Houve milagre na multiplicação dos pães?

O episódio da multiplicação dos pães (Mt 14, 13-21) tem sido considerado por alguns não como um feito milagroso de Jesus, mas como a simples partilha dos alimentos da multidão. Tal interpretação não somente não corresponde aos dizeres do texto, mas não é aceita pelos bons exegetas em geral. Trata-se de um fato histórico milagroso, que os evangelistas descrevem como sinal do pão eucarístico e da bonança prometida pelos Profetas para o Reino messiânico.

O Catecismo da Igreja quando fala do assunto, fala em “milagre”:

“O milagre da multiplicação dos pães, quando o Senhor proferiu a bênção, partiu e distribuiu os pães a seus discípulos para alimentar a multidão, prefigura a superabundância deste único pão de sua Eucaristia (cf. Mt 14, 13-21; 15,32-39)” (§1335).

escola_da_fe_IToda a Tradição da Igreja interpreta o fato como milagre, o que foi muito caro aos antigos. Mateus e Marcos o narram duas vezes (cf. Mt 14,13-21; 15, 29-39 e Mc 6, 30-40; 8, 1-18). São Lucas o refere uma vez (cf. Lc 9, 10-17). São João também (cf. Jo 6,1-13). Os exegetas atualmente julgam que em Mateus e Marcos há uma repetição do relato do fato, embora leves diferenças existam entre a primeira e a segunda narrativas.

A interpretação tradicional e amplamente majoritária afirma ter havido um milagre, mas recentemente começou-se a dizer que não houve milagre, mas que Jesus teria ordenado uma partilha dos alimentos. Esta interpretação carece de fundamento no texto e o violenta, pois o evangelista faz observar que nada havia para comer entre a multidão.

“Chegada a tarde, aproximaram-se dele os seus discípulos, dizendo: “O lugar é deserto e a hora já está avançada. Despede as multidões para que vão aos povoados comprar alimento para si”. Mas Jesus lhes disse: “Não é preciso que vão embora. Dai-lhes vós mesmos de comer”. Ao que os discípulos responderam: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes”.

Jesus então interveio, multiplicando os pães.

O caráter milagroso do episódio é mais realçado na segunda narrativa. A secção de Mt 15, 29-39 segue-se a um milagre de Jesus: a cura da filha da mulher cananeia (Mt 15, 21-28) e a uma declaração sobre a atividade taumatúrgica de Jesus:

“Vieram até ele numerosas multidões, trazendo coxos, cegos, aleijados, mudos e muitos outros e os puseram a seus pés e ele os curou, de sorte que as multidões ficaram espantadas… E renderam glória ao Deus de Israel” (Mt 15, 29-31).

Leia também: A multiplicação dos pães: milagre ou simples partilha?

Os milagres de Cristo são reais ou apenas simbólicos?

Jesus mesmo diz logo a seguir:

“Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que está comigo e não tem o que comer. Não quero despedi-la em jejum, de modo que possa desfalecer pelo caminho”.

Na base destas averiguações, não pode restar dúvida de que se trata de um fato histórico e milagroso em Mt 14, 21-32 e paralelos.

D. Estevão Bettencourt apresenta algumas peculiaridades literárias da narrativa (Revista Pergunte e Respondermos, nº 479, Ano 2002, Pág. 191). Coloco-as a seguir:

O relato da multiplicação dos pães nos quatro Evangelhos não pode deixar de lembrar ao leitor certos antecedentes do Antigo Testamento:

Em 2Rs 4, 42-44 lê-se o seguinte: “Veio um homem de Baal-Salisa e trouxe para o homem de Deus pão das primícias, vinte pães de cevada e trigo novo em espiga. Eliseu ordenou: “Oferece a essa gente para que coma”. Mas o servo respondeu: “Como hei de servir isso para cem pessoas?”. Ele repetiu: “Oferece a essa gente para que coma, pois assim falou o Senhor: “Comerão e ainda sobrará”. Serviu-lhes, eles comeram e ainda sobrou segundo a palavra do Senhor”.

Verifica-se que a estrutura literária é a mesma que em Mt 14, 13-21; são levados a Eliseu alguns pães; o Profeta ordena a seu servo (discípulo) que sacie cem homens; o servo aponta a impossibilidade (como os Apóstolos). Eliseu ignora a objeção e, confiado na Palavra de Deus, manda distribuir o pão. Ficam sobras, como no relato evangélico.

Em Ex 16, 1-36 e Nm 11, 4-9 é narrada a entrega do maná ao povo no deserto, entrega à qual Jesus faz alusão ao prometer o pão eucarístico; cf. Jo 6, 49.

Tais episódios do Antigo e do Novo Testamento não referem apenas uma refeição humana, mas têm significado transcendental: querem dizer que Deus acompanha, ontem e hoje, seu povo peregrino e lhe oferece os subsídios necessários para que supere os obstáculos da caminhada e chegue certeiramente ao termo almejado, que é a vida eterna.

O relato evangélico faz alusões também à Eucaristia, o viático por excelência. Assim

escola_da_fe_IIMt 14, 15: “Ao entardecer” em grego é a fórmula com que é introduzido o relato da última ceia;

Mt 14, 19: “tomou os pães”, “levantou os olhos para o céu”, “abençoou”, “partiu”, “deu aos discípulos” são expressões da última ceia e da posterior celebração eucarística.

Mt 14, 20: a grande quantidade de pão assim doada lembra a fartura prometida pelos Profetas para os tempos messiânicos; cf. Os 14, 8; Is 49, 10; 55, 1…

O recolher os fragmentos que sobram, é usual na celebração eucarística.

Encerra D. Estevão dizendo que: “Em suma, a ceia de viandantes proporcionada pelo Senhor ao seu povo é prenúncio da ceia plena ou do banquete celeste, símbolo da bem-aventurança definitiva. É neste contexto que há de ser lida a secção de Mt 14, 13-21 e paralelos; na intenção dos evangelistas, ela quer significar o dom supremo de Deus ao homem, que é o encontro face-a-face na bem-aventurança celeste”.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.