História da Igreja: O Século XI – Gregório VII

Gregorio VII

A primeira metade do século XI

Os primeiros decênios do século XI ainda foram humilhantes para o Papado. O despreparo moral dos que subiram à cátedra de S. Pedro, em boa parte, se devia à intromissão de grupos estranhos, que lutavam entre si para manipular o Papado: os nobres de Roma e arredores, os príncipes de Espoleto e da Toscana, os Imperadores da Germânia. Não poucos dos Papas da época obscura da Igreja foram homens de vida digna e doutrina ortodoxa, sufocados, porém, pela ingerência de facções civis. – O povo de Deus tinha consciência dos males que afetavam seus pastores: as crônicas de Liutprando de Cremona, tidas como tendenciosas, dão a entender que entre os cristãos havia horror perante os insucessos do Papado; estimavam o Papa e percebiam o hiato entre o ideal e a realidade.

Pode-se dizer que a réplica à dolorosa situação começa com a eleição do bispo Suidgero de Bamberga, que tomou o nome de Clemente II (1046-47). Os romanos conferiram então ao Imperador o título de Patrício Romano, que permitia ao monarca designar o Papa nas próximas vacâncias da sede pontifícia. Esta ficava, mais do que nunca, subordinada à ação do Imperador. Este estado de coisas não duraria muito, pois não era o ideal. Clemente II iniciou a obra de reforma da disciplina da Igreja, mas faleceu prematuramente.

S. Leão IX (1048-1054) foi um dos mais dignos Papas da história, dotado de energia e do desejo de reforma. Chamou para junto de si conselheiros de diversas regiões, entre os quais o monge Hildebrando, de Cluny, que ele constituiu arquidiácono e tesoureiro da Igreja Romana. Três males afetavam o clero na época, prejudicando duramente a vida da Igreja:

1. As investiduras leigas. Os bispados eram feudos ou territórios que deviam vassalagem ao monarca. Quando o senhor feudal era um leigo nobre, este desenvolvia a política que atendia aos seus interesses e aos de sua família, não raro em oposição ‘a política do rei ou Imperador. Ao contrario, quando o senhor feudal era um bispo, este, não tendo descendentes, era mais disposto a colaborar com o soberano; além do que, morto o bispo, o feudo voltava ao monarca, que tinha a liberdade de instituir o senhor feudal do seu agrado. Por isto os reis e Imperadores da época praticavam abusivamente o que se chamava “a investidura leiga”, isto é, nomeavam os bispos e conferiam-lhes as insígnias do poder temporal; ficava à Igreja apenas a tarefa de conferir a ordem sacra ao nomeado, isto é, o báculo e a mitra. Como se compreende, este costume, que teve origem no reino dos francos, acarretava não raro a escolha de bispos sem vocação, mais políticos do que pastores. – A Igreja tinha que se libertar de tal abuso;

2. A simonia ou a compra e a venda de bispados e outros bens eclesiásticos. Este mau costume estava frequentemente ligado ao anterior;

3. O nicolaísmo (ver Ap 2,6.15) ou o concubinato dos clérigos.

São Leão IX viajou pela Itália, a França e a Alemanha, disseminando, com resultado, os princípios de renovação da disciplina eclesiástica. O Papado assim ganhou prestígio e autoridade.

A obra iniciada por S. Leão IX devia frutificar plenamente no pontificado de S. Gregório VII.

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S. Gregório VII e Canossa

No mesmo dia do enterro de seu antecessor Alexandre II, aos 22/04/1073, foi aclamado Papa, pela voz do povo romano, o cardeal-arquidiácono Hildebrando, com o nome de Gregório VII. Os cardeais eleitores confirmaram o voto popular.

Gregório era nativo da Toscana. Fez-se monge na famosa abadia de Cluny (França). que era um foco ardente de piedade e virtude. Quando S. Leso IX passou por esse mosteiro, levou consigo o jovem monge, que serviu à Igreja sob cinco Papas consecutivos. Era homem ardoroso e enérgico, que tinha um grande programa, ao qual consagrou toda a sua vida: estabelecer a reta ordem, na qual os reis e príncipes, sob o primado do Papa, colaborassem concordes na construção de uma sociedade cristã. Era este, aliás, o ideal já acalentado por S. Agostinho (? 430) na sua obra “Da Cidade de Deus” e, depois, por S. Gregório Magno (590-604) e S. Nicolau I (858-67). Duas palavras condensavam o programa de Gregório VII: justiça (o direito de Deus) e paz (a união do poder eclesiástico e do poder civil); o Papa dizia que, como o corpo humano é dirigido por dois olhos, assim a Igreja deve ser guiada pelo Sacerdócio e o Império em harmonia.

A intenção de Gregório se formulava como se segue: “Que a Santa Igreja, Esposa de Deus, Senhora e Mãe Nossa, retomando o seu brilho originário, permaneça livre, casta e católica (universal)” (epístola 46).

Na execução deste plano, Gregório era movido por um zelo sincero, que se, depreende das seguintes palavras: “Muitas vezes roguei ao Senhor Jesus que ou me tire desta vida ou me torne útil à Mãe de todos” (Registr. II 49).

Quando Gregório assumiu o pontificado, o rei Henrique IV da Alemanha estava excomungado, pois mantinha contatos com bispos simoníacos, que haviam sido excomungados. Além disto, era ameaçado por uma revolta dos saxões. Por isto prestou penitência e prometeu colaborar com o Papa na reforma da disciplina.

Logo em 1074 Gregório VII reuniu um Sínodo no Latrão (Roma), que 1) proibia o exercício do ministério a todo clérigo simoníaco; 2) proibia a celebração da Liturgia a qualquer clérigo fornicador, e exigia dos fiéis que não participassem das cerimonias celebradas por um concubino. Estas normas tinham suas raízes em determinações de Concílios regionais dos séculos IV/VI. Nada inovavam, portanto, embora a praxe contrária estivesse muito espalhada.

No seguinte Sínodo (1075) Gregório deu mais um passo, voltando-se contra a investidura leiga; a liberdade da Igreja exigia a instituição canônica dos bispos em lugar da nomeação por príncipes seculares, e exigia que a Igreja dispusesse dos seus bens sem impedimentos.

Esta legislação devia levar a um conflito com Henrique IV. Em junho de 1075 o Imperador conseguiu vencer os saxões e esqueceu quanto prometera ao Papa: ocupou e distribuiu bispados da Itália, inclusive o de Milão, que não estava vago, e voltou a se relacionar com seus conselheiros excomungados. Diante disto, o Papa propôs conversações a Henrique, ao mesmo tempo que o ameaçava de excomunhão e deposição, caso se mostrasse recalcitrante. O monarca respondeu convocando um Sínodo para Worms (janeiro 1076), que, com a participação de 26 bispos, declarou o Papa deposto; Henrique mesmo escreveu um violento manifesto “a Hildebrando, não Papa, mas falso monge”, exortando-o, a título de Patrício Romano, a descer da cátedra apostólica. Mais: numa carta ao povo romano, o Imperador estimulava os fiéis a fazer nova eleição papal. Num Sínodo de Piacenza, os bispos locais consentiram na sentença de Worms.

Gregório, porém, estava apoiado por diversas correntes de cristãos. Intrépido, no Sínodo quaresmal de 1076 pronunciou a excomunhão sobre Henrique, desligou os seus súditos do juramento de fidelidade e proibiu a obediência ao soberano excomungado. Os bispos favoráveis a Henrique foram suspensos ou excomungados.

Henrique percebeu então que sua posição era arriscada. A maioria dos bispos e dos príncipes leigos da Alemanha resolveram considerá-lo deposto, caso não estivesse absolvido da excomunhão dentro de um ano. Em conseqüência, o rei, em pleno inverno de 1077, desceu à Itália e foi bater às portas do castelo da Condessa Matilde em Canossa (Apeninos), para onde o Papa se tinha retirado. Passou três dias consecutivos (25-27/01/1077), diante das portas, descalço e revestido de cilícios, pedindo a absolvição; depois de longas conversações, nas quais Matilde e o abade Hugo de Cluny (padrinho de Henrique) patrocinaram a causa do monarca, o Papa no quarto dia concedeu ao rei a reconciliação e a Eucaristia. O Imperador jurou ainda submeter seu litígio com os príncipes alemães ao arbítrio do Papa.

Gregório VII, ao absolver Henrique, foi movido por intenções pastorais, e não políticas. A humilhação do monarca redundaria em vantagens para este, porque de certo modo o reabilitava e fortalecia perante os príncipes alemães.

Os príncipes e bispos alemães, que se tinham oposto a Henrique, não se deram por satisfeitos com a absolvição deste; por causa de interesses políticos, queriam desembaraçar-se do rei. Em conseqüência, elegeram rei o duque Rodolfo da Suábia, que logo prometeu ao Papa obediência e eleições canônicas. Assim estourou a guerra civil na Alemanha, que terminou com a vitória de Henrique. Este exigiu do Papa a excomunhão do seu adversário e ameaçava eleger um antipapa, caso não fosse atendido. Gregório VII não se dobrou, mas o Sínodo quaresmal de 1080 de novo excomungou Henrique e desligou os súditos do juramento de fidelidade; além disto, renovava a proibição de investidura leiga.

A segunda excomunhão de Henrique não causou a mesma impressão que a primeira. A maioria dos bispos alemães colocou-se do lado do rei. Este, assim apoiado, conseguiu que um Sínodo em Brixen decretasse a excomunhão e a deposição do Papa acusado de simonia, heresia, necromancia e subversão da ordem! Em seu lugar, foi eleito o antipapa Clemente III (1080-1 100). Este foi logo excomungado por Gregório VII; Henrique desceu então com suas tropas para a Itália e em 1083, após três anos de cerco e distribuição de muito dinheiro, logrou apoderar-se de Roma, exceto o Castel Sant’Angelo, onde se refugiara o Papa. Este justificava sua resistência perseverante, dizendo: “Evidentemente é mais nobre lutar durante muito tempo em favor da liberdade da Santa Igreja do que submeter-se a mísera e diabólica servidão” (Registr. VIII 26).

O antipapa Celemente III, secundado por treze cardeais, foi instalado no palácio do Latrão e na Páscoa de 1084 coroou Henrique Imperador na basílica de São Pedro.

Gregório VII parecia condenado a cair nas mãos dos adversários, quando lhe foi em auxílio o duque normando Roberto de Guiscard. O numeroso exército de Roberto obrigou os alemães a se afastar de Roma. Todavia o saque também sofrido por obra dos normandos excitou grandemente a população contra Gregório; este, consequentemente, não pôde mais permanecer na sua cidade, mas teve de se refugiar em Salerno (Itália meridional), que estava sob domínio normando (1085). No seu exílio, o Papa gozava de liberdade; em fins de 1084 reuniu um Sínodo, que renovou a excomunhão de Clemente III e Henrique IV; depois disto, mandou legados a diversos países para proclamarem a sentença.

Em 1085, Gregório, alquebrado por muitas fadigas, mas de ânimo ainda enérgico, veio a falecer. Atribuem-lhe como últimas palavras: “Dilexi iustitiam e odivi iniquitatempropterea morior in exsilio. – Amei a justiça e odiei a iniquidade; por isto morro no exílio”. A morte no exílio não era senão uma derrota aparente: o plano de purificação e libertação da Igreja não seria mais entravado; os sucessores de Gregório colheram os frutos que este semeou; o Papado cresceu em prestígio moral, jurídico e político, devendo atingir o apogeu da sua influência nos tempos de Inocêncio III (1198-1216).

Num juízo objetivo, deve-se dizer que Gregório VII foi um dos maiores Papas da Idade Média, embora tenha sido combatido posteriormente como ditador e imperialista. Soube subordinar todos os interesses da Santa Sé à sua função pastoral, pois não hesitou em absolver e reabilitar o adversário que havia de desferir o golpe mortal contra o Papa; soube ser um mau político para ser um bom Sacerdote; desde que, em consciência, julgou que Henrique podia merecer a reconciliação, concedeu-lha, ainda que em detrimento dos interesses temporais do Papado. Na realidade, Gregório procurou dar a César o que é de César: aspirou a criar, dentro de um Estado cristão, a harmonia entre o poder espiritual e o temporal; haveria a existência paralela do Sacerdócio e do Império, cada qual colaborando em sua esfera para realizar a síntese da Cidade de Deus: o Estado deveria proteger materialmente a Igreja, e esta haveria de sustentar espiritualmente o Estado. Tais princípios estão espalhados pela ampla correspondência deixada por Gregório.

O pontificado de Gregório VII teve outros aspectos, além do que foi até aqui apresentado. O Papa não se descuidou da Igreja universal esparsa em toda a Europa, na Ásia e na África, como atestam as suas cartas; estas manifestam a amplidão de seus horizontes e a energia com que sempre abordou os desafios da sua missão. Foi o primeiro a conceber a ideia de uma Cruzada (coisa muito santa naquela época): A frente de grande exército, queria pessoalmente dirigir-se A Terra Santa, afim de libertar o Sepulcro do Senhor em Jerusalém e promover a união com os gregos cismáticos (1074); na sua ausência, confiaria o patrimônio da Igreja Romana ao rei Henrique IV da Alemanha – o que bem mostra quão pouco pensava em conflito no início do seu pontificado.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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