História da Igreja: Baianismo e Jansenismo

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Os Reformadores protestantes lançaram de novo o problema da graça divina e da liberdade do homem, já estudado por São Agostinho. Apoiando-se na doutrina deste mestre, eram pessimistas em relação a natureza humana e as suas capacidades.

Esta temática, complexa como é, continuou a. ser debatida dentro da Igreja Católica após o Concílio de Trento (que apenas falara de cooperação entre graça e liberdade), gerando as controvérsias do Baianismo e do Jansenismo.

Baianismo

Miguel de Bay ou Baius (+1589) era professor de Exegese Bíblica na Universidade de Louvain (Bélgica) desde 1552. Desejava reconciliar os reformados com os católicos, valendo-se de escritos de S. Agostinho, que Lutero e os reformadores muito tinham respeitado. Relendo S. Agostinho a seu modo, passou a negar o caráter gratuito e o sobrenatural do estado paradisíaco (a graça, os dons do Espírito Santo e a visão beatífica seriam devidos à natureza humana como tal). Em consequência, afirmava que a natureza humana foi corrompida pelo pecado de Adão, não é mais livre; nem é capaz de realizar o bem, como também não pode resistir é graça de Deus. Juntamente com muitos adeptos, Baio teve numerosos adversários, especialmente entre os franciscanos belgas e os jesuítas; os Padres Lessius S.J. e Hamel S.J. foram por Baio acusados de semipelagianismo, porque pareciam enfatizar demais o livre arbítrio do homem. Em 1567 o Papa Pio V, sem citar nome algum, condenou 79 proposições de Baio e dos seus seguidores, parte como heréticas, parte como escandalosas ou suspeitas; Paio retrucou ao Papa; por isto Gregório XIII em 1579 voltou a condená-las – o que levou Baio a sujeitar-se em 1580, sem, porém, abraçar as doutrinas de seus adversários franciscanos e jesuítas. O assunto não estava encerrado, como passamos a ver:

O Jansenismo (1)

Jansen, um professor da Universidade de Louvain, continuou a difundir secretamente as idéias de Baio, querendo combater os jesuítas (especialmente Lessius), que pareciam dar preponderância as forças humanas na conquista da salvação eterna. Jansen encontrou dois discípulos famosos: o holandês Cornélio Jansênão e o francês Duvergier de Hauranne. O primeiro se tornou professor de Teologia na Universidade de Louvain (1617) e morreu como bispo de Ypres (1638). Hauranne foi nomeado abade comendatário de Saint-Cyran e procurava influenciar o público pela direção de consciência e a publicação de escritos anônimos e pseudônimos.

Ao morrer, Jansênão deixou seu livro “Augustinus” inédito, que saiu em edição póstuma em 1640, sem a autorização de Roma e à revelia dos jesuítas. Era uma reafirmação dos erros, de Baius sob o manto de S. Agostinho; o autor lera trinta vezes todos os escritos de Agostinho contra os pelagianos e trabalhara vinte anos na redação respectiva; professava logo no início do livro submissão à Santa Sé e é infalibilidade do Papa.

Em 1642 Urbano VIII proibiu a leitura dessa obra. os amigos de Jansênão tomaram isto como um ataque à doutrina de S. Agostinho. Saint-Cyran procurou ganhar para a sua causa os círculos influentes: conseguiu a adesão do famoso teólogo Antónão Arnauld (t 1694) e das monjas cistercienses de Port-Royal (perto de Paris), das quais Saint-Cyran era confessor e cuja abadessa, Angélica, era irmã de Antónão Arnauld. Formou-se aos poucos um partido jansenista, que tinha seus principais adversários entre os jesuítas: estes eram tidos como semipelagianos e laxistas pelos adeptos de Jansênão.

Visando a defender sua causa, A. Arnauld publicou em 1643 um livrinho “Sobre a Comunhão Frequente”, em que combatia a recepção amiudada dos sacramentos recomendada pelos jesuítas; estabelecia condições rigorosas para que alguém pudesse receber a Eucaristia ou mesmo a absolvição dos pecados (a comunhão seria prêmio da virtude praticada pelo cristão); o autor julgava estar assim restaurando a disciplina da antiga Igreja. Teve grande sucesso; o Parlamento de Paris colocou-se ao lado dos jansenistas. A situação foi levada ao conhecimento da Santa Sé com o pedido de intervenção. Depois de longas deliberações, o Papa Inocêncio X, na Bula Cum occasione de 31/05/1653, condenava como heréticas as cinco proposições seguintes, tiradas do “Augustinus”:

1. Alguns preceitos de Deus são impraticáveis mesmo para os homens justos e de boa vontade, que tentem cumpri-los segundo suas forças. Falta a esses homens a graça que tome os mandamentos exequíveis.

2. Nas condições da natureza decaída, nunca alguém pode resistir a graça Interior.

3. Para merecer e desmerecer no estado da natureza decaída, não é necessária liberdade interior, mas basta a isenção de coação extrínseca.

4. O homem nunca pode resistir a graça de Deus.

5. Cristo não morreu por todos os homens.

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História da Igreja: Galicanismo e Febronianismo

Esta condenação não pôs termo aos debates. Arnauld e seus amigos reconheceram o caráter herético das sentenças condenadas, mas negaram que elas fossem a doutrina de Jansênão; o Papa as teria entendido em sentido calvinista, que não era o sentido de Jansênão. o Papa, porém, declarou que quisera condenar a doutrina de Jansênão como tal. os jansenistas replicaram, distinguindo “questão de direito” e “questão de fato”: a Igreja, diziam, é infalível ao decidir se uma doutrina em si é herética ou não, mas não é infalível ao julgar um mero fato histórico, isto é, se um teólogo proferiu esta ou aquela doutrina; neste último caso, a Igreja não poderia exigir um assentimento interior ao juízo que ela profere, mas apenas um “silêncio obsequioso” (com discordância interior). Esta distinção deu novo alimento a luta. Depois de discussões acesas, a Sorbona (Universidade de Paris fundada em 1253 por Roberto de Sorbon) expulsou em 1656 Arnauld e sessenta outros mestres.

Entrementes entrou em cena o famoso filósofo e matemático Blaise Pascal. Irmão da monja Jacqueline, de Port-Royal, agregou-se em 1654 ao grupo dos Solitários, perto de. Paris: estes eram homens austeros, que, mesmo sem votos religiosos, oravam, trabalhavam e se mortificavam, mantendo o oficio Divino a noite e períodos de silêncio; hospedavam visitantes que com eles quisessem passar alguns dias de retiro o que muito impressionava o público de Paris. Pascal resolveu dedicar sua atenção aos problemas religiosos que fervilhavam no ambiente; assimilou as doutrinas apregoadas por Arnauld e seus adeptos, e colocou sua pena mordaz a serviço dos jansenistas contra os seus adversários, principalmente os jesuítas. Usando o pseudônimo Louis de Montalde, escreveu as suas famosas “Cartas Provinciais” (1656/7), dirigidas contra a imoralidade da sociedade de Paris e a Companhia de Jesus, tida como laxista em Moral. As sátiras de Pascal foram traduzidas para outras línguas e causaram enorme mal é Companhia, que não merecia tal tratamento.

A partir de 1660, o rei Luis XIV da França, por motivos políticos, pós-se a combater o jansenismo, o que agravou a situação. Em 1665 apareceu uma Carta Pastoral de quatro bispos franceses, que recomendavam apenas o silêncio obsequioso 62… O Papa Alexandre VII condenou os quatro bispos e instituiu uma comissão de nove bispos para julgá-los; os quatro prelados protestaram em nome das “liberdades galicanas”, segundo as quais o Papa não tinha o direito de julgar os bispos do reino.63 Assim o jansenismo e o nacionalismo francês (galicanismo) se associaram no combate a Roma.

Mas, sob o sucessor de Alexandre VII, inesperadamente os quatro bispos assinaram um formulário de sujeição a Santa Sé; ao mesmo tempo, porém, professaram a sua convicção jansenista num protocolo que devia ficar secreto (1668). O Papa deu-se por satisfeito com o gesto público dos quatro prelados e em 1669 concedeu a reconciliação a todos os jansenistas; era a Paz Clementina, que os rebeldes receberam em atitude de triunfo; o Papa Clemente XI teria anulado os atos de seus predecessores e aprovado o silêncio obsequioso.

O Jansenismo (2)

Nos decênios seguintes, o jansenismo as ocultas continuou a se difundir. Mas no início do século XVIII reabriu-se a luta pública e calorosa.

Começou-se a discutir de novo a questão: pode ser absolvido em confissão quem observa apenas um silêncio obsequioso? Quarenta doutores da Sorbona responderam afirmativamente. Diversos bispos e o próprio Papa Clemente XI rejeitaram essa sentença em 1703. Em 1705 o Pontífice publicou a Bula Vineam Domini, em que mais uma vez declarava insuficiente o silêncio obsequioso e exigia a condenação das cinco sentenças do livro “Augustinus” de boca e de coração. A Bula não teve o efeito desejado. O clero francês, impregnado de nacionalismo separatista, na assembléia geral de 1705 declarou que as instruções papais só obrigam os fiéis quando reconhecidas e confirmadas pelos bispos locais. O Papa protestou contra esta atitude, mas com pouco sucesso. Também as monjas de Port-Royal, “puras como os anjos, mas orgulhosas como os demônios”, resistiram ao Papa; então o Governo Francês em 1705, com a aprovação do Pontífice, mandou fechar o Mosteiro, destruir o respectivo edifício e a igreja.

A esta altura, novo foco se acendeu para alimentar a discussão jansenista. O Padre oratoriano Pascásio Quesnel (?1719) publicou o livro “Reflexões morais sobre o Novo Testamento”, tendo a aprovação do bispo Luis Antonio de Noailles. Era obra imbuída de jansenismo, que encontrou larga aceitação. Os jesuítas conseguiram que Clemente XI censurasse o livro em 1708 e proibisse, sob pena de excomunhão, a sua leitura. Diante da resistência a ordem do Papa, Clemente XI mandou reexaminar o livro e condenou 101 sentenças do mesmo mediante a Bula Unigenitus de 1713. Recomeçou então o jogo dialético: já que muitas sentenças extraídas do seu contexto pareciam ter sentido ortodoxo, o Cardeal de Paris e sete bispos recusaram-se a aceitar a decisão papal; a corrente destes contestatórios foi-se avolumando e apelou para um Concílio Ecumênico. Assim dividiu-se a França em partido dos “Aceitantes” e partido dos “Apelantes” ou “Anticonstitucionalistas”; aqueles usavam faixas de seda castanha e branca, e estes, faixas pretas e vermelhas.

A situação foi se agravando até o perigo de um cisma. Em 1718 Clemente XI excomungou os Apelantes. Muitos deles rejeitaram a decisão papal. O acirramento das posições chamou a atenção do novo rei Luis XV, pois o fanatismo dos jansenistas constituía uma ameaça não só a Igreja, mas também a nação. o poder civil adotou medidas repressivas, que chegaram a reduzir o Cardeal Noailles, de Paris, à submissão; a maioria dos outros Apelantes seguiu-lhe o exemplo.

Os obstinados apelaram então para sinais do céu em favor da sua causa: um diácono jansenista, Francisco de Paris, morreu em 1727 e foi sepultado no cemitério de S. Medardo; ora os devotos que iam rezar junto ao túmulo, afirmavam que lá se produziam milagres, visões e êxtases; as curas eram obtidas por meio de convulsões em torno do túmulo, enquanto se recitavam imprecações contra o Papa, a Bula e os Bispos. O apelo a esses critérios extraordinários não conseguiu deter o desmoronamento do jansenismo. Em 1732 o rei mandou fechar o cemitério e um humorista escreveu no portão: “Por ordem do rei, Deus está proibido de fazer milagres neste lugar”.

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A ação conjunta do rei e da Igreja conseguiu extinguir aos poucos o jansenismo na França. A tarefa não foi fácil por causa das paixões e porque os Parlamentos de Paris e das províncias se opunham as medidas repressivas do rei..; opunham-se por causa do galicanismo (nacionalismo eclesiástico), que o rei Luis XIV havia fomentado; quando o monarca quis agir com Roma contra o jansenismo, sentiu a resistência.

Todavia, enquanto o jansenismo propriamente dito desaparecia, ficava na piedade do povo acentuada tendência rigorista, associada a idéias galicanas, como se verá em capítulos seguintes. Até S. Pio X (1903-1914) os fiéis pouco recebiam a Comunhão Eucarística por causa do temor incutido pelo Jansenismo.

Na Holanda o Jansenismo conseguiu produzir o cisma ao qual escapou a França de Luis XIV. Vários jansenistas de renome, entre os quais Quesnel, para lá se retiraram. Em 1723 quatro sacerdotes jansenistas de Utrecht lembraram-se de restaurar o arcebispado dessa cidade, que se convertera ao calvinismo. Um deles, Cornélio Steenhoven, fora escolhido como titular; encontrou-se quem o ordenasse arcebispo – o bispo Varlet, das Missões Estrangeiras de Paris, jansenista suspenso. O terceiro sucessor de Steenhoven ressuscitou os bispados de Harlem (1742) e Deventer (1758), criando assim a Igreja cismática de Utrecht, que ainda hoje existe. Os velhos-católicos alemães (dos quais falará o capítulo 49) entraram em relação com os jansenistas de Utrecht, formando união com eles em 1889.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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