Intervenção do Cardeal Joseph Ratzinger durante o Congresso dos Catequistas e dos Professores de Religião

 A nova evangelização
A vida humana não se realiza por si só. A nossa vida é uma questão aberta, um
projecto incompleto que ainda deve ser terminado e realizado. A pergunta
fundamental de cada homem é: como se realiza isto tornar-se homem? Como se
aprende a arte de viver? Qual é o caminho da felicidade?

Evangelizar significa:
mostrar este caminho. Jesus diz no início da sua vida pública: Vim para
evangelizar os pobres (cf. Lc 4, 18); isto significa: eu tenho a resposta para
a vossa pergunta fundamental; eu indico-vos o caminho da vida, o caminho da
felicidade ou melhor: eu sou esse caminho. A maior pobreza é a incapacidade de
alegria, o tédio da vida considerada absurda e contraditória. Esta pobreza hoje
está muito difundida, em formas muito diferentes, quer nas sociedades
materialmente ricas quer também nos países pobres. A incapacidade de alegria
supõe e causa a incapacidade de amar, inveja, avareza todos estes são vícios
que devastam a vida dos indivíduos e o mundo. Eis por que precisamos de uma
nova evangelização se a arte de viver permanece desconhecida, tudo o mais deixa
de funcionar. Mas esta arte não é objecto da ciência esta arte só pode ser
comunicada por quem tem a vida aquele que é o Evangelho em pessoa.

Estrutura e método na nova
evangelização

A estrutura

Antes de falar dos conteúdos
fundamentais da nova evangelização desejaria dizer uma palavra acerca da sua
estrutura e método adequados. A Igreja evangeliza sempre e jamais interrompeu o
caminho da evangelização. Celebra todos os dias o mistério eucarístivo,
administra os sacramentos, anuncia a palavra da vida a palavra de Deus,
empenha-se pela justiça e pela caridade. E esta evangelização dá frutos: produz
luz e alegria, dá o caminho da vida a muitas pessoas; há quem viva, muitas
vezes sem saber, da luz e do calor resplandecente desta evangelização
permanente. Contudo, observamos um processo progressivo e preocupante de
descristianização e de perda dos valores humanos essenciais. Uma boa parte da
humanidade de hoje não encontra na evangelização permanente da Igreja o
Evangelho, ou seja, uma resposta convincente à pergunta: como viver?

Eis por que procuramos, além
da evangelização permanente, jamais interrompida e que nunca se deve deter, uma
nova evangelização, capaz de se fazer ouvir por aquele mundo que não encontra o
acesso à evangelização “clássica”. Todos têm necessidade do
Evangelho; o Evangelho destina-se a todos e não apenas a um círculo
determinado, e portanto somos obrigados a procurar novos caminhos para levar o
Evangelho a todos.

Mas também se esconde nisto
uma tentação a tentação da impaciência, a tentação de procurar imediatamente o
grande sucesso, de procurar os grandes números. E este não é o método de Deus.
Para o reino de Deus e a evangelização, instrumento e veículo do reino de Deus,
é sempre válida a parábola do grão de mostarda (cf. Mc 31-32). O reino de Deus
recomeça sempre de novo sob este sinal. Nova evangelização não pode significar:
atrair imediatamente com novos métodos mais requintados as grandes multidões
que se afastaram da Igreja. Não não é esta a promessa da nova evangelização.
Nova evangelização significa: não acontentar-se com o facto de que do grão de
mostarda cresceu a grande árvore da Igreja universal, não pensar que é
suficiente que nos seus ramos muito diferentes as aves possam encontrar lugar
mas ousar de novo com a humildade do pequeno grão, deixando para Deus quando e
como crescerá (cf. Mc 4, 26-29). As grandes coisas começam sempre do pequeno
grão e os movimentos em massa são sempre efémeros. Na sua visão do processo da
evolução, Teilhard de Chardin fala do “branco das origens” (le blanc
des origines): o início das novas espécies é invisível e a investigação
científica não o pode encontrar. As fontes são escondidas muito pequenas. Por
outras palavras: as grandes realidades iniciam-se em humildade. Deixemos
de lado se e até que ponto Teilhard tem razão com as suas teorias evolucionistas;
a lei das origens invisíveis diz uma verdade uma verdade presente precisamente
no agir de Deus na história: “Não te elegi porque és grande, ao contrário
és o mais pequeno de entre os povos; elegi-te porque te amo…”, diz Deus
ao povo de Israel no Antigo Testamento e exprime desta forma o paradoxo
fundamental da história da salvação: sem dúvida, Deus não conta com os grandes
números; o poder exterior não é o sinal da sua presença. Grande parte das
parábolas de Jesus indicam esta estrutura do agir divino e respondem desta
forma às preocupações dos discípulos, os quais esperavam outro tipo de sucesso
e de sinais do Messias sucessos do género dos que Satanás ofereceu ao Senhor:
dou-te todos os reinos do mundo tudo isto… (cf. Mt 4, 9). Sem dúvida, Paulo,
no final da sua vida, teve a impressão de ter levado o Evangelho aos confins da
terra, mas os cristãos eram pequenas comunidades espalhadas no mundo,
insignificantes segundo os critérios seculares. Na realidade foram o germe que
penetrou na massa a partir de dentro e levaram em si o futuro do mundo (cf. Mt 13,
33). Um antigo provérbio diz: “Sucesso não é um nome de Deus”. A nova
evangelização deve submeter-se ao mistério do grão de mostarda e não pretender
produzir imediatamente a grande árvore. Nós ou vivemos demasiado na certeza da
grande árvore que já existe ou na impaciência de possuir uma árvore maior, mais
vital ao contrário, devemos aceitar o mistério que a Igreja é ao mesmo tempo
grande árvore e pequeníssimo grão. Na história da salvação é sempre Sexta-Feira
Santa e, contemporaneamente, Domingo de Páscoa…

O método

Desta estrutura da nova
evangelização deriva também o método justo. Sem dúvida, devemos usar de modo
razoável os métodos modernos para nos fazer ouvir, ou melhor: para tornar
acessível e compreensível a voz do Senhor… Não procuramos escuta para nós não
queremos aumentar o poder e a extensão das nossas instituições, mas desejamos
servir o bem das pessoas e da humanidade dando espaço Àquele que é a Vida. Esta
expropriação do próprio eu oferecendo Cristo para salvação dos homens, é a
condição fundamental do verdadeiro empenho pelo evangelho. “Vim em nome de
Meu Pai e não Me recebestes, mas se vier outro, em seu próprio nome,
recebê-lo-eis” (Jo 5, 43). O sinal distintivo do Anticristo é falar em seu
nome. O sinal do Filho é a sua comunhão com o Pai. O Filho introduz-nos na
comunhão trinitária, no círculo do eterno amor, cujas pessoas são
“relações puras”, o acto puro do doar-se e receber-se. O desígnio
trinitário visível no Filho, que não fala em seu nome mostra a forma de vida do
verdadeiro evangelizador aliás, evangelizar não é simplesmente uma forma de
falar, mas uma forma de viver: viver em escuta e fazer-se voz do Pai. “Não
falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido”, diz o Senhor acerca
do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Esta forma cristológica e pneumatológica da
evangelização é simultaneamente uma forma eclesiológica: o Senhor e o Espírito
constroem a Igreja, comunicam-se na Igreja. O anúncio de Cristo, o anúncio do
reino de Deus pressupõe escuta da sua voz na voz da Igreja. “Não falará de
Si mesmo” significa: falar na missão da Igreja…
Desta lei da expropriação derivam consequências muito práticas. Todos os
métodos razoáveis e moralmente aceitáveis devem ser estudados – é um dever
fazer uso destas possibilidades de comunicação. Mas as palavras e toda a arte
da comunicação não podem conquistar a pessoa humana naquela profundidade, à
qual deve chegar o Evangelho. Há alguns anos li a biografia de um óptimo
sacerdote do nosso século, Pe. Didimo, pároco de Bassano del Grappa (Itália, n.d.r.).
Nas suas notas encontram-se palavras de ouro, fruto de uma vida de oração e de
meditação. A respeito de nós diz Pe. Didimo: “Jesus pregava de dia, de
noite rezava”. Com esta breve notícia, ele queria dizer: Jesus devia obter
de Deus os discípulos. Isto é válido sempre. Nós não podemos ganhar os homens.
Devemos obtê-los de Deus para Deus. Todos os métodos são vazios sem o
fundamento da oração. A palavra do anúncio deve estar sempre imersa numa
intensa vida de oração.

Devemos dar um ulterior
passo. Jesus pregava de dia, de noite rezava o que não é tudo. A sua vida
inteira foi como mostra de maneira admirável o evangelho de São Lucas um
caminho rumo à cruz, ascensão rumo a Jerusalém. Jesus não redimiu o mundo com
palavras bonitas, mas com o seu sofrimento e a sua morte. Esta sua paixão é a
fonte inexaurível de vida para o mundo; a paixão dá força à sua palavra.

O próprio Senhor estendendo
e ampliando a parábola do grão de mostarda formulou esta lei de fecundidade na
parábola do grão que, ao cair na terra, morre (cf. Jo 12, 24). Esta lei também
é válida até ao fim do mundo e é juntamente com o mistério do grão de mostarda
fundamental para a nova evangelização. Toda a história o demonstra. Seria fácil
demonstrar isto na história do cristianismo. Desejo recordar aqui apenas o
início da evangelização na vida de São Paulo. O sucesso da sua missão não foi o
resultado de uma grande arte retórica ou de prudência pastoral; a fecundidade
estava relacionada com o sofrimento, com a comunhão na paixão de Cristo (cf. 1
Cor 2, 1-5; 2 Cor 5, 7; 11, 10 s; 11, 30; Gl 4, 12-14). “Nenhum sinal será
dado a não ser o sinal do profeta Jonas”, disse o Senhor. O sinal de Jonas
é Cristo crucificado são as testemunhas, que completam o “que falta aos
sofrimentos de Cristo” (Cl 1, 24). Em todos os períodos da história
verificou-se sempre de novo as palavras de Tertuliano: o sangue dos mártires é
semente.
Santo Agostinho diz o mesmo de uma maneira muito bonita, ao interpretar Jo 21,
onde a profecia do martírio de Pedro e o mandato de apascentar, ou seja, a
instituição da sua primazia, estão intimamente relacionados. Santo Agostinho
comenta o texto de Jo 21, 16 da seguinte forma: “Apascenta as minhas
ovelhas”, o que significa, sofre pelas minhas ovelhas (Sermo Guelf. 32; PLS
2, 640). Uma mãe não pode dar luz a uma criança sem sofrer. Qualquer parto
requer sofrimento, é dor, e tornar-se cristão é um parto. Digamo-lo mais uma
vez com palavras do Senhor: o reino de Deus exige violência (cf. Mt 11, 12; Lc 16,
16), mas a violência de Deus é o sofrimento, é a cruz. Não podemos dar a vida a
outros, sem dar a nossa vida. O processo de expropriação acima mencionado é a
forma concreta (expressa de muitas formas diferentes) de doar a própria vida. E
pensamos na palavra do Salvador: “…quem perder a sua vida por Mim e pelo
Evangelho, salvá-la-á…” (Mc 8, 36).

II. Os conteúdos essenciais
da nova evangelização

Conversão

No que se refere aos
conteúdos da nova evangelização deve-se ter presente em primeiro lugar a
inseparabilidade do Antigo e do Novo Testamento. O conteúdo fundamental do
Antigo Testamento está resumido na mensagem de João Baptista: Convertei-vos!
Não se acede a Jesus sem o Baptista; não existe possibilidade de chegar a Jesus
sem responder ao apelo do precursor; aliás: Jesus assumiu a mensagem de João na
síntese da sua própria pregação: convertei-vos e acreditai no Evangelho (cf. Mc
1, 15). A palavra grega converter-se significa: reconsiderar pôr em questão o
próprio modo de viver e o comum; deixar entrar Deus nos critérios da própria
vida; não julgar simplesmente de acordo com as opiniões correntes. Converter-se
significa por conseguinte: não viver como vivem todos, não fazer como fazem
todos, não sentir-se justificados em acções duvidosas, ambíguas, perversas
simplesmente porque há quem o faça; começar a ver a própria vida com os olhos
de Deus, portanto procurar o bem, mesmo se não é agradável; não apostar no
juízo da maioria, mas no juízo de Deus por outras palavras: procurar um novo
estilo de vida, uma vida nova. Tudo isto não implica um moralismo; a limitação
do cristianismo à moralidade perde de vista a essência da mensagem de Cristo: o
dom de uma nova amizade, o dom da comunhão com Jesus e por conseguinte com
Deus. Quem se converte a Cristo não pretende criar uma autonomia moral própria,
não pretende construir com as próprias forças a sua bondade.
“Conversão” (Metanoia) significa precisamente o contrário: abandonar
a auto-suficiência, descobrir e aceitar a própria indigência indigência dos
outros e do Outro, do seu perdão, da sua amizade. A vida não convertida é
autojustificação (não sou pior do que os outros); a conversão é a humildade de
se confiar ao amor do Outro, amor que se torna medida e critério da minha
própria vida.

Devemos ter também presente
o aspecto social da conversão. Sem dúvida, a conversão é em primeiro lugar um
acto pessoalíssimo, é personalização. Eu separo-me da fórmula “viver como
todos” (já não me sinto justificado pelo facto de que todos fazem o que eu
faço) e encontro perante Deus o meu próprio eu, a minha responsabilidade
pessoal. Mas a verdadeira personalidade também é sempre uma nova e mais
profunda socialização. O eu abre-se de novo ao tu, em toda a sua profundidade,
e desta forma nasce um novo Nós. Se o estilo de vida difundido no mundo implica
o perigo da despersonalização, do viver não a minha vida mas a vida dos outros,
na conversão deve realizar-se um novo Nós do caminho comum com Deus. Ao
anunciar a conversão também devemos oferecer uma comunidade de vida, um espaço
comum do novo estilo de vida. Não se pode evangelizar só com palavras; o
evangelho cria vida, cria comunidade de caminho; uma conversão meramente
individual não tem consistência…

O Reino de Deus

Na chamada à conversão está
implícito como sua condição fundamental o anúncio do Deus vivo. O teocentrismo
é fundamental na mensagem de Jesus e também deve ser o centro da nova
evangelização. A palavra-chave do anúncio de Jesus é: Reino de Deus. Mas Reino
de Deus não é uma coisa, uma estrutura social ou política, uma utopia. O Reino
de Deus é Deus. Reino de Deus significa: Deus existe. Deus vive. Deus está
presente e age no mundo, na nossa na minha vida. Deus não é uma remota
“causa última”, Deus não é o “grande arquitecto” do deísmo,
que construiu a máquina do mundo e agora se encontra fora. Ao contrário: Deus é
a realidade mais presente e decisiva em qualquer acto da minha vida, em todos
os momentos da história. Na sua conferência de despedida da cátedra na
universidade de Monastério, o teólogo J. B. Metz disse coisas que dele não se
esperavam. No passado, Metz ensinou-nos o antropocentrismo o verdadeiro
acontecimento do cristianismo teria sido a viragem antropológica, a
secularização, a descoberta do secularismo no mundo. Depois, ensinou-nos a teologia
política o carácter político da fé; depois a “memória perigosa”;
finalmente a teologia narrativa. Depois deste caminho longo e difícil hoje
dizemos: o verdadeiro problema do nosso tempo é a “crise de Deus”, a
ausência de Deus, camuflada por uma religiosidade vazia. A teologia deve voltar
a ser realmente teo-logia, um falar de Deus e com Deus. Metz tem razão: para o
homem, o “unum necessarium” é Deus. Tudo muda se Deus está ou não
está presente. Infelizmente também nós cristãos vivemos muitas vezes como se
Deus não existisse (“si Deus non daretur”). Vivemos segundo o slogan:
Deus não está presente, e se está, não tem incidência. Por isso a evangelização
deve, antes de mais, falar de Deus, anunciar o único Deus verdadeiro: o Criador
o Santificador o Juiz (cf. Catecismo da Igreja Católica).
Também neste ponto se deve ter presente o aspecto prático. Deus não se pode dar
a conhecer unicamente com as palavras. Não se conhece uma pessoa, se não
sabemos directamente nada dela. Anunciar Deus é introduzir na relação com Deus:
ensinar a rezar. A oração é fé em
acto. E só na experiência da vida com Deus se manifesta
também a evidência da sua existência. Eis por que são tão importantes as
escolas de oração, de comunidade de oração. Existe complementariedade entre oração
pessoal (“no próprio quarto”, sozinhos perante os olhos de Deus),
oração comum “paralitúrgica” (“religiosidade popular”) e
oração litúrgica. Sim, a liturgia é, em primeiro lugar, oração; a sua
especificidade consiste no facto que o seu sujeito primário não somos nós (como
na oração privada e na religiosidade popular), mas o próprio Deus a liturgia é actio
divina, Deus age e nós respondemos à acção divina.

Falar de Deus e falar com
Deus são duas acções que devem andar sempre juntas. O anúncio de Deus orienta
para a comunhão com Deus na comunhão fraterna, fundada e vivificada por Cristo.
Portanto a liturgia (os sacramentos) não é um tema paralelo à pregação do Deus
vivo, mas a concretização da nossa relação com Deus. Neste contexto, seja-me
permitida uma observação geral sobre a questão litúrgica. O nosso modo de
celebrar a liturgia com frequência é demasiado racional. A liturgia torna-se
ensinamento, cujo critério é: fazer-se compreender a consequência é com
frequência a banalização do mistério, o prevalecer das nossas palavras, a
repetição das fraseologias que parecem mais acessíveis e mais agradáveis ao
povo. Mas isto é um erro não só teológico, mas também psicológico e pastoral. A
onda do exoterismo, a difusão de técnicas asiáticas de distensão e auto-esvaziamento
mostram que nas nossas liturgias falta algo.

Precisamente no nosso mundo
de hoje precisamos do silêncio, do mistério supra-individual, da beleza. A
liturgia não é invenção do sacerdote celebrante ou de um grupo de
especialistas; a liturgia (o “rito”) cresceu num processo orgânico ao
longo dos séculos, leva em si o fruto da experiência de fé de todas as
gerações. Mesmo se os participantes talvez não entendam todas as palavras,
compreendem o significado profundo, a presença do mistério, que transcende
todas as palavras. O celebrante não é o centro da acção litúrgica; o celebrante
não está em frente do povo em seu nome não fala se si nem para si, mas “in
persona Christi”. Não contam as capacidades pessoais do celebrante, mas
unicamente a sua fé, na qual se Cristo se torna transparente. “Ele deve
crescer e eu diminuir” (Jo 3, 30).

Jesus Cristo

Com esta reflexão o tema
Deus já se alargou e concretizou no tema Jesus Cristo: só em Cristo e através
de Cristo o tema Deus se torna realmente concreto: Cristo é Emanuel, o Deus
connosco a concretização do “Eu sou”, a resposta ao Deísmo. Hoje é
grande a tentação de reduzir Jesus Cristo, o único filho de Deus a um Jesus
histórico, a um homem puro. Não se nega necessariamente a divindade de Jesus, mas
com certos métodos destila-se da Bíblia um Jesus à nossa medida, um Jesus
possível e compreensível dentro dos parâmetros da nossa historiografia. Mas
este “Jesus histórico” é inatural, a imagem dos seus autores e não a
imagem do Deus vivo (cf. 2 Cor 4, 4 s.; Cl 1, 15). O Cristo da fé não é um
mito; o chamado Jesus histórico é uma figura mitológica, auto-inventada pelos
diferentes intérpretes. Os duzentos anos de história de “Jesus
histórico” reflectem fielmente a história das filosofias e das ideologias deste
período.

No âmbito desta conferência,
não posso tratar os conteúdos do anúncio do Salvador. Desejaria brevemente
mencionar dois aspectos importantes. O primeiro é o seguimento de Cristo Cristo
oferece-se como caminho para a minha vida. Seguimento de Cristo não significa:
imitar o homem Jesus. Uma tentativa como esta falha necessariamente seria um
anacronismo. O seguimento de Cristo tem uma meta mais alta: assimilar-se a
Cristo, isto é, alcançar a união com Deus. Estas palavras talvez soem mal aos
ouvidos do homem moderno. Mas na realidade todos temos sede do infinito: de uma
liberdade infinita, de uma felicidade sem limites. Toda a história das
revoluções dos últimos dois séculos só se explica desta forma. A droga
explica-se assim. O homem não se contenta com soluções abaixo do nível da
divinização. Mas todos os caminhos oferecidos pela “serpente” (Gn 3,
5), que significa pela sabedoria mundana, falham. O único caminho é a comunhão
com Cristo, realizável na vida sacramental. Seguimento de Cristo não é um
assunto de moral, mas um tema “místico” um conjunto de acção divina e
de resposta da nossa parte.
Desta forma encontramos presente no tema seguimento o outro centro da
cristologia, que desejaria mencionar: o mistéro pascal a cruz e a ressurreição.
Nas reconstruções do “Jesus histórico” normalmente o tema da cruz não
tem significado. Numa interpretação “burguesa” torna-se um acidente
em si evitável, sem valor teológico; numa interpretação revolucionária torna-se
a morte heróica de um rebelde. Mas a verdade é outra. A cruz pertence ao
mistério divino é expressão do seu amor até ao fim (cf. Jo 13, 1). O seguimento
de Cristo é participação da sua cruz, unir-se ao seu amor, à transformação da
nossa vida, que se torna nascimento do homem novo, criado à imagem de Deus (cf.
Ef 4, 24). Quem omite a cruz, omite a essência do cristianismo (cf. 1 Cor 2,
2).

A vida eterna

Um último elemento central
de qualquer evangelização autêntica é a vida eterna. Hoje devemos anunciar a fé
com renovado vigor na vida quotidiana. A este ponto, desejaria mencionar apenas
um aspecto da pregação de Jesus que hoje, muitas vezes, é negligenciado: o
anúncio do Reino de Deus é o anúncio do Deus presente, do Deus que nos conhece,
nos ouve; do Deus que entra na história, para fazer justiça. Portanto, esta
pregação é também anúncio do juízo, anúncio da nossa responsabilidade. O homem
não pode fazer ou deixar de fazer o que lhe apetece. Ele será julgado. Deve
prestar contas. Esta certeza é válida tanto para os poderosos como para os
simples. Onde ela é honrada, são delineados os limites de qualquer poder deste
mundo. Deus faz justiça, e só ele o pode fazer por último. Nós consegui-lo-emos
tanto mais, quanto mais formos capazes de viver sob o olhar de Deus e de
comunicar ao mundo a verdade do juízo. Desta forma, o artigo de fé do juízo, a
sua força de formação das consciências, é um conteúdo central do Evangelho e é deveras
uma Boa Nova. E também o é para todos os que sofrem sob a injustiça do mundo e
procuram a justiça. Compreende-se desta forma o nexo entre o Reino de Deus e os
“pobres”, os que sofrem e todos aqueles dos quais falam as
bem-aventuranças do sermão da montanha. Eles são protegidos pela certeza do
juízo, pela certeza que existe a justiça. Eis o verdadeiro conteúdo do artigo
sobre o juízo, sobre Deus-juiz: há justiça. As injustiças do mundo não são a
última palavra da história. Existe uma justiça. Só quem não quer que haja
justiça, se pode opor a esta verdade. Se tomarmos a sério o juízo e a seriedade
da responsabilidade que disso nos advém, compreendemos bem o outro aspecto
deste anúncio, isto é, a redenção, o facto de que na cruz Jesus assume os
nossos pecados; que o próprio Deus na paixão do Filho se torna advogado de nós,
pecadores, e desta forma torna possível a penitência, a esperança para o pecador
arrependido, esperança expressa maravilhosamente nas palavras de São João:
diante de Deus, tranquilizaremos o nosso coração, independentemente do que eles
nos reprova. “Deus é maior que os nossos corações e conhece todas as
coisas” (1 Jo 3, 20). A bondade de Deus é infinita, mas não devemos
reduzir esta bondade a uma pieguice afectada sem verdade. Só acreditando no
justo juízo de Deus, só tendo fome e sede de justiça (cf. Mt 5, 6) é que
abrimos o nosso coração, a nossa vida à misericórdia divina. Vê-se: não é
verdade que a fé na vida eterna torna insignificante a vida terrena. Pelo
contrário: só se a medida da nossa vida for a eternidade, também a vida na
terra é grande e o seu valor é imenso. Deus não é o concorrente da nossa vida,
mas a garantia da nossa grandeza. Desta forma voltamos ao ponto de partida:
Deus. Se considerarmos bem a mensagem cristã, não falamos de muitas coisas. Na
realidade, a mensagem cristã é muito simples. Falamos de Deus e do homem e,
desta forma, dizemos tudo.10 de Dezembro de 2000

 

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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