Introdução ao Apocalipse (Parte 1)

Alejandro von Rechnitz

Toda
introdução ao livro do Apocalipse de João deve abordar primeiramente o
fenômeno da profecia em Israel. A apocalíptica, como gênero literário
generalizado, só apareceu em Israel depois da profecia, e quando esta
começava a cair em quase total desprestígio.
Se
definirmos profecia como o ato de falar em nome de Deus, de denunciar,
em nome de Deus, as injustiças, e anunciar, em nome de Deus, o que,
dentro do processo da salvação, viria a se estender a toda a humanidade,
facilmente nos daremos conta da relação permanente que o profetismo e a
apocalíptica possuíam como fenômenos religiosos e literários.

1. Três tipos de Profetas em IsraelComo
sabemos muito bem, houve pelo menos três tipos de profetismo em Israel.
O primeiro tipo é o daqueles que podemos chamar de “profetas 
exaltados”. Estes se caracterizavam por um frenesi extático, contagioso e
crescente (ver, por exemplo: 2 Re 9,11; Jr 29,26; Os 9,7). Tinham
visões e sonhos (ver Nm 12,6 e 8). Sentiam-se possuídos por “forças ou
espíritos”, não pela palavra de Deus. Passavam por uma preparação física
imediatamente antes de receber cada revelação (dançavam, ouviam música,
gritavam, se flagelavam, etc.). Sua mensagem se dirigia a uma pessoa
determinada, não ao povo em geral.
O
segundo é o daqueles que poderíamos chamar de “discípulos de profeta”
ou “filhos de profeta”. Caracterizavam-se por viver em comunidades,
dirigidos por um “mestre” ou “pai” (por exemplo, Eliseu; ver 2 Re 4,38;
6,1.2.12.21; 2,12). Residiam junto a um santuário (ver 1 Sm 19,8 e ss.).
Assinalavam a si mesmos por meio de tatuagens (ver 1 Re 20,38 e 41; Zc
13,6; 1 Re 18,28). Viviam segundo uma espécie de regra. Em geral tinham
moradia e alimentação muito pobres (2 Re 4,1-7). Possuíam uma fé
intransigente em Javé e independência absoluta frente à sociedade e à
economia.
O
terceiro era formado por aqueles que conhecemos como “profetas
clássicos” ou “escritores”. Caracterizavam-se por deixar em segundo
plano, o que se referisse a sua vida pessoal, ou seja, o narrativo ou
anedótico. Expressavam-se por escrito na forma hebraica de poesia e
através do gênero literário conhecido como “mensagem”. Consideravam-se
proclamadores da palavra, não se sentindo “possuídos” por espíritos ou
forças. A inspiração lhes vinha de improviso, sem qualquer preparação
técnica ou física anterior. Não transmitiam um comunicado acidental ou
pessoal, mas sim uma mensagem permanente e dirigida a todo o povo. 

2. Verdadeiros e falsos profetas
Havia
inúmeros profetas; havia profetas israelitas e estrangeiros, havia
falsos profetas e profetas verdadeiros. Quais eram os critérios
utilizados para distingui-los? A vida do profeta não constituía uma
prova. Se os que eram denunciados como falsos tivessem sido
explicitamente corruptos, enganadores ou mentirosos, não teria sido nada
difícil desmascará-los. Além disso, os profetas verdadeiros não
facilitavam o discernimento porque, para a mentalidade do povo da época,
eles não eram nenhum modelo de santidade.
Falando
de maneira mais complexa: o profeta não era falso por dizer algo
objetivamente errado ou que não se cumpriria; recordemos o caso de
Jonas, ou o de Jeremias e a invasão cita, que nunca aconteceu, ou o de
Isaías e sua profecia de morte ao rei Ezequias. Hoje, a posteriori,
sabemos muito bem quem, dentre todos os profetas mencionados na Bíblia,
era verdadeiro ou falso profeta. Contudo, sabia Jeremias que ele era
verdadeiro e que Jananías era falso? Sabia Jananías que ele próprio era
um falso profeta? (ver Jeremias 28). Sabia o povo qual dos dois era o
verdadeiro e qual o falso? 

3. Critérios de Discernimento
O
profeta verdadeiro sempre denuncia a manipulação de Deus, manipulação
que pretende domesticar ao Absoluto, ao imanipulável, na linguagem em
que fala Dele.
O
profeta verdadeiro sempre denuncia o vazio em que caem os símbolos
sagrados quando deixam de ser ponte ou um meio de comunicação com o Deus
verdadeiro.
O
profeta verdadeiro denuncia sempre a confiança supersticiosa posta nas
instituições: rei, Estado, templo, culto, lei, riqueza etc.
O
verdadeiro profeta, e este poderia ser o critério mais importante de
discernimento, está permanentemente des-instando-se e desinstalando o
povo, porque o verdadeiro profeta fala sempre em nome do Deus de Abraão e
de Moisés, um Deus nômade. O profeta, se é um profeta verdadeiro, é
incapaz de acomodar-se até em sua consciência de profeta.
Os
profetas clássicos ou escritores sempre tiveram um enorme interesse em
jamais serem confundidos com os “profetas dervises” e, num dado momento,
em sequer serem chamados de “profetas”.

 4. Ser profeta em Israel
Caso
se tratasse apenas de saber o que é que Deus queria anunciar a seu povo
como tal, não seria nada difícil ser profeta em Israel. Bastava
conhecer o dinamismo interno da história da salvação; quer dizer,
bastava conhecer o processo normal de evolução da história da salvação,
processo que repetia sistematicamente cada um de seus passos. Quais eram
os passos desse processo?
a. Deus elege seu povo e faz aliança com ele.
b. O povo peca, seguindo (prestando culto) a outros Deuses.
c. O Senhor abandona seu povo.
d. O povo é castigado pela mão de outros povos.
e. O povo se arrepende de seu pecado e clama a Deus.
f. Deus redime, liberta seu povo.
g. O povo renova sua aliança com Deus.
Bastava,
pois, saber em que passo do processo normal o povo se encontrava em
determinado momento para poder anunciar, em nome de Deus, o passo
seguinte, e assim profetizar o futuro. Quando algum profeta abandonava
esse procedimento e realizava uma profecia pontual, em geral se
equivocava (recordar o caso do grande Isaías e o rei Ezequias, em 2 Re
20,1-11).

5. Profetismo e Política
 De
onde tiramos a idéia de que os profetas não se envolviam nem deviam se
envolver em política? É verdade que os profetas não fundavam partidos
políticos, mas todos eles, praticamente sem exceção, se envolveram
continuamente em política. Mais de uma dinastia do reino do norte foi
derrubada por profetas verdadeiros, por exemplo. Se o que Samuel fez com
Saul, ao consagrar como substituto do trono a Davi, não é se envolver
em política, o que é então? Se o que Jeremias fez ao aconselhar
abertamente ao povo que não se opusesse à invasão babilônica não era se
envolver em política, a que é que devemos chamar de política? Não foi
por vontade própria, nem por casualidade que os profetas sempre viram,
como sinal da chegada dos tempos messiânicos, a destruição das armas ou
sua transformação em instrumentos de caráter agrícola (ver, por exemplo,
Is 9, 4; 2, 4; Mi 4, 3). A quantos governos ou donos de indústrias
produtoras de armas não pareceria política uma profecia assim,
atualmente? 

6. O povo de verdade e os Profetas
Se
estudarmos os profetas bíblicos nos daremos conta de que, pelo menos no
tocante a eles,  não cabe a expressão “vox populi, vox Dei” (=voz do
povo, voz de Deus). Quase infalivelmente o povo sempre seguiu os falsos
profetas. O povo real, não o povo dos discursos demagógicos, está sempre
disposto a seguir a quem lhe diz o que ele quer ouvir, a respaldar a
quem lhe enche os ouvidos com promessas mentirosas, mas agradáveis. O
profeta verdadeiro diz a verdade, recaia sobre quem recair, ainda que
recaia sobre ele mesmo.

 7. O Desprestígio da Profecia
Quatrocentos
anos antes de Cristo a profecia se desprestigiou quase que totalmente.
Por quê?, porque qualquer desequilibrado se apresentava dizendo “o
Senhor me disse tal coisa”. Porque qualquer um, certamente com boa
intenção, confundia os fenômenos de seu psiquismo profundo com
manifestações de Deus. De fato, desde quatrocentos anos antes de Cristo,
ser profeta passou a ser sinônimo, entre o povo, de “louco”, e
falava-se, com toda a naturalidade, de “babar” para dizer que alguém
profetizava (ver, por exemplo 2 Re 9, 6-11; Jr 29, 26, Os 9, 7). Como
zombaria, pois todo mundo sabia que o rei Saul havia sofrido acessos de
loucura, chegou-se a dizer, entre o povo, que ser profeta era tão fácil
que “até Saul profetizava” (ver 1 Sm 10, 11-12).
Ser
“profeta” chegou a estar tão desprestigiado que nem mesmo os
verdadeiros profetas queriam ser tidos por tal (ver, por exemplo, Am 7,
14). Os profetas verdadeiros, os que eram chamados pelo próprio Deus a
falar autorizadamente em seu nome, rechaçavam, a princípio, esse oficio
(ver, por exemplo, Êx 34, 17; Jr 20, 7-18; 1,4-10) e só o exerciam
forçados por Deus e contra sua própria vontade (o caso mais claro é o de
Jeremias, durante toda a sua vida).
O
desprestígio havia chegado a um tal extremo que, no Evangelho, João
Batista se recusa a ser tido por profeta quando já o povo inteiro o
considerava assim (ver João 1,19-27). E o próprio Jesus diz que em sua
terra ninguém é respeitado por ser profeta (ver Mt 13, 57 e Jo 7, 52 o
consigna assim) e que, na melhor das hipóteses, quem se apresentava como
profeta não era outra coisa senão um lobo rapaz (Mt 7, 15).
Com
o desprestígio quase completo dos profetas, faz sua aparição o gênero
apocalíptico. A apocalíptica veio preencher o vazio deixado na
espiritualidade judaica pelo desaparecimento dos profetas; esse vazio de
autoridade foi preenchido pelos rabinos e pelos livros apocalípticos
que, por certo, jamais foram aceitos por aqueles. Converte-se a
apocalíptica em um gênero literário a mais, como a poesia, os hinos, as
cartas, a legislação codificada, a mensagem profética, ou a crônica
histórica.
 

8. Os Apocalipses
Houve
Apocalipses de todos os tipos. Apocalipses judaicos, tais como olivro
de Enoc, ou a assunção de Moisés, ou o Apocalipse de Baruc, ou
ostestamentos dos doze patriarcas, ou algumas partes do livro de
Ezequiel, egrande parte do livro de Daniel; os manuscritos do Mar Morto
têm vários livrosou partes de gênero claramente apocalíptico.
Entre
os cristãos surgiram vários Apocalipses durante os primeirosséculos do
cristianismo. Por exemplo: um Apocalipse de Pedro, outro de Tiago,outro
de João (o único que foi incluído entre os livros canônicos da
SagradaEscritura do Novo Testamento), um Apocalipse chamado “Odes de
Salomão” e,naturalmente, algumas partes dos quatro Evangelhos canônicos
(como Mt 24; Mc 13;Lc 21, 5-33). Aqui abordaremos apenas o Apocalipse de
João, o último livro dasSagradas Escrituras.

9. Em que consiste o Apocalipse de João?
1. No ano 96 ou um pouco antes, em plenap erseguição de Domiciano, escreve-se um livro como se tivesse sido escrito ao redor do ano 68 (sob a perseguição de Nero)
2. Apresenta-se tudo o que ocorreu entre o ano 68 e o ano 96 como profecias feitas no ano 68.
3. Se tudo o que foi profetizado desde o ano 68 já ocorreu, diz-se, ocorrerá também o que falta por se cumprir: que Cristo acabará triunfando.
4. Seu objetivo é dar esperanças e forças aoscristãos e comunidades perseguidas; não devem fraquejar porque Cristo triunfará e o perseguidor desaparecerá.
5. Tudo isso se diz de forma tal que apenas os iniciados podem entender os escritos (essa a justificativa para todos os símbolos e as imagens empregados para descrever os acontecimentos).
Como
foi escrito na época e linguagem apocalípticos, atribui-se o escrito a
um autor antigo e prestigioso (não se trata – recordemos o desprestígio
da profecia – de uma profecia moderna, diz o autor).
Como
foi escrito em plena perseguição, as indicações que se dão têm
oobjetivo de despistar quem o tome entre as mãos e não tenha sido
iniciado nosentido verdadeiro. Por isso se diz que é de João, para
despistar; não é deJoão, o evangelista. Declara-se no texto que foi
escrito em Patmos; não foi escrito em Patmos. Diz-se que foi escrito
entre o ano 68 e o ano 70 por um tal”João, o ancião”, mas dá-se essa
data para despistar os perseguidores (para queiriam eles buscar, no ano
96, um autor que já era um ancião no ano 68 e que, portanto, já estaria
morto no momento da perseguição?).

10. Para quando são as revelações do apocalipse?
Tudo
o que se diz no Apocalipse faz referência “direta” ao momento em quefoi
escrito o livro (ver Ap 1, 1-3; 22, 6.7.10.12.20). No Apocalipse não há
umasó palavra sobre o ano 2000, nem sobre o presidente dos Estados
Unidos, nemsobre os computadores, ou cartões de crédito, nem sobre a
Rússia.Em todo olivro do Apocalipse há uma só profecia sobre o futuro:
Cristo triunfará e nóscom Ele.
Para o livro do
Apocalipse o fim dos tempos não está adiante, de forma que se tenha de
tentar predizê-lo ou prevê-lo. Para o livro do Apocalipse o fim dos
tempos (ou seja: o tempo último por ser definitivo, e definitivo por ser
oúltimo) chegou já com o acontecimento decisivo da morte/ressurreição
de Jesus.Para o livro do Apocalipse Deus está já aqui conosco, e a
presença de Deus entrenós é assegurada por Jesus, e não pelo templo, o
sacerdócio, ou o sacrifício.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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