História da Igreja: O Cisma Anglicano

O movimento reformador chegou à Inglaterra em condições singulares. O Cristianismo britânico sempre teve suas características próprias, em parte por causa da sua posição geográfica (a Inglaterra é uma ilha!); as tendências a formar uma Igreja nacional foram-se acentuando através dos séculos; John Wiclef no século XIV e os humanistas nos séculos XV e XVI prepararam a via para a aberta revolução religiosa. Esta se deu realmente no século XVI: a princípio tinha apenas o aspecto de um cisma sem heresia (cisma devido a ambição pessoal de um rei, sem que o povo participasse da revolta); só aos poucos é que as ideias protestantes foram entrando na comunidade britânica.

Henrique VIII (rei de 1509 a 1547)

Henrique VIII, nos primeiros tempos do seu governo mostrou-se zeloso pela fé tradicional. Em 1521, contra a obra de Lutero sobre “o Cativeiro babilônico” escreveu uma “Afirmação dos Sete Sacramentos”, que lhe valeu do Papa Leão X o título de “Defensor da Fé”. Não obstante, havia de ser arrastado por seus afetos.

Em 1509 Henrique esposou Catarina de Aragão, viúva de seu irmão Artur. Deste casamento teve vários filhos, dos quais um só – Maria Tudor – ficou em vida. Com o tempo, Henrique apaixonou-se por uma cortesã: Ana de Boleyn. Por isto procurou dissolver o seu casamento com Catarina, alegando que fora nulo, porque os nubentes eram cunhados em primeiro grau. Tal pretexto era falso, porque o Papa Jolio II dera a Henrique explícita dispensa para se casar com Catarina; somente após dezoito anos de vida conjugal, Henrique trazia à tona esse “impedimento”. A corte real favorecia os anseios do rei. A rainha Catarina apelava para a Santa Sé, pedindo justiça. o Papa Clemente VII resolveu entregar o exame do processo a um tribunal de Roma (julho 1529).

Em janeiro de 1531 o Papa proibiu a Henrique novas núpcias enquanto a causa estivesse sob julgamento. o rei, vendo que pouca esperança lhe restava, quis obter a dissolução do seu casamento da parte da hierarquia da Inglaterra; Thomas Cromwell, obscuro advogado, que adquirira influência sobre o rei, aconselhava a Henrique que, a exemplo dos príncipes alemães, se separasse de Roma. Em fevereiro de 1531 uma assembleia do clero, instigada pelo rei, proclamou Henrique “Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra”, com a clausula “na medida em que a Lei de Cristo o permite”. Em 1532 o rei elevou à sé arquiepiscopal de Cantubria Thomas Cranmer, que numa viagem a Alemanha tinha entrado em contato com o luteranismo; Cranmer resolveu declarar nulo o casamento de Henrique VIII, de modo que este se casou em 1533 com Ana Boleyn. O Papa respondeu excomungando o monarca e finalmente declarando válido o casamento com Catarina. O cisma estava ás portas: em novembro de 1534, o Parlamento inglês votou o “Ato de Supremacia”, que proclamava ser o rei o Único e Supremo Chefe da Igreja na Inglaterra; os súditos que não reconhecessem este Ato, seriam punidos com a morte.

A grande maioria do clero submeteu-se, talvez porque acostumada ao conceito de Igreja Nacional e bastante mundanizada. Resistiram, porém, até a morte vários leigos e clérigos, dos quais se destacam o leigo Tomás Moro e o bispo John Fisher. Muitos mosteiros foram fechados, relíquias e imagens foram destruídas.

Apesar do cisma e das pressões luteranas, o rei queria conservar íntegra a fé católica na Inglaterra; combatia tanto a adesão ao Papa quanto as inovações religiosas do continente.

Este estado de coisas permaneceu até a morte de Henrique VIII.

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Eduardo VI (1547-53)

Henrique teve por sucessor um filho de dez anos, que lhe nascera do seu terceiro matrimônio. Este menino, Eduardo VI, teve como tutores o duque de Somerset e o de Northumberland, que, juntamente com o arcebispo Cranmer, muito trabalharam pela introdução da teologia protestante na Inglaterra.

Cranmer proclamou o jovem príncipe rei por direito divino imediato, com plenos poderes no plano espiritual e no temporal. Foram chamados do continente teólogos protestantes, como Bernardino Ochino (capuchinho que apostatara em 1542), Martinho Bucer, João Laski; o próprio Calvino deu instruções escritas para se efetuar a protestantização da Inglaterra. os novos mentores elaboraram o Book of Common Prayer (Livro de oração Comum), que introduzia uma nova liturgia em inglês, abolia o caráter sacrifical da Missa, prescrevia a comunhão sob as duas espécies, mas ainda guardava muitos elementos do Missal e do Ritual católicos.

Em 1553 foi promulgada uma Confissão de Fé em 42 artigos, que seguia principalmente Calvino no tocante a predestinação e à Eucaristia, mostrando-se em outros pontos luterana, zwingliana e até católica; com algumas modificações, ainda é a regra de fé da Comunhão Anglicana (também dita episcopaliana, porque não aboliu a hierarquia da Igreja, com seus bispos).

As inovações assim introduzidas tiveram seus adversários no reino. Em 1549 William Paget escrevia que “o exercício da antiga religião era proibido pela lei, mas a nova ainda não se tinha assentado no estômago de onze das doze partes do reino”. Houve revoltas em diversos condados. Os pobres esfomeados vagueavam aos bandos, sem poder recorrer aos mosteiros, que iam sendo fechados; contra essa população carente foram promulgadas leis desumanas. Na corte, havia rivalidades, ambições e corrupção moral; as oposições teológicas dividiam sempre mais os responsáveis pela reforma no país. O mal-estar se tornou tamanho que, quando Eduardo VI morreu (aos 16 anos de idade) em 1553, a nação em massa se pronunciou pela princesa Maria a Católica, filha de Henrique VIII e Catarina, contrariando a designação que Eduardo fizera em favor de Joana, cortesã de sangue real, protestante.

Maria Tudor e Elisabete

Maria Tudor

Maria Tudor (1553-8) revolveu a situação; era católica convicta e pôs-se a trabalhar apoiada por seu primo, o Cardeal Reginaldo Pole, legado papal.

Em 1554 o Parlamento votou a nova união da Inglaterra com a Santa Sé. Os prelados depostos por Eduardo VI foram restituídos as suas sedes, enquanto os hereges, vindos do estrangeiro, foram expulsos.

A rainha Maria, no seu zelo restaurador, adotou medidas extremas, semelhantes as que Henrique VIII tomara contra os católicos; foram condenados à morte 280 dissidentes, entre os quais Thomas Cranmer. Esse zelo excessivo era, em parte, favorecido pelo povo, mas encontrou desaprovação da parte de católicos, que se tornaram avessos à rainha, chamada “Maria, a Sanguinária”. Esta tornou-se impopular também por seu casamento com Filipe, filho de Carlos V, que pouco depois subiu ao trono da Espanha com o nome de Filipe II. Morreu prematuramente (1558); pouco depois do seu desaparecimento, extinguia-se a restauração católica na Inglaterra.

Elisabete

Seguiu-se-lhe no trono uma filha de Ana de Boleyn com Henrique VIII: a rainha Elisabete (1558-1603), visto que Maria não deixara herdeiros. A nova soberana elevou a Inglaterra a extraordinário poder político e ecumênico, bem assegurado contra a França e a Espanha. A sua religiosidade era misteriosa: convertera-se ao catolicismo sob Maria, e, elevada ao trono, continuava a frequentar a Missa, confessar-se e comungar. Estas atitudes, porém, não eram profundas e cediam a interesses políticos. No dia de sua coroação, jurou conservar a religião católica no país; não obstante, motivos de conveniência levaram-na a violar a sua palavra. os católicos a consideravam rainha ilegítima, e propunham Maria Stuart da Escócia como herdeira legítima do trono. Isto fazia Elisabete inclinar-se cada vez mais para o protestantismo. Em consequência, sob as aparências de católica, foi tomando medidas anticatólicas e antipapais. Libertou os teólogos presos na Inglaterra, e chamou de volta os pregadores de novidade outrora expulsos.

Em 1559 foi publicado o “Ato de Uniformidade”, que renovava a liturgia única no reino, promulgada por Eduardo VI. O Parlamento declarou a rainha Suprema Autoridade do reino em assuntos espirituais e temporais. Exigiu-se o “juramento de supremacia” de todos os servidores do Estado e da Igreja na Inglaterra. De dezesseis bispos católicos, quinze o recusaram e foram depostos e encarcerados; só ficou solto o bispo Kitchen, de Llandaff, que, tendo dado resposta evasiva, conseguiu conservar a sua sé mas de então por diante se absteve de qualquer função episcopal. Do baixo clero só pequena parte teve a coragem de resistir.

Para restaurar a hierarquia episcopal na Inglaterra, foi escolhido como arcebispo de Cantuária um antigo capelão da rainha, Mateus Parker, que recebeu a ordenação episcopal aos 17/12/1559, às 5 horas da manhã, na capela de Lambeth, segundo um Ritual novo, chamado ordinal, confeccionado sob o rei Eduardo VI. o sagrante foi um bispo deposto, que se prestou a tal ofício: William Barlon, ex-titular da diocese de Bath, ordenado ainda sob Henrique VIII validamente. Mateus Parker, uma vez ordenado bispo, ordenou outros bispos, reconstituindo assim a hierarquia na Inglaterra. Após longos estudos de peritos, que investigaram de perto os fatos, o Papa Leão XIII até 1896 declarou inválidas as ordenações anglicanas, baseando-se em dois motivos principais:

1. insuficiência do rito (o ordinal de Eduardo VI excluía qualquer alusão à Missa como sacrifício de Cristo perpetuado sobre os altares pelo ministério dos sacerdotes);

2. falta de intenção devida (William Barlon queria constituir uma hierarquia diversa daquela que Cristo fundou, desvinculada do Santo Sacrifício da Missa). E por isto que até hoje a Igreja Católica não reconhece as ordenações anglicanas, embora o assunto possa ser reestudado na base de novos aspectos que os estudiosos têm trazido a tona em ampla bibliografia. Este ponto é decisivo para o reatamento entre a Santa Sé e o Anglicanismo, que de resto vai sendo facilitado por conversações teológicas bem sucedidas.

Em 1563 os 42 artigos de Eduardo VI, reduzidos a 38, foram promulgados de novo como confissão de fé oficial. Aos insubordinados era imposta a perda dos bens e da liberdade. Em 1570 o Papa Paulo IV excomungou e declarou deposta Elisabete – o que provocou, da parte da rainha, novas leis, mais rigorosas, e execuções capitais. Os católicos ingleses sofriam duramente, considerados como traidores do Estado; as conspirações contra a rainha eram cruelmente punidas. Em 1588 Filipe II, da Espanha, armou uma frota formidável (a Armada) com o fim de ir estabelecer na Inglaterra o domínio espanhol e a fé católica; mas a expedição foi destroçada por uma tempestade. Isto só fez aumentar a violência.de Elisabete, de tal modo que, em consequência de execuções e apostasias, os católicos se viram reduzidos a minoria insignificante.

As leis repressivas anticatólicas foram sendo abrandadas nos dois últimos séculos. Mas conservaram seu rigor no Estado de Ulster, que equivale a 20% do território da ilha da Irlanda. Em 1921, 80% da ilha tornou-se independente da Inglaterra. A região de Ulster, porém, com sua capital em Belfast, é governada por um Partido protestante dito “de Orange”, que mantém até hoje a antiga legislação discriminatória em matéria de religião, favorecendo a população protestante, com prejuízo de 500.000 católicos lá residentes. É o que explica os constantes choques entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte.

Ainda é de notar que o Ato de Uniformidade da rainha Elisabete, prescrevendo uma Liturgia ainda apegada às tradições, provocou a oposição de protestantes impregnados do severo espírito do calvinismo: queriam abolir o canto eclesiástico, o som do órgão, o sinal da cruz, os paramentos sacerdotais, os dias festivos… Já que desejavam uma Igreja “absolutamente pura” e “conforme as Escrituras”, independente do Estado e isenta de todo “fermento papista”, receberam o predicado de “puritanos”. As suas pretensões foram repelidas pelo Governo inglês, de modo que sofreram perseguições. Constituiram a Low Church, Baixa Igreja, em oposição à High Church, Alta Igreja, oficial. Desde 1567 começaram a fundar Igrejas por conta própria, entre as quais se destaca o Congregacionalismo (não há hierarquia, mas a congregação se governa mediante seus representantes). Esses grupos de “não conformistas” (dissenters) eram tenazes, resistindo ás repressões empreendidas por Elisabete I e Jaime I. Em consequência, mais de 20.000 puritanos, entre os quais os 102 “Pais peregrinos” de 1620 embarcados na nave Mayflower, abandonaram a patria-mãe e foram fundar suas colônias na Nova Inglaterra ou América do Norte; aí sofreram intolerância durante algum tempo, mas foram posteriormente aceitos. São as denominações protestantes domiciliadas ou fundadas nos Estados Unidos que enviam pregadores para o Brasil, com traços mais ferrenhos e proselitistas do que as denominações clássicas do protestantismo europeu (luterano, anglicano).

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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