenticamente humana. 

A afirmação
de Jesus no evangelho de hoje,”Vos sois a luz do mundo… assim também brilhe a
vossa luz diante dos homens para que vejam as vossas boas obras e louvem o
vosso Pai que está nos céus…” (Mt 5,14.16), pressupõe a experiência da
autêntica relação pessoal com Cristo, a qual fundamenta o testemunho: “Eu
sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da
vida” (Jo 8,12). Essa relação transforma a pessoa e permite ao discípulo
assumir os mesmos pensamentos e as mesmas atitudes de Jesus na própria vida. O
processo da relação com Jesus, origem de luz verdadeira, coincide com o
processo de conversão ao Senhor, conversão que jamais se poderá dizer
plenamente terminada.

Se faltar
esta experiência transformadora e luminosa do Senhor, onde o discípulo poderá
haurir e partilhar o “sabor do sal” da vida cristã? 

A Igreja do
Concílio Vaticano II fez a escolha de voltar a confrontar-se e a mergulhar-se
novamente na relação com Cristo, seu Senhor, “Luz dos povos”, para tornar-se
mais capaz de irradiar a boa-nova do amor do Pai, para os homens e as mulheres
do mundo contemporâneo (Constituição Lumen Gentium 1). Convida-nos a
entrar no mesmo processo. Convida-nos a pegar nas mãos, com renovada
consciência, a vela que recebemos no batismo, acendida no círio pascal, para
que nos ponhamos a caminho, nesta que é uma vigília pascal que não acaba nunca,
caminhando juntos com nossos irmãos e irmãs. Ninguém deveria se subtrair a esta
humilde e fascinante peregrinação noturna, que nos encaminha rumo à luz plena e
definitiva da Jerusalém celeste.

“Nada mais
frio do que um cristão que não se preocupa com a salvação dos outros…. Cada
um de nós tem a possibilidade de ajudar ao próximo, se quiser cumprir os seus
deveres…. Se o fermento, misturado à farinha, não fizer crescer a massa, terá
tido fermento verdadeiro? Se o perfume não espalhar sua fragrância, ainda o
chamaremos perfume? Não digas que és incapaz de influenciar os outros. Se fores
cristão, é impossível que não o faças” (São João Crisóstomo, Homilia
20,4; LH, Comum dos Santos Homens).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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