História da Igreja: Pio VII e Napoleão Bonaparte

A ascensão de dois homens

Quando Pio VI morreu aos 29/08/1799 em Valença (França), para onde tinham deportado o “cidadão Papa”, a Igreja se via em situação crítica tal como nunca antes. Com efeito, a França, a “filha primogênita”, caíra na incredulidade; a Itália estava invadida e convulsionada; a Alemanha, contaminada pelo Iluminismo (Aufklarung); a Bélgica, incorporada à República Francesa revolucionária; a Polônia, retalhada por três potências vizinhas; a Espanha e Portugal eram governados por Ministros hostis a Igreja; na Inglaterra e nos Países Baixos, os católicos eram minorias flutuantes. O Catolicismo parecia em agonia; dir-se-ia que Pio VI fora o último Papa. Oradores irônicos faziam a oração fúnebre da Igreja com frases blasfematórias. Como eleger novo Pontífice em ambiente tão agitado e rebelde? Os Cardeais estavam ou prisioneiros ou deportados ou dispersos em liberdade.

Apesar de tudo, o Conclave reuniu-se. Não em Roma ocupada pelos franceses, mas em Veneza, território que os austríacos e russos haviam conquistado aos franceses. Após três meses e meio saiu eleito o Cardeal Barnabé Chiaramonti, monge beneditino, que tomou o nome de Pio VII (1800-23). Assim quase simultaneamente subiam ao centro europeu duas figuras importantes: Pio VII e Napoleão Bonaparte. O novo Papa era homem profundamente religioso, ao serviço de Deus e da Igreja. Quando bispo de Imola, dizia aos seus diocesanos: “A forma de governo democrático por vós adotada não se opõe em absoluto ao Evangelho; exige, ao contrário, todas as virtudes sublimes que só se aprendem na escola de Jesus Cristo… Sede bons cristãos, e sereis bons democratas”. Tinha boa formação teológica e por toda a vida quis ser o pobre monge Chiaramonti.

Quanto a Napoleão, não queria ser um ateu, mas um deísta (isto é, alguém que segue a religião natural); na Córsega recebera de sua mãe educação católica, que o tornava sensível aos valores religiosos. Podia ter uma capela no palácio, como os reis de outrora, e aí assistir a missa, mas só por conveniência ou por respeito as tradições. Como quer que seja, queria um entendimento com a Santa Sé. Percebia que, para fortalecer sua posição na França, precisava do apoio dos católicos, que continuavam a ser uma força no país. Quando a religião fora de novo permitida pelos revolucionários, o júbilo do povo fora imenso, de modo que a Polícia chegava a denunciar em 1798 o “fanatismo” que fizera progressos na sombra.

Os austríacos e napolitanos em breve conseguiram expulsar os franceses da maior parte da Itália – o que permitiu a Pio VII voltar a Roma.

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Acordos e conflitos

Em breve Napoleão fez saber ao Papa que queria entrar em negociações. Estas se realizaram, mas com grandes dificuldades por causa das tendências galicanas dos franceses. Finalmente a Cúria Romana fez concessões, e foi assinada uma Concordata em Paris aos 15/07/1801: em 17 artigos atribuía grandes poderes ao Estado sobre a Igreja; entre outros, é de notar que todos os bispos, juramentados ou não, seriam pelo Papa obrigados a renunciar; Napoleão nomearia todos os novos diocesanos e o Papa daria a estes apenas a instituição canônica, isto é, a ordem sagrada.

Aos 18/04/1802 Napoleão mandou promulgar essa Concordata acrescida de 77 artigos, ditos “orgânicos”, impregnados de Galicanismo ainda mais avançado (os professores dos Seminários eram obrigados a ensinar os quatro artigos galicanos). Pio VII protestou, mas sem êxito. Napoleão os apresentava como frutos das conversações com a Santa Sé – o que era evidentemente falso: tais artigos exigiam o beneplácito do Governo para a publicação, na França, de qualquer decreto do Papa ou de Sínodo realizado no estrangeiro; proibia os Bispos de usar outro título a não ser o de “cidadão” ou “senhor” (citoyen, monsieur); Sínodos e Legados papais na França não poderiam agir sem a autorização do Governo.

Na execução da Concordata, 38 dos 81 bispos católicos não juramentados recusaram-se a resignar às suas dioceses. Não obstante, o Papa os depôs – o que era acontecimento inédito na história da Igreja! Partes das dioceses de Lyon e Poitiers não quis reconhecer a Concordata, contando com o apoio de bispos enérgicos; isto deu origem ao cisma da Petite Eglise (Pequena Igreja), alimentado por teorias jansenistas; desde 1847, porém, o cisma carecia de sacerdotes e os seus membros voltaram quase todos a comunhão da Igreja.

A ambição de Napoleão levou-o a novos conflitos com a Santa Sé. Com efeito; em maio de 1804, o monarca, por plebiscito, foi aclamado Imperador dos franceses. Convidou Pio VII para sagrá-lo e coroá-lo em Paris. o Papa, após hesitar, acabou aceitando: na Catedral de Notre-Dame, aos 02/12/1804 sagrou o Imperador, mas, a coroa, foi este mesmo quem a colocou sobre a sua cabeça (não queria que se dissesse que recebera do Papa o poder imperial). Tal procedimento contrariava o Cerimonial e era grave afronta ao Pontífice. Este aturou o gesto, esperando receber alguma compensação ou a retratação de artigos galicanistas. Iludia-se, porém: Napoleão apenas restaurou algumas Congregações Religiosas (Irmãs de Caridade, Lazaristas) e aboliu o Calendário Republicano. Quis deter o Papa na França, afim de melhor utilizá-lo como seu instrumento; mas Pio VII, prevendo o golpe, fora prudente: antes de deixar Roma, havia assinado a sua renúncia ao Papado, válida para o caso de não voltar à Cidade Eterna dentro de um ano. Assim em abril de 1805 regressou a sua sede, um tanto humilhado pelo tratamento que Napoleão lhe impusera.

Novos conflitos surgiram. Napoleão quis que o Pontífice dissolvesse o casamento de seu irmão Jerônimo Bonaparte. Diante da recusa do Papa, mandou invadir o Estado Pontifício, inclusive a cidade de Roma. Aos 17/05/1809 o Estado da Igreja era incorporado ao Império francês “para sempre”. Napoleão sentia-se como o sucessor de Carlos Magno, Imperador Romano. Pio VII respondeu lançando a excomunhão contra os usurpadores, a partir de Napoleão até o último executor das ordens imperiais. o monarca se inquietou com o fato, mas quis mostrar-se intrépido: na noite de 5 a 6 de julho de 1809 o Papa foi preso e levado a Savona (Itália do Norte); os Cardeais também foram presos, e vinte e seis deles foram transportados para Paris, a fim de ser mais rigorosamente controlados.

Nova animosidade surgiu quando Napoleão quis separar-se de sua esposa Josefina, estéril; alegava a nulidade do matrimônio por falta da forma canônica e do consentimento devido. Para julgar o caso, recorreu a tribunais franceses, que lhe deram razão. O caso, porém, era de competência papal exclusiva (os casos de matrimônio de famílias reais são exclusivamente da alçada do Pontífice para se evitarem maquinações desonestas). Na base desse parecer inválido, Napoleão contraiu novas núpcias com Maria Luísa da Áustria aos 02/04/1810; treze dos Cardeais residentes em Paris recusaram-se a comparecer, pelo que Napoleão os “descardinalizou”, obrigando-os a vestir-se de preto e espalhar-se pela França.

Novas lutas e desfecho

Em Savona, o Papa continuava detido, sofrendo vexames por parte do Imperador excomungado. Foi indignamente maltratado, pois lhe tiraram livros, pena, tinta e anel.

Como houvesse muitas dioceses sem bispo na França (visto que o Papa não queria aceitar as nomeações feitas pelo Imperador), o monarca reuniu em Paris um Concílio nacional de 104 bispos (1811) sob a presidência do Cardeal Fesch, tio do Imperador. O Concílio começou por jurar fidelidade ao Papa. Foi então dissolvido e de novo convocado; cedeu a pressão, decretando que aos metropolitas caberia o direito de confirmar os candidatos episcopais, caso o Papa não o quisesse fazer dentro de seis meses. Pio VII acabou aceitando esta resolução e publicando-a em seu próprio nome (1811).

Napoleão não se deu por satisfeito com o fato de que o Papa não aprovara apenas, mas usara de sua autoridade publicando o decreto em seu próprio nome. Declarou então a Concordata de 1801 e dissolveu o Concílio. Tinha em vista várias outras reivindicações, inclusive a de que 2/3 dos Cardeais fossem nomeados pelos reis e a de fazer o Papa residir na França. Tais reivindicações, ele as proclamaria quando voltasse vitorioso da Rússia (como esperava!).

Entrementes Napoleão mandou que o Pontífice fosse levado de Savona para Fontainebleau perto de Paris (junho de 1812), alegando que os cruzadores ingleses poderiam levar embora o Papa residente no litoral da Itália. Na verdade, Napoleão queria entrar em novas negociações com o Pontífice. Estas ocorreram realmente, mas em termos mais fáceis do que as anteriores, porque o Imperador fora infeliz na sua campanha militar da Rússia. Em janeiro de 1813 Napoleão e Pio VII definiram onze artigos preliminares de nova Concordata: o Papa renunciaria ao poder temporal e residiria na França ou na Itália com uma renda de dois milhões de francos anuais. As nomeações de Bispos seriam feitas pelo Imperador; os Metropolitas lhes dariam a validade canônica, sem a intervenção do Papa. o Imperador tinha outras pretensões, que Pio VII rejeitou; já concedera muita coisa, porque estava fisicamente muito abatido.

Napoleão aos 13/02/1813 publicou esse projeto de Concordata como se fosse algo de definitivo (a Concordata de Fontainebleau), mandando que se celebrasse a reconciliação em todas as igrejas da França com o canto do Te Deum. Os Cardeais “negros”, tendo podido aproximar-se novamente do Papa, fizeram-lhe ver que tão exorbitantes concessões não podiam ser mantidas (principalmente a renúncia ao Estado Pontifício). Diante disto, Pio VII, inquieto, aos 23/03/1813 escreveu uma carta em que retirava as concessões e convidava o Imperador para novas negociações. Napoleão irritou-se furiosamente, mas teve que se conter porque a situação política lhe era desfavorável: os aliados inimigos já se tinham apoderado de quase toda a Itália e possuíam parte da França. Viu-se assim obrigado a dar liberdade ao Papa aos 10/03/1814. Neste dia o Pontífice pôs-se a caminho de Roma, onde entrou aos 24 de maio, tendo passado por Savona. Ao deixar esta cidade, depositou uma coroa de ouro sobre uma imagem de Nossa Senhora; e mais tarde instituiu a festa de Nossa Senhora Auxiliadora a ser celebrada aos 24/05, dia do seu regresso a Roma.

Enquanto os romanos preparavam uma oração ao Pontífice na Cidade Eterna, Napoleão no mesmo castelo de Fontainebleau, testemunha das dores do Papa, era obrigado a abdicar (11/04/1814), recebendo em compensação a Ilha de Elba com o título de Imperador. – No ano seguinte, Napoleão escapou de Elba e reassumiu o governo da França por cem dias. Nessa ocasião o Papa se transferiu para Gênova, temendo a invasão de Roma por Joaquim Murat, rei de Nápoles e aliado de Napoleão. Todavia este foi definitivamente vencido em Waterloo (18/06/1815) e relegado para a ilha de Santa Helena. Nos restantes seis anos de vida do monarca, o Papa empenhou-se nobremente por aliviar a sorte do exilado, hospedando os familiares deste; venceu moralmente o herói do seu século, adquirindo grande prestígio junto aos seus contemporâneos.

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Uma vez livre das pressões napoleônicas, Pio VII aplicou-se a organização do Estado Pontifício, depredado pela guerra e a pilhagem dos franceses. Não conseguiu, porém, restituir completa tranquilidade a Itália. O regime pontifício tradicional era tido como um obstáculo a unificação da península, que os italianos almejavam especialmente por inspiração das campanhas napoleônicas. Surgiu então a sociedade secreta dos Carbonari, aos quais se opunham os Sanfedistas, defensores da Santa Fé. Para apoiar a Igreja, Pio VII, aos 07/08/1814, restaurou a Companhia de Jesus na Igreja Universal, convencido de que ela tinha sua missão a cumprir no século XIX.

Com a França e outros países da Europa as relações da Santa Sé melhoraram; foram assinadas diversas Concordatas que regeriam a situação da Igreja neste ou naquele país. Estes acordos testemunhavam o prestígio do Papa, que de novo era acatado como centro inabalável do governo da Igreja. Aliás, é de notar que o Congresso de Viena realizado em 1815 entre as potências europeias quis restaurar o Estado Pontifício quase na íntegra e reconheceu aos Núncios Apostólicos o direito de precedência em relação aos demais embaixadores.

Pio VII morreu em 1823 com 81 anos de idade, após um pontificado de mais de 23 anos. O seu governo ressentiu-se da falta de energia, que teria sido absolutamente necessária, mas assinala-se pela grande caridade do Pontífice para com seu adversário Napoleão. A história desse Papa é mais uma vez o testemunho de quanto infeliz foi, para a Igreja, a união com o Estado; em vez de colaborar com os grandes projetos pastorais do Papa, os regimes monárquicos procuraram aproveitar-se da Igreja para realizar seus planos políticos.

Prof. Felipe Aquino

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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