Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 309 – Ano 1988 – Pág. 50
por François Dreyfus
Em síntese: O livro acima aborda candente problema usando metodologia nova neste setor. Com efeito; em vez de partir dos fatores da questão para procurar a solução respectiva, parte de uma solução hipotética e procura verificar se ela explica devidamente os elementos em questão. Assim Dreyfus supõe que o quarto Evangelho, apresentando-nos um Jesus consciente de sua Divindade, diga plenamente a verdade (como o próprio São João professa dizê-la); e investiga se tal solução corresponde realmente àquilo que deve ter sido a história da pregação de Jesus e dos Apóstolos. A conclusão é positiva; Jesus, diz Dreyfus, ter-se-ia reconhecido integralmente na imagem que S. João dele nos apresenta.
O livro é meticuloso e preciso; considera a difícil questão da ciência e da consciência de Jesus mediante o genuíno instrumental, que são os dados da própria Escritura e da Tradição da Igreja.
O autor merece aplausos; é antigo aluno da Escola Politécnica de Paris e professor na famosa Ecole Biblique de Jerusalém. A obra em foco foi coroada pela Academia Francesa, dado o rigor de sua lógica e a riqueza de sua documentação.
O Pe. François Dreyfus é dominicano, ex-aluno da Escola Politécnica de Paris e professor de Teologia Bíblica na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém desde 1968. Aborda no livro “Jesus sabia que era Deus?”¹ a candente questão da ciência e da consciência humanas de Jesus. Nos últimos decênios o assunto tem sido considerado com o instrumental da psicologia moderna, que encara Jesus como se fosse mero homem ou um grande Profeta; consequentemente Jesus teria ignorado, ao menos em parte, a sua identidade pessoal e o plano do Pai a seu respeito.
Dreyfus retoma a problemática recorrendo a metodologia nova neste setor e corroborando a tese sempre afirmada durante vinte séculos na Igreja. O livro é interessante e original; associa entre si o rigor da lógica e os conhecimentos da Teologia e da Mística necessários a uma adequada penetração do problema. São estes títulos que justificam uma atenta apresentação desta obra.²
O método do autor
Para esclarecer a questão relativa à ciência e consciência de Jesus, os autores frequentemente partem dos textos do Evangelho; privilegiam os sinóticos (Mt, Mc, Lc), que apresentam um Jesus muito humano, e têm em suspeita o Evangelho de João, tido como elaboração teológica, distanciada da realidade histórica de Jesus. – Ora Dreyfus prefere seguir outro método, usual nas ciências matemáticas: em vez de partir dos fenômenos para procurar-lhes uma explicação-solução, o cientista parte de uma solução hipotética e tenta explicar os fenômenos em função da mesma; caso se encontrem as explicações necessárias, pode-se dar por confirmada a hipótese de trabalho. Foi segundo tal método, por exemplo, que o astrônomo Le Verrier descobriu o planeta Netuno.³
Assim Dreyfus resolve partir da tese que o Novo Testamento e vinte séculos de Tradição cristã nos transmitiram: Jesus tinha a certeza de ser Deus, Filho de Deus. E Ele manifestou esta convicção mediante ensinamentos e feitos. Destes dados se deriva a clássica doutrina da Igreja.
Assumindo estas afirmações como “hipóteses de trabalho”, Dreyfus propõe
1) mostrar a priori (de antemão) como Jesus tinha de proceder para comunicar sua convicção aos discípulos;
2) mostrar a correspondência entre os dados do Novo Testamento (Evangelho, Epístolas) ou o modo como Jesus realmente procedeu, e a maneira como Jesus devia proceder estabelecida a priori.
Vejamos como o autor desenvolve o seu roteiro.
O arrazoado central do livro
2.1. Como Jesus devia proceder para se revelar?
Suposto que Jesus era realmente o próprio Deus feito homem e que Ele se queria revelar como tal, é preciso levar em conta os obstáculos que essa revelação devia encontrar da parte dos ouvintes judeus. – Estes eram estritamente monoteísta e infensos à idolatria (cf. Dt 6,4); a reflexão sobre Deus e sua natureza parecia-lhes sacrílega, a tal ponto que nem ousavam pronunciar o santo nome de Javé; além do mais, esperavam para breve o fim dos tempos com a exaltação política do povo de Israel e a condenação de todos os seus inimigos.
Ora, para revelar a tais ouvintes que Ele é Deus (sem quebrar o monoteísmo do Antigo Testamento)¹, Jesus tinha que proceder lentamente, observando três tempos:
1) Jesus, primeiramente, devia revelar tudo o que podia ser assimilado pela mentalidade das multidões que o ouviram; ao mesmo tempo, havia de procurar evidenciar as estreitezas dessa mentalidade e seus eventuais desvios;
2) Jesus devia formar um grupo de discípulos, que, convivendo com o Mestre, poderiam aceitar ensinamentos mais profundos, talvez à primeira vista chocantes;
3) dentro desse grupo, os mais chegados ao Mestre haveriam de receber uma doutrinação mais completa, que eles transmitiriam aos outros quando se achassem mais amadurecidos.
Poder-se-ia dizer em tom de crítica que este esquema apresenta como a priori o que não é mais do que um a posteriori; o que está subjacente a estes três estágios, é a própria história da pregação de Jesus como ela aconteceu; será que Dreyfus, ao traçar o seu esquema a priori, não se deixou influenciar pelo a posteriori? – A esta objeção responde o autor que as três etapas estabelecidas a priori não são inspiradas pela tradição evangélica, mas correspondem àquilo que a sociologia e a história das religiões afirmam a respeito das relações dos fundadores de religião com os seus discípulos e com auditórios mais amplos.
Como de fato Jesus se revelou…
Com bons exegetas, podem-se reconhecer realmente três estádios na pregação de Jesus:
Primeiro estádio: o ensino público de Jesus
Quem lê os Evangelhos, verifica que, em seu ministério dirigido às multidões, Jesus é encarado como:
a) Blasfemador
Segundo a tradição mais primitiva, Jesus era acusado de blasfêmia por seus contemporâneos, porque usurpava prerrogativas pertencentes somente a Deus. Foi, aliás, este o pretexto para que o condenassem à morte:
Mt 26,63-66: “O Sumo Sacerdote disse a Jesus: “Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos declares se és o Cristo, o Filho de Deus”. Jesus respondeu: “Tu o disseste. Aliás, eu vos digo que, de ora em diante, vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu”. O Sumo Sacerdote então rasgou suas vestes, dizendo: “Blasfemou! Que necessidade temos ainda de testemunhas? Vede: vós ouvistes neste instante a blasfêmia. Que pensais?” Eles responderam: “É réu na morte!” (cf. Mc 14,62-64; Lc-22,66-71).
Ver também:
Jo 19,7: “Os judeus responderam a Pilatos: “Nós temos uma Lei e, conforme esta Lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus”.
Mc 2,7: “Alguns dos escribas que estavam sentados, refletiam em seus corações: “Por que está falando assim? Ele blasfema! Quem pode perdoar pecados se não Deus?”.
Jo 5,18: “Os judeus, com mais empenho, procuravam matá-lo, pois, além de violar o Sábado, ele dizia ser Deus seu próprio Pai, fazendo-se assim igual a Deus”.
Jo 10, 33: “Os judeus responderam a Jesus: “Não te lapidamos por causa de uma boa obra, mas por blasfêmia, porque, sendo apenas homem, tu te fazes Deus”.
Ora a usurpação de prerrogativas divinas por parte de um judeu é fato inédito na literatura israelita; somente reis pagãos é que ousam pleitear adoração; cf. Dn 3,1-7; 6,7-9; Ez 28, 2; 2Mc 9, 12. Donde se vê que a acusação de blasfêmia só pode ter tido origem no próprio comportamento de Jesus; Este tomou atitudes que pareciam blasfemas aos seus contemporâneos.
Outra nota ocorrente na pregação de Jesus às multidões é a de
b) Jesus Legislador
No sermão da montanha (Mt 5-7), Jesus seis vezes confronta sua autoridade com a de Moisés ou a do próprio Deus: “Foi dito aos amigos… Eu, porém, vos digo…” (Mt 5,21.27.31.33.38.43). Com sua intervenção, Jesus quer aperfeiçoar a Lei outorgada pelo Senhor ao povo rude do Antigo Testamento. Assim Ele se coloca no plano do próprio Legislador ou de Deus.
Mis: Jesus convida seus discípulos a preferirem Jesus a pai, mãe, filho ou filha… (cf. Mt 10,37; Lc 14,26). Quem pode exigir de seus discípulos que o prefiram aos próprios pais e filhos se não Deus?
Ainda falando às turbas, Jesus se insinua como
c) Jesus, o Filho de Deus
Na parábola dos vinhateiros homicidas (Mc 12, 1-12; Mt 21, 33-46; Lc 20,9-19), Jesus se designa como Filho enviado aos locatários após os servos (= os Profetas). Ele se apresenta como o Filho de Deus.
Em resumo: quando se dirigia às multidões, Jesus insinuava que era maior do que todos os mensageiros de Deus anteriores. Mostrava dispor de um poder que pertence a Deus só: poder de legislar e poder de perdoar os pecados; Jesus se fazia o CRITÉRIO. Por conseguinte, tinham fundamento ao menos aparente, os ouvintes que o acusavam de blasfêmia.