Ler a Sagrada Escritura

biblia12-300x225“Afinal de contas, convém ou não ler e mandar ler a Sagrada Escritura? Certas páginas do Antigo Testamento não se poderiam tornar nocivas?”

Não há dúvida, a leitura das Sagradas Letras merece ser amplamente fomentada. E porque?

1) A Sagrada Escritura é, por definição, o Livro inspirado por Deus (isto não quer dizer que Deus tenha revelado aos autores bíblicos verdades novas, mas, sim, que iluminou a mente dos mesmos a fim de que, aludindo aos elementos deste mundo segundo o modo de pensar e falar dos orientais antigos, transmitissem fielmente verdades religiosas).

A Sagrada Escritura é, por conseguinte, a palavra de Deus tornada palavra do homem, fazendo eco ao mistério da Encarnação, pelo qual Deus se uniu à natureza humana.

Tal prerrogativa compete somente à Bíblia, ficando todos os demais escritos, os mais piedosos e eruditos, aquém dessa dignidade; os santos e doutores escreveram bem porque se nutriram copiosamente da Sagrada Escritura.

A mencionada prerrogativa faz que a Bíblia seja um sacramental, isto é, objeto sagrado que comunica a graça a quem o usa com fé e amor a Deus. Disto se segue importante conclusão: a leitura do livro sagrado é frutuosa, não exatamente na medida em que o entendemos com nossa capacidade natural, mas na medida da fé e das disposições sobrenaturais com que lemos. Há inegavelmente trechos obscuros na Bíblia: torna-se então oportuno perscrutar o seu significado mediante o uso de comentários  e estudos, mas, mesmo que não se possa fazer isto ou não se chegue à plena compreensão, não fica  vã a leitura da Bíblia, pois tais passagens santificarão, procurando entrar em comunhão com a Palavra e a Vida de Deus. É São João Crisóstomo (+ 407) quem ensina:

“Quem se entrega a uma leitura atenta (dos santos Evangelhos) é como que introduzido num templo sagrado, é iniciado nas coisas de Deus; purificado, torna-se melhor, pois Deus lhe fala por aqueles escritos.

Que acontecerá, dizem, se não entendemos o que os livros (sagrados) contêm? Mesmo que não compreendas o que neles está depositado, lucras grande santificação pela leitura mesma (…).

Se nem pela assiduidade da leitura chegares a compreender o que está escrito, procura alguém mais sábio, vai ter com um mestre (…) manifesta teu grande desejo. Quando Deus te vir movido por tão ardente anelo, não desprezará tua vigilância e solicitude; e, ainda que não haja homem capaz de te explicar o que procuras. Ele mesmo certamente o revelará a ti. Lembra-te do eunuco da rainha da Etiópia (cf. At 8,30s)

É impossível, é impossível, digo, que alguém fique sem fruto se se dá zelosamente à leitura atenta e frequente das Escrituras” (De Lazaro, serm. 3,2s).

2) A autoridade dos Sumos Pontífices, corroborando estas ideias, tem mais e mais recomendado a leitura da Bíblia. Eis como se exprimia S.S. o Papa Pio XII na encíclica “Divino Afflante Spiritu”:

“Surge espontânea a convicção de que os fiéis e particularmente os sacerdotes têm o grave dever de aproveitar larga e santamente aquele tesouro (da exegese católica) acumulado durante tantos séculos pelos maiores talentos. Deus não deu aos homens os Livros Santos para satisfazer a sua curiosidade ou para lhes fornecer matéria de estudo e investigação, mas (…), para que estes divinos oráculos nos pudessem “instruir para a salvação pela fé em Jesus Cristo” (cf. 2 Tim 3,15). Portanto os sacerdotes que por ofício devem procurar a eterna salvação dos fiéis, depois de terem estudado diligentemente as sagradas páginas e as terem assimilado com a oração e meditação, distribuam com o devido zelo nos sermões, homilias e práticas as celestes riquezas da Divina Palavra; confirmem a doutrina cristã com sentenças dos Livros Santos, ilustrem-na com os preclaros exemplos da História sagrada, nomeadamente do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo; e tudo isto – evitando diligente e escrupulosamente as acomodações arbitrárias e estiradas, verdadeiro abuso e não uso da Divina Palavra; exponham-na com tal facúndia e clareza, que os fiéis não só se movam e afervorem a melhorar a própria vida, mas concebam suma veneração para com a Sagrada Escritura”.

Já Bento XV recomendava em 1920:

Vê-se neste trecho como o Sumo Pontífice insinua um paralelo entre a comunhão eucarística e a comunhão com a Palavra de Deus; assimilando as verdades contidas na Bíblia, o cristão fiel assimila, sim, a Vida Eterna.

A leitura da Bíblia foi mesmo enriquecida de indulgências:

“Aos fiéis que, ao menos durante um quarto de hora, lerem como leitura espiritual os livros da Sagrada Escritura com a suma veneração que se deve à Palavra de Deus, é concedida a indulgência de 300 dias” (S. Penitenciaria Apost., 22 de março de 1932).

Mas dir-se-á: a Bíblia contém narrativas que obviamente são pouco edificantes, podendo tornar-se mesmo nocivas a pessoas simples.

– Não se afirmará que a Bíblia só contém histórias de homens virtuosos, à semelhança de certas “Vidas de Santos” modernas; nem foi para nos dar um repertório de casos edificantes que o Espírito Santo se dignou inspirá-la. Não será, pois, com a preocupação de ler exemplos de virtude humana que abordaremos o texto sagrado. Outra deverá ser a nossa atitude, a qual decorrerá das seguintes considerações:

A Bíblia quer narrar a história das relações dos homens com Deus, fazendo tudo convergir para a idéia do Messias ou Redentor. Ora os homens com os quais o Senhor quis entrar em intercâmbio mais íntimo (isto é, o povo de Israel, destinado a guardar fé monoteísta em meio ao politeísmo), se comportaram sempre como homens, filhos de Adão ou do pecador, inclinados ao mal, à infidelidade mais ou menos grosseira. Deus não quis corrigir instantaneamente essa natureza desregrada dos homens, por mais elevadas que fossem as tarefas a eles (Abraão, Isaque, Jacó, Davi, Salomão…) confiadas; permitiu simplesmente que o homem “reagisse” aos dons de Deus como pedia, isto é, sem evitar as falhas e os escândalos decorrentes da miséria humana. Contudo, permitindo isto, Deus quis sempre mostrar-se “maior do que o mesquinho coração humano” (cf. 1 Jo 3, 20); onde a miséria abundava, a misericórdia superabundava (cf. Rom 5,20); assim a Bíblia nos apresentava a história do homem que destrói e de Deus que reconstrói pacientemente a sua obra. Não é, pois, no aspecto sinistro, humano, das narrativas bíblicas que devemos fixar a nossa atenção; tal aspecto constitui apenas o fundo sobre o qual mais deve sobressair a Bondade magnânima do Criador; e é a esta que o cristão deve considerar e admirar em qualquer das páginas “escandalosas” do Antigo Testamento. – O Espírito Santo, não encobrindo tais episódios, tinha unicamente em mira mostrar-nos mais o contraste entre a grandeza de Deus e a pequenez do homem que o Redentor veio salvar. A indignidade da parte das criaturas (mesmo das que são chamadas às mais elevadas funções no Reino de Deus) não nos deve surpreender, mas o que surpreende é, sem dúvida, a condescendência, a caridade inesgotável do Senhor para com a sua criatura. Estendidas desta forma (que é a única autêntica), também as passagens aparentemente mais escabrosas da Escritura dão seus frutos de edificação e união com Deus. Saiba, pois, o cristão colocar-se nesta perspectiva e já não hesitará em ler o Livro sagrado; olhe para Deus e a obra da misericórdia mais do que para o homem e o seu pecado. E esteja sempre lembrado de que não terá sido por pouca coisa que Deus se quis “abalar”, inspirando as páginas da Bíblia.

Do que foi dito se depreende que não seria consentâneo com o Espírito de Deus querer restringir a leitura da Sagrada Escritura ao Novo Testamento apenas; também as páginas do Antigo Testamento foram inspiradas para proveito e consolo dos cristãos que as leiam das ideias acima indicadas (cf. Rom 15, 4). De resto, não há quem leia com entendimento os Evangelhos ou São Paulo e não se sinta impelido a procurar conhecer no Antigo Testamento o fundo doutrinário e histórico do qual depende qualquer página do Cristianismo.
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Esclarecimentos mais pormenorizados sobre textos difíceis do Antigo Testamento, podem-se encontrar no livro de E. Bettencourt, Para entender o Antigo Testamento. Editora AGIR 1956.

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 4 – Ano 1958 – p. 142

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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