Iminente volta de Cristo? EB (Parte 2)

2.2. Ap 20, 1-10: Interpretações
questionáveis

No início da era cristã, o texto de S. João
foi por vezes interpretado à luz de concepções judaicas. Ora, os profetas no
Antigo Testamento propuseram a vinda do Messias como início de uma era de
grande prosperidade para Israel; cf. ls 9,1-6; 11,1-9; 54,2s; 60,1-22; Ez
40,1-48; Dn 7,1-28; 12,1-13. Os escritores judaicos subseqüentes, autores de
livros apócrifos, deram colorido muito vivo a tais vaticínios; descreveram o
reinado de Messias como período de abundância e felicidade material neste
mundo; os homens viveriam um número de anos maior do que a cifra de seus dias
de outrora: “Não haverá mais ancião, ninguém que não seja saciado de dias;
serão todos crianças e jovens” (cf. ls 65,20). Enquanto alguns judeus
identificavam esse bem-estar terrestre com a bem-aventurança definitiva do
homem, outros assinalavam-lhe um termo após o qual se  dariam o juízo final e a consumação de todas
as coisas. A duração do reino messiânico assim concebido era, não raro,
calculada em função dos sete dias em que se julgava ter sido criado o mundo: a
história anterior ao Messias se estenderia por 6.000 anos; p sétimo milênio
seria o período do reino messiânico, em que os justos neste mundo gozariam de
repouso e bem-estar, paralelos ao repouso de Deus após a obra de criação.
Terminados os sete milênios, dar-se-ia finalmente a entrada de cada criatura no
seu estado definitivo. Eis o sistema escatológico que, na base de Ap 20,
construíram os milenaristas cristãos antigos:

segunda
vinda de Cristo (em glória e majestade);

primeira
ressurreição (para os justos apenas);

juízo
universal;

reino
messiânico de mil anos, ou milenário;

ressurreição
Segunda ou geral (para os demais homens);

juízo
final;
7) prêmio ou sanção definitiva.

A primeira ressurreição será concedida
unicamente aos justos. Ressuscitados, estes se assentarão com Cristo como
assessores no juízo que logo a seguir se efetuará. Este é dito universal porque
serão julgados os povos como coletividades, não os indivíduos de per si. Após
tal solene julgamento, inaugurar-se-á uma fase de mil anos ou mais; Satanás
estando impedido de exercer sua ação nociva, os justos ressuscitados reinarão
com Cristo na cidade de Jerusalém, renovada e gloriosa, gozando de toda
bonança; em torno deles, no restante do mundo, viverão os homens ainda não
ressuscitados, usufruindo de melhores condições de vida de que nos tempos
anteriores à Segunda vinda de Cristo. Terminando tal período, Satanás moverá a
derradeira perseguição contra o reino de Cristo, e será definitivamente
prostrado. Dar-se-á então a ressurreição Segunda, a dos homens que não tiverem
tomado parte na primeira, e proceder-se-á ao juízo final, juízo de cada
indivíduo em particular, juízo em
que Cristo não terá assessores, mas examinará tanto os
pecadores como os justos. Este julgamento final é também dito juízo dos mortos,
enquanto o anterior (o universal) é chamado, outrossim, o juízo dos vivos.1 Eis
os traços característicos do Quiliasmo;2 nem todos os pontos do sistema são
devidamente esclarecidos pelos seus fautores; não indicam, por exemplo, que
tipo de relações terão entre si os homens ressuscitados e os não ressuscitados;
como poderá o exército diabólico fazer a guerra ao reino de Cristo glorioso,
etc. 

O Sistema apresenta-se sob duas
modalidades:

o
Milenarismo grosseiro, que faz consistir a bem-aventurança do reino terrestre
de Cristo nos prazeres da carne: uso e abuso do matrimônio, da comida e da
bebida… Esta forma foi propalada por gnósticos heréticos no séc. II d.C. e
mereceu a condenação unânime dos Padres e Doutores da Igreja. Depois de ter
caído em esquecimento a partir do séc. III, a teoria foi ressuscitada por
inovadores religiosos do séc. XVI;

o
Milenarismo espiritual ou mitigado, que concebe a felicidade em termos mais
dignos; afirma que os justos, após a ressurreição primeira, já não se casarão
nem serão sujeitos à fome ou à dor, segundo o que diz Jesus em Lc 20,35.

 Nos primeiros séculos, o Milenarismo
espiritual era doutrina professada por vários Padres e escritores da Igreja.1
Sto. Agostinho, depois de lhe Ter aderido em seus primeiros escritos, propôs
novo modo de entender Ap 20, excluindo o reino milenário2. A autoridade do
Santo Doutor fez com que o sistema caísse em descrédito na sã tradição;
defenderam-no, porém, na Idade Média, escritores “iluminados”, fanáticos, e
ainda o professavam recentemente alguns estudiosos católicos. Estes
reivindicavam para a sua doutrina o nome de Milenismo. A fim de serem
devidamente diferenciados do Milenarismo crasso, errôneo.

 2.3. Ap 20, 1-10:  O Magistério da Igreja

 O
Magistério da Igreja, embora não tenha formalmente condenado o Milenismo. é-lhe
francamente desfavorável. Com efeito, recentemente ainda foi apresentada ao
Santo Ofício a seguinte questão:

 “Que pensar do sistema dito ‘Milenarismo
mitigado’, o qual ensina que o Cristo Senhor, antes do juízo final, há de vir
`a Terra para reinar visivelmente, quer se admita, quer não, a ressurreição
prévia de muitos justos?”

 Ao que a Santa Sé respondeu em 1944:

 O sistema dito “Milenarismo mitigado”
não pode ser ensinado sem perigo para a fé. – Systema millennarismi mitigati
tuto doceri no potest.”1

 Com efeito, não se vê como conciliar o
Milenarismo com a doutrina geral da Sagrada Escritura e dos símbolos de fé, que
associam a Segunda vinda de Cristo com o juízo final e a inauguração de estados
definitivos, sem que fique margem para um reino de Cristo intermediário entre o
juízo universal e o final, entre o juízo dos vivos e dos mortos.2      

2.4. Ap 20, 1-10:   A Interpretação mais comum

 Após S. Agostinho (+ 430), a
interpretação mais comum dada a Ap 20 é a seguinte:

“25 Em verdade, em verdade vos digo: vem
a hora – e é agora – em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que
a ouvirem, viverão…

28 Não vos admireis por isto: vem a hora em que todos os que repousam
nos sepulcros, ouvirão a voz29 e sairão; os que tiverem feito o bem, para uma
ressurreição de vida; os que tiverem cometido o mal, para uma ressurreição de
julgamento”.

Como se vê, S. João fala aí de suas
ressurreições, como também em Ap 20.

 A primeira ressurreição dá-se agora (v.
25), ao passo que a outra não ocorre agora (v. 28).

Como entender essas duas ressurreições?

 – A primeira é sacramental; é a passagem
da morte espiritual para a vida espiritual cristã mediante o Batismo; esta se
dá agora, isto é, no decorrer da história da Igreja. A outra será a
ressurreição corporal, que ocorrerá no fim dos tempos, consumando a
ressurreição sacramental.

 Ora a primeira ressurreição, de que fala
Ap 20,5, vem a ser a primeira ressurreição de Jo 5,25; é a batismal. A Segunda
ressurreição (implicitamente mencionada em Ap 20,13) identifica-se com a
ressurreição corporal a que se refere Jo 5,28. – Entre a ressurreição batismal,
que ocorre em cada batizado, e a ressurreição corporal, o Apóstolo coloca um
reino de Cristo milenar sobre a terra, estando Satanás acorrentado. Esse
milênio significa o tempo da Igreja (que vai para 2000 anos!) na medida em que é
um tempo penetrado pela vitória de Cristo sobre o pecado (mil tem um simbolismo
de bonança); Satanás é, conforme S. Agostinho, um cão acorrentado, que pode
ladrar, mas não pode morder senão a quem se lhe chega perto.

 No fim dos mil anos de Ap 20,7, ou seja,
no fim da história da Igreja, dar-se-á o assalto final de Satanás contra os
membros da Igreja, a fim de arrebatá-los para o mal. Mas o Senhor Jesus virá na
sua glória e os mortos ressuscitarão (ressurreição Segunda) para o juízo
universal. A Segunda morte, de que fala Ap. 20,6, é a morte espiritual ou a
ruína definitiva do inferno.

 Eis esquematicamente o paralelismo:   

Jo
5,25:                                                Jo 5,28

ressurreição
1ª                                    ressurreição 2ª      

1000 anos
de reinado de Cristo sobre a terra

(o penhor
da vida eterna nos  foi dado; Ef 1, 14)

 Ap. 20,5:                                                
Ap. 20,13:

 ressurreição
1ª                                      ressurreição 2ª

 Tal paralelismo e a interpretação que
dele fazem os teólogos, não surpreendem a quem conhece o estilo simbolista de
São João. – Verdade é que o recurso a simbolismo pode ser, muitas vezes, arbitrário
e preconcebido. No caso presente, porém, tem respaldo no linguajar mesmo do
Apocalipse e do Evangelho segundo São João.

Por conseguinte, carecem de fundamento
sólido as férvidas expectativas de próxima vinda de Cristo à terra para
instaurar um reino milenar de paz e bonança.

1 É
distinguindo assim que os milenaristas interpretam a fórmula das Escrituras
(2 Tm 4,1; At 10,42; 1Pd 4,5) e do Símbolo de fé: Cristo há de vir julgar os vivos
e os mortos.

2 Quiliasmo
vem do grego chílioi = mil.

1 Assim S.
Justino (+ cerca de 165), Sto. Irineu (+ cerca de 202), Tertuliano (+ após
220), Latâncio (+ após 317), S. Metódio de Olimpo (+ 311).

 Uma das expressões mais fortes da mentalidade
milenarista mitigada tem-se, por exemplo, na seguinte descrição que, do reino
terrestre de Cristo, dá Papias (+ cerca de 130):

“Virão dias
em que as videiras crescerão, tendo cada qual dez mil cachos; em cada cacho,
haverá dez mil bagos; e cada bago espremido dará vinte e cinco medidas de
vinho. E, quando algum dos santos colher um cacho, outro clamará: Sou cacho de
melhor qualidade; toma a mim; por mim bendize ao Senhor. Da mesma forma, o grão
de trigo…” (Na obra de Sto. Irineu, Adversus haereses 5,33).

2 Cf. De
civitate Dei 20,7-9.

1 Acta
Apostolicae Sedis 36 (1944) 212. Cf. G. Gilleman, Condamnation du millénarisme
mitigé, em “Nouvelle Revue Théologique” (1945) 239.

2 Basta
lembrar as palavras de Jesus:

 “O Filho do homem há de vir na glória de Seu
Pai com os anjos, e retribuirá a cada um conforme as suas obras” (Mt 16,27).

S. Pedro
também é claro:

“Os céus
devem receber (o Messias, Jesus) até o momento da restauração de todas as
coisas, de que Deus falou pela boca de seus santos profetas” (At 3,21).

A volta do
Senhor e a consumação de todas as criaturas são imediatamente associadas entre
si nestes dois textos.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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