Fé e Razão – EB (Parte 1)

Revista: PERGUNTE E RESPONDEREMOS

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº  441 – Ano : 
1999 – p. 50

 

Em síntese:  O Papa João Paulo II publicou a sua última
Encíclica aos 15/10 pp., dedicando-o ao binômio “Fé e Razão”.  Quer atender à situação de angústia e
desespero de muitos cidadãos contemporâneos, que buscam, sem o encontrar, o
sentido da vida ou a sua identidade: 
“Quem sou eu?  Donde venho?  Para onde vou?”.  Está claro que somente Deus, pela revelação
de seu plano de amor feita mediante Jesus Cristo, pode responder plenamente a
tal anseio.  Todavia a fé tem suas bases
razão humana, que não é, como dizem pensadores modernos, incapaz de reconhecer
a Verdade objetiva; a razão aponta as credenciais para a fé, a fim de que esta
não degenere em fantasia ou superstição. 
É  preciso, pois, restaurar a
confiança no intelecto, que foi para apreender a dos escolhos do historicismo,
do ecleticismo, do cientificismo, do niilismo …  Razão e Fé se complementam mutuamente, de
modo que se há de dizer racionalismo (que só aceita o que a razão pode
demonstrar).  A Filosofia, que aponta na
Metafísica a Causa Primeira e o Fim Último, há de ser, em nossos dias, o
terreno comum em que se realize o diálogo entre cristãos e ateus.

Aos 14/09/1998 o Santo Padre
João Paulo II assinou a sua última Carta Encíclica, que começa pelas palavras
Fides et Ratio (Fé e Razão).  É, de certo
modo, a continuação da Encíclica Veritatis Splendor (O Esplendor da Verdade),
que em 1993 abordava a verdade perene como referencial da Ética.  A nova Encíclica vai ao fundo da questão,
considerando as possibilidades de chegar o homem a atingir a Verdade.

Nas páginas subseqüentes
apresentaremos uma síntese desse importante documento.

Introdução: “Conhece-te a ti
mesmo” (nº 1-6)

A partir do cap. 2 da sua
Encíclica, o Papa quer mostrar que a própria revelação divina incita o homem a
procurar a verdade mediante o exercício da inteligência ou da razão.  Esta é valorizada como instrumento precioso
de acesso à verdade.

A Filosofia até o século XVI
sempre atingiu a Primeira Causa e o Último Fim em seu tratado de Metafísica; o
acume da razão, devidamente cultivada, leva o homem a perceber o sentido da sua
existência, pois lhe aponta uma significação transcendental: os anseios do
homem à verdade, à vida, ao amor, à felicidade (…), não são frustrados, pois
Deus lhes assegura a autêntica resposta. 
Todavia, a partir do século XVI, a Filosofia tem-se voltado para crítica
do conhecimento, desacreditando a razão e sua capacidade de chegar à plena
verdade: o sensismo, o idealismo e o existencialismo têm solapado a capacidade
da razão – o que suscita o vazio e o desdém do viver humano.

Pois bem.  O Papa deseja reafirmar a capacidade, do
intelecto humano, de reconhecer a verdade plena.  Se o homem possui uma demanda congênita de
luz para a sua mente, não pode deixar de ter em si uma faculdade intelectiva,
apta a captar essa luz da Verdade.

Pode-se definir o homem como
aquele que procura a Verdade.  É
impossível que uma busca, tão profundamente radicada na natureza humana, seja
frustrada e vã.  A própria capacidade de
procurar a Verdade e fazer perguntas implica já uma primeira resposta.  “O homem não começaria a procurar uma coisa
que ignorasse totalmente ou considerasse absolutamente inatingível”  (nº 28s).

A Igreja desde cedo
valorizou a pesquisa intelectual.  São
Justino (+ 165), Clemente de Alexandria (+ 213), S. Agostinho (+ 430) foram
pioneiros desse cultivo da razão posta à procura de respostas fundamentais.  S. Tomás de Aquino (+ 1274) foi um notável
expoente dessa tarefa.

Ocorre, porém, que a razão,
limitada como é, não descobre toda a Verdade. 
Ela reconhece que a Verdade continua mesmo quando seu raio de alcance
termina.  Com efeito: o Deus que a
Metafísica apreende como o Primeiro Movente Imóvel, é também o Deus que se
revela aos homens mediante os Patriarcas, os Profetas e Jesus Cristo.  Assim o homem é levado pela própria razão a
conceber a fé; esta se acha na linha mesma do discurso racional e recebe deste
as duas credenciais.  Ninguém deve crer
sem se dar conta das razões que o levam a crer; a fé não é um ato cego ou
sentimental, mas é um ato de inteligência movida pela vontade a aderir à
Palavra de Deus.  Aliás, verifica-se que
o ato de crer não é estranho a homem algum. 
Com efeito; todos vivem numa sociedade que tem sua história passada e
suas tradições; quem as pode controlar com precisão?  Todos dependem das notícias que diariamente
lhes são transmitidas pelos meios de comunicação social; quem poderia, por
conta própria, avaliar o fluxo de tais informações, que geralmente são aceitas
como verdadeiras?  Donde se vê que crer
não é algo que exorbite o costumeiro da vida humana.  De resto, não há contradição entre razão e
fé, mas, ao contrário, convergência em demanda da única e plena Verdade.  “A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de
Deus, argumenta São Tomás; por isto não se podem contradizer entre si”  (nº 43).

“A fé requer que o seu
objeto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez, a razão, no apogeu
da sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta” (nº 42).

Por conseguinte, vão
rejeitadas duas posições extremas: o fideísmo e o racionalismo.  O fideísmo priva a fé do apoio da razão ou
das suas credenciais racionais …; o racionalismo só aceita o que a razão pode
demonstrar.  Ao fideísta dir-se-á:  “Intelige ut credas. Raciocina, para que
possas chegar à fé”.  E ao racionalista:
“Crede ut intelligas.  Acredita para que
possas compreender”.

“52.  Não foi só recentemente que o Magistério da
Igreja interveio para manifestar o seu pensamento a respeito de determinadas
doutrinas filosóficas.  A título de
exemplo, basta recordar, no decurso dos séculos, as tomadas de posição acerca
das teorias que defendiam a preexistência das almas, e ainda sobre as diversas
formas de idolatria e esoterismo supersticioso, contidas em teses astrológicas;
sem esquecer os textos mais sistemáticos contra algumas teses do averroísmo
latino, incompatíveis com a fé cristã.

Se a palavra do Magistério
se fez ouvir mais freqüentemente a partir da segunda metade do século passado,
foi porque, naquele período, numerosos católicos sentiam o dever de contrapor
uma filosofia própria às várias correntes do pensamento moderno.  Daqui resultou, para o Magistério da Igreja,
a obrigação de vigiar a fim de que tais filosofias não degenerassem, por sua
vez, em formas errôneas e negativas. 
Acabaram assim censurados os dois extremos:  dum lado, o fideísmo e o tradicionalismo radical,
pela sua falta de confiança nas capacidades naturais da razão; e, do outro, o
racionalismo e o ontologismo, porque atribuíam à razão natural aquilo que
apenas se pode conhecer pela luz da fé. 
Os conteúdos positivos deste debate foram formalizados na Constituição
Dogmática Dei Fillus, por meio da qual um Concílio ecumênico – o Vaticano I –
intervinha, pela primeira vez e de forma solene, sobre as relações entre razão
e fé.  A doutrina contida neste texto
marcou, intensa e positivamente, a investigação filosófica de muitos crentes e
constitui ainda hoje um ponto normativo de referência para uma correta e
coerente reflexão cristã neste âmbito particular (…).

55.  Se observarmos a situação atual,
constataremos que os problemas retornam, mas com peculiaridades novas.  Já não se trata de questões que interessam
apenas a indivíduos ou grupos, mas de convicções tão generalizadas no ambiente
que se tornam, em certa medida, mentalidade comum.  Tal é, por exemplo, a desconfiança radical da
razão, que evidenciam as conclusões mais recentes de muitos estudos
filosóficos.  De várias partes ouviu-se
falar, a este respeito, de fim da metafísica: querem que a filosofia se
contente com tarefas mais modestas, tais cimo a mera interpretação dos fatos ou
apenas a investigação sobre determinados campos do saber humano ou das suas
estruturas.

Também na teologia, voltam a
assomar as tentações de outrora.  Por
exemplo, em algumas teologias contemporâneas comparece novamente um certo
racionalismo, principalmente quando asserções, consideradas filosoficamente
fundadas, são tomadas como normativas para a investigação teológica.  Isto sucede sobretudo quando o teólogo, por
falta de competência filosófica, se deixa condicionar de modo acrítico por
afirmações que já entraram na linguagem e cultura corrente, mas carecem de
suficiente base racional.

Não faltam também perigosas
recaídas no fideísmo, que não reconhece a importância do conhecimento racional
e do discurso filosófico para a compreensão da fé, melhor, para a própria
possibilidade de acreditar em
Deus.  Uma expressão,
hoje generalizada, desta tendência fideísta é o “biblicismo”, que tende a fazer
da leitura da Sagrada Escritura, ou da sua exegese, o único referencial da
verdade.  Assim, acaba-se por identificar
a palavra de Deus só com a Sagrada Escritura, anulando deste modo a doutrina da
Igreja que o Concílio Ecumênico Vaticano II expressamente reafirmou.  Com efeito, a Constituição Dei Verbum, depois
de recordar que a palavra de Deus está presente tanto nos textos sagrados como
na Tradição, afirma sem rodeios: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem
um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este,
todo o Povo santo persevera unido aos seus Pastores na doutrina dos
Apóstolos”.  Portanto a Sagrada Escritura
não constitui, para a Igreja, a sua única referência; a “regra suprema da sua
fé – provém efetivamente da unidade que o Espírito estabeleceu entre a Sagrada
Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja, numa reprocidade tal
que os três não podem subsistir de maneira independente.

Além disso, não se deve
subestimar o perigo que existe quando se quer individuar a verdade da Sagrada
Escritura com a aplicação de uma única metodologia, esquecendo a necessidade de
uma exegese mais ampla que permita o acesso, em união com toda a Igreja, ao
sentido pleno dos textos.  Os que se
dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas
metodologias hermenêuticas têm também na sua base uma concepção filosófica: é
preciso examiná-las com grande discernimento, antes de as aplicar aos textos
sagrados.

Outras formas de fideísmo
latente podem-se identificar na pouca consideração que é reservada à teologia
especulativa, e ainda no desprezo pela filosofia clássica, de cujas noções
provieram os termos para exprimir tanto a compreensão da fé como as próprias
formulações dogmáticas.  O Papa Pio XII,
de veneranda memória, alertou contra este esquecimento da tradição filosófica e
abandono das terminologias tradicionais”.

A separação entre razão e
fé, levada a cabo nos últimos séculos, empobreceu tanto uma como outra:

“A razão privada do
contributo da Revelação percorreu sendas marginais, com o risco de perder de
pista a sua meta final.  A fé privada da
razão põe em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de
deixar de ser uma proposta universal.  É
ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior
incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou
superstição.  Da mesma maneira, uma razão
que não tenha pela frente uma fé adulta, não é estimada a fixar o olhar sobre a
novidade e a radicalidade do ser”  (nº
48).

E continua o Papa:

“À luz disto, creio
justificado o meu apelo veemente para que a fé e a filosofia recuperem aquela
unidade profunda que as torna capazes de ser coerentes com a sua natureza no
respeito da recíproca autonomia.  Ao
desassombro (parresía) da fé deve corresponder a audácia da razão” (nº  48).

Na verdade, o encontro entre
a razão e a fé é o encontro da criatura com o Criador:  “A razão alcança o Sumo Bem e a Suma Verdade
na pessoa do Verbo Encarnado”  (nº 41).

Estas ponderações levam o
Santo Padre a corroborar os pronunciamentos de seu predecessores relativos ao
valor da Filosofia e à necessidade de a cultivar, especialmente na formação dos
candidatos ao sacerdócio; “a filosofia tem um caráter fundamental e
indispensável na estrutura dos estudos teológicos” (nº 62).  E conclui:

“Em virtude das razões aduzidas, sinto a
urgência de confirmar, por meio desta carta encíclica, o grande interesse que a
Igreja tem pela filosofia, ou melhor, a ligação íntima do trabalho teológico
com a investigação filosófica da verdade” 
(nº 63).

3.  Interação da Teologia com a Filosofia (nº
64-79)

“A palavra de Deus
destina-se  a todo homem, de qualquer
época e lugar da terra, e o homem, por natureza, é filósofo” (nº 64).  Daí a necessidade de que a Teologia recorra à
Filosofia.

A Teologia é intellectus
fidel, reflexão sobre as verdades da fé; ela procura explicar tais
verdades.  Donde se segue que

– a Teologia Dogmática
(também dita “Sistemática”) deve articular o sentido do mistério de Deus não só
de modo narrativo (descrevendo os fatos da história da salvação), mas também e
sobretudo de forma argumentativa ou mediante “expressões conceptuais,
formuladas de modo crítico e universalmente acessível… Sem o contributo
filosófico não se poderiam ilustrar certos conteúdos teológicos como, por
exemplo, as relações pessoais na SS. Trindade, a ação criadora de Deus, a
identidade de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem;

– a Teologia Fundamental,
que procura expor as razões ou as credenciais da fé (cf. 1Pd 3,15), deve
justificar a explicitar a relação entre a fé e a reflexão filosófica.  A fé, dom de Deus, apesar de não se basear na
evidência racional, de certo não pode existir sem a razão;

– a Teologia Moral tem
especial necessidade de contributo filosófico. 
Com efeito, para aplicar os princípios gerais às circunstâncias
concretas da vida individual e social, o cristão deve recorrer à sua
consciência e ao vigor do seu raciocínio. 
Além disto, a Teologia Moral deve lidar com noções claras como as de lei
moral, consciência, liberdade de arbítrio, responsabilidade pessoal, culpa (…),
cuja definição provém da Ética filosófica.

Não se pode negar ainda a
importância que têm para a elaboração teológica a história, as ciências, as
culturas asiáticas e africanas … Tais elementos são subsidiários e não devem
fazer esquecer a necessidade de uma reflexão tipicamente filosófica, crítica e
aberta ao universal.  Importa saber o que
os homens pensam, mas mais ainda importa saber a Verdade; não as diversas opiniões
humanas como tais friamente elencadas, mas a Verdade – e tão somente a Verdade –
pode servir de ajuda ao estudioso; cf. nº 70.

Quanto às culturas asiáticas
e africanas, observa oportunamente o S. Padre: “Quando a Igreja entra em
contato com grandes culturas que nunca tinha encontrado antes, não pode pôr de
parte o que adquiriu pela inculturação no pensamento greco-latino.  Rejeitar uma tal herança seria contrariar o
desígnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos caminhos do tempo
e da história” (nº 72).

Muito importante é o que,
pouco depois, o Papa escreve a respeito do discutido conceito de Filosofia
cristã.  Após referir-se à Filosofia pré-cristã
ou independente da revelação evangélica, diz João Paulo II:

“76.  Um segundo estágio da filosofia é aquilo que
muitos designam com a expressão Filosofia Cristã.  A denominação, em si mesma, é legítima, mas não
deve dar margem a equívocos: com ela, não se pretende aludir a uma filosofia
oficial da Igreja, já que a fé, enquanto tal, não é uma filosofia.  Com aquela designação, deseja-se sobretudo indicar
um modo cristão de filosofar, uma reflexão filosófica concebida em união vital
com a fé.  Por conseguinte, não se refere
simplesmente uma filosofia elaborada por filósofos cristãos que, na sua
pesquisa, quiseram não contradizer a fé. 
Quando se fala de filosofia cristã, pretende-se abraçar todos aqueles
importantes avanços do pensamento filosófico que não seriam alcançados sem a
contribuição, direta ou indireta, da fé cristã.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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