Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis ( VII )

A liturgia da palavra
45. Juntamente com o Sínodo, peço que a liturgia da palavra seja sempre devidamente preparada e vivida. Recomendo, pois, vivamente que se tenha grande cuidado, nas liturgias, com a proclamação da palavra de Deus por leitores bem preparados; nunca nos esqueçamos de que, « quando na igreja se lê a Sagrada Escritura, é o próprio Deus que fala ao seu povo, é Cristo presente na sua palavra que anuncia o Evangelho ».(135) Se as circunstâncias o recomendarem, pode-se pensar numas breves palavras de introdução, que ajudem os fiéis a tomar renovada consciência do momento. Para ser bem compreendida, a palavra de Deus deve ser escutada e acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento eucarístico. Com efeito, a palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito carne (Jo 1, 14) e possui uma referência intrínseca à pessoa de Cristo e à modalidade sacramental da sua permanência: Cristo não fala no passado mas no nosso presente, tal como Ele está presente na acção litúrgica. Neste horizonte sacramental da revelação cristã,(136) o conhecimento e o estudo da palavra de Deus permitem-nos valorizar, celebrar e viver melhor a Eucaristia; também aqui se mostra em toda a sua verdade a conhecida asserção: « A ignorância da Escritura é ignorância de Cristo ».(137)
Para isso, é necessário ajudar os fiéis a valorizarem os tesouros da Sagrada Escritura presentes no Leccionário, por meio de iniciativas pastorais, de celebrações da palavra e da leitura orante (lectio divina). Além disso, não se esqueça de promover as formas de oração confirmadas pela tradição: a Liturgia das Horas, sobretudo Laudes, Vésperas, Completas e ainda as celebrações das Vigílias. A oração dos salmos, as leituras bíblicas e as da grande tradição apresentadas no Ofício Divino podem levar a uma experiência profunda do acontecimento de Cristo e da economia da salvação, capaz por sua vez de enriquecer a compreensão e a participação na celebração eucarística.(138)
A homilia
46. Pensando na importância da palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a qualidade da homilia; de facto, esta « constitui parte integrante da acção litúrgica »,(139) cuja função é favorecer uma compreensão e eficácia mais ampla da palavra de Deus na vida dos fiéis. Por isso, os ministros ordenados devem « preparar cuidadosamente a homilia, baseando-se num adequado conhecimento da Sagrada Escritura ».(140) Evitem-se homilias genéricas ou abstractas; de modo particular, peço aos ministros para fazerem com que a homilia coloque a palavra de Deus proclamada em estreita relação com a celebração sacramental (141) e com a vida da comunidade, de tal modo que a palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja.(142) Tenha-se presente, portanto, a finalidade catequética e exortativa da homilia. Considera-se que é oportuno oferecer prudentemente, a partir do Leccionário trienal, homilias temáticas aos fiéis que tratem, ao longo do ano litúrgico, os grandes temas da fé cristã, haurindo de quanto está autorizadamente proposto pelo Magistério nos quatro « pilares » do Catecismo da Igreja Católica e no recente Compêndio: a profissão da fé, a celebração do mistério cristão, a vida em Cristo, a oração cristã.(143)
Apresentação das oferendas
47. Os padres sinodais chamaram a atenção também para a apresentação das oferendas. Não se trata simplesmente duma espécie de « intervalo » entre a liturgia da palavra e a liturgia eucarística, o que faria, sem dúvida, atenuar o sentido de um único rito composto de duas partes interligadas; realmente, neste gesto humilde e simples, encerra-se um significado muito grande: no pão e no vinho que levamos ao altar, toda a criação é assumida por Cristo Redentor para ser transformada e apresentada ao Pai.(144) Nesta perspectiva, levamos ao altar também todo o sofrimento e tribulação do mundo, na certeza de que tudo é precioso aos olhos de Deus. Este gesto não necessita de ser enfatizado com descabidas complicações para ser vivido no seu significado autêntico: o mesmo permite valorizar a participação primeira que Deus pede ao homem, ou seja, levar em si mesmo a obra divina à perfeição, e dar assim pleno sentido ao trabalho humano que, através da celebração eucarística, fica unido ao sacrifício redentor de Cristo.
A Oração Eucarística
48. A Oração Eucarística é « o ponto central e culminante de toda a celebração »; (145) merece ser convenientemente ressaltada a sua importância. As diversas Orações Eucarísticas contidas no Missal foram-nos transmitidas pela Tradição viva da Igreja e caracterizam-se por uma riqueza teológica e espiritual inesgotável; os fiéis devem poder ser capazes de apreciá-la. A isto mesmo nos ajuda a Instrução Geral do Missal Romano, quando lembra os elementos fundamentais de cada Oração Eucarística: acção de graças, aclamação, epiclese, narração da instituição, consagração, anamnese, oblação, intercessões e doxologia final.(146) Em particular, a espiritualidade eucarística e a reflexão teológica são iluminadas se se contempla a profunda unidade que existe, na anáfora, entre a invocação do Espírito Santo e a narração da instituição,(147) quando « se realiza o sacrifício que o próprio Cristo instituiu na Última Ceia ».(148) De facto, « por meio de invocações especiais, a Igreja implora o poder do Espírito Santo, para que os dons oferecidos pelos homens sejam consagrados, isto é, se convertam no corpo e sangue de Cristo, e para que a vítima imaculada, que vai ser recebida na comunhão, opere a salvação daqueles que dela vão participar ».(149)
Saudação da paz
49. A Eucaristia é, por sua natureza, sacramento da paz. Na celebração litúrgica, esta dimensão do mistério eucarístico encontra a sua manifestação específica no rito da saudação da paz. Trata-se, sem dúvida, dum sinal de grande valor (Jo 14, 27). Neste nosso tempo pavorosamente cheio de conflitos, tal gesto adquire – mesmo do ponto de vista da sensibilidade comum – um relevo particular, pois a Igreja sente cada vez mais como sua missão própria a de implorar ao Senhor o dom da paz e da unidade para si mesma e para a família humana inteira. A paz é, sem dúvida, uma aspiração radical que se encontra no coração de cada um; a Igreja dá voz ao pedido de paz e reconciliação que brota do espírito de cada pessoa de boa vontade, apresentando-o Àquele que « é a nossa paz » (Ef 2, 14) e pode pacificar de novo povos e pessoas, mesmo onde tivessem falido os esforços humanos. A partir de tudo isto, é possível compreender a intensidade com que frequentemente é sentido o rito da paz na celebração litúrgica. A este respeito, porém, durante o Sínodo dos Bispos foi sublinhada a conveniência de moderar este gesto, que pode assumir expressões excessivas, suscitando um pouco de confusão na assembleia precisamente antes da comunhão. É bom lembrar que nada tira ao alto valor do gesto a sobriedade necessária para se manter um clima apropriado à celebração, limitando, por exemplo, a saudação da paz a quem está mais próximo.(150)
Distribuição e recepção da Eucaristia
50. Outro momento da celebração, que necessita de menção, é a distribuição e a recepção da sagrada comunhão. Peço a todos, especialmente aos ministros ordenados e àqueles que, devidamente preparados e em caso de real necessidade, estejam autorizados para o ministério da distribuição da Eucaristia, que façam o possível para que o gesto, na sua simplicidade, corresponda ao seu valor de encontro pessoal com o Senhor Jesus no sacramento. Quanto às prescrições para a correcta prática do mesmo, vejam-se os documentos recentemente emanados; ( 151) todas as comunidades cristãs se atenham fielmente às normas vigentes, vendo nelas a expressão da fé e do amor que todos devemos ter por este sublime sacramento. Além disso, não seja transcurado o tempo precioso de acção de graças depois da comunhão: além da entoação dum cântico oportuno, pode ser muito útil também permanecer recolhidos em silêncio.(152)
A propósito, desejo chamar a atenção para um problema pastoral com que frequentemente nos deparamos no nosso tempo: em determinadas circunstâncias como, por exemplo, nas Missas celebradas por ocasião de matrimónios, funerais ou acontecimentos análogos, encontram-se presentes na celebração, além dos fiéis praticantes, outros que talvez há anos não se aproximam do altar ou se encontram numa situação de vida que não permite o acesso aos sacramentos; outras vezes acontece que estão presentes pessoas de outras confissões cristãs ou até de outras religiões. Circunstâncias semelhantes verificam-se também em igrejas que são meta de turistas, sobretudo nas cidades de grande valor artístico. Ora, salta aos olhos a necessidade de encontrar formas breves e incisivas para alertar a todos sobre o sentido da comunhão sacramental e sobre as condições que se requerem para a sua recepção. Em situações onde não se possa garantir a necessária clareza quanto ao significado da Eucaristia, deve-se ponderar a oportunidade de substituir a celebração eucarística por uma celebração da palavra de Deus.(153)
A despedida: « Ite, missa est »
51. Por último, quero deter-me naquilo que disseram os padres sinodais acerca da saudação de despedida no final da celebração eucarística. Depois da bênção, o diácono ou o sacerdote despede o povo com as palavras « Ide em paz e o Senhor vos acompanhe », tradução aproximada da fórmula latina: Ite, missa est. Nesta saudação, podemos identificar a relação entre a Missa celebrada e a missão cristã no mundo. Na antiguidade, o termo « missa » significava simplesmente « despedida »; mas, no uso cristão, o mesmo foi ganhando um sentido cada vez mais profundo, tendo o termo « despedir » evoluído para « expedir em missão ». Deste modo, a referida saudação exprime sinteticamente a natureza missionária da Igreja; seria bom ajudar o povo de Deus a aprofundar esta dimensão constitutiva da vida eclesial, tirando inspiração da liturgia. Nesta perspectiva, pode ser útil dispor de textos, devidamente aprovados, para a oração sobre o povo e a bênção final que explicitem tal ligação.(154)
Participação activa
Autêntica participação
52. O Concílio Vaticano II colocara, justamente, uma ênfase particular sobre a participação activa, plena e frutuosa de todo o povo de Deus na celebração eucarística.(155) A renovação operada nestes anos proporcionou, sem dúvida, notáveis progressos na direcção desejada pelos padres conciliares; mas não podemos ignorar que houve, às vezes, qualquer incompreensão precisamente acerca do sentido desta participação. Convém, pois, deixar claro que não se pretende, com tal palavra, aludir a mera actividade exterior durante a celebração; na realidade, a participação activa desejada pelo Concílio deve ser entendida, em termos mais substanciais, a partir duma maior consciência do mistério que é celebrado e da sua relação com a vida quotidiana. Permanece plenamente válida ainda a recomendação da Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium feita aos fiéis quando os exorta a não assistirem à liturgia eucarística « como estranhos ou espectadores mudos », mas a participarem « na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente ».(156) E o Concílio, desenvolvendo seu pensamento, prossegue: Os fiéis « sejam instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do corpo do Senhor; dêem graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia, por Cristo Mediador, progridam na unidade com Deus e entre si ».(157)
Participação e ministério sacerdotal
53. A beleza e a harmonia da acção litúrgica encontram significativa expressão na ordem com que cada um é chamado a participar activamente nela; isto requer o conhecimento das diversas funções hierárquicas implicadas na própria celebração. Pode ser útil lembrar que a participação activa na mesma não coincide, de per si, com o desempenho dum ministério particular; sobretudo, não favorece a causa da participação activa dos fiéis uma confusão gerada pela incapacidade de distinguir, na comunhão eclesial, as diversas funções que cabem a cada um.(158) De modo particular, convém que haja clareza quanto às funções específicas do sacerdote: como atesta a tradição da Igreja, é ele quem insubstituivelmente preside à celebração eucarística inteira, desde a saudação inicial até à bênção final. Em virtude da Ordem sacra recebida, representa Jesus Cristo cabeça da Igreja e, na forma que lhe é própria, também a Igreja.(159) De facto, cada celebração da Eucaristia é conduzida pelo Bispo, « quer pessoalmente, quer pelos presbíteros seus colaboradores »; (160) e é coadjuvado pelo diácono, que tem na celebração algumas funções específicas: preparar o altar e assistir ao sacerdote, proclamar o Evangelho e, eventualmente, fazer a homilia, propor aos fiéis as intenções da Oração Universal, distribuir a Eucaristia aos fiéis.(161) Em relação com estes ministérios dependentes do sacramento da Ordem, aparecem depois outros ministérios para o serviço litúrgico, louvavelmente desempenhados por religiosos e leigos preparados.(162)
Celebração eucarística e inculturação
54. Partindo fundamentalmente de quanto afirmou o Concílio Vaticano II, várias vezes foi sublinhada a importância da participação activa dos fiéis no sacrifício eucarístico. Para a favorecer, podem ter lugar algumas adaptações apropriadas aos respectivos contextos e às diversas culturas;( 163) o facto de ter havido alguns abusos não turba a clareza deste princípio, que deve ser mantido segundo as necessidades reais da Igreja, a qual vive e celebra o mesmo mistério de Cristo em situações culturais diferentes. De facto, o Senhor Jesus, precisamente no mistério da Encarnação, ao nascer de uma mulher como perfeito homem (Gal 4, 4) colocou-se em relação directa não só com as expectativas que se registavam no âmbito do Antigo Testamento, mas também com as cultivadas por todos os povos; manifestou, assim, que Deus pretende alcançar-nos no nosso contexto vital. Por conseguinte é útil, para uma participação mais eficaz dos fiéis nos santos mistérios, a continuação do processo de inculturação inclusivamente quanto à celebração eucarística, tendo em conta as possibilidades de adaptação oferecidas pela Instrução Geral do Missal Romano,(164) interpretadas à luz dos critérios estabelecidos pela IV Instrução da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, designada Varietates legitimæ, de 25 de Janeiro de 1994,(165) e pelas directrizes expressas pelo Papa João Paulo II nas Exortações pós-sinodais Ecclesia in Africa, Ecclesia in America, Ecclesia in Asia, Ecclesia in Oceania, Ecclesia in Europa.(166) Com esta finalidade, recomendo às Conferências Episcopais que prossigam com esta obra, favorecendo um justo equilíbrio entre os critérios e directrizes já emanados e as novas adaptações,(167) sempre de acordo com a Sé Apostólica.
Condições pessoais para uma participação activa
55. Ao considerarem o tema da participação activa (actuosa participatio) dos fiéis no rito sagrado, os padres sinodais ressaltaram também as condições pessoais que se requerem em cada um para uma frutuosa participação.(168) Uma delas é, sem dúvida, o espírito de constante conversão que deve caracterizar a vida de todos os fiéis: não podemos esperar uma participação activa na liturgia eucarística, se nos abeiramos dela superficialmente e sem antes nos interrogarmos sobre a própria vida. Favorecem tal disposição interior, por exemplo, o recolhimento e o silêncio durante alguns momentos pelo menos antes do início da liturgia, o jejum e – quando for preciso – a confissão sacramental; um coração reconciliado com Deus predispõe para a verdadeira participação. De modo particular é preciso alertar os fiéis que não se pode verificar uma participação activa nos santos mistérios, se ao mesmo tempo não se procura tomar parte activa na vida eclesial em toda a sua amplitude, incluindo o compromisso missionário de levar o amor de Cristo para o meio da sociedade.
Sem dúvida, para a plena participação na Eucaristia é preciso também aproximar-se pessoalmente do altar para receber a comunhão; (169) contudo é preciso estar atento para que esta afirmação, justa em si mesma, não induza os fiéis a um certo automatismo levando-os a pensar que, pelo simples facto de se encontrar na igreja durante a liturgia, se tenha o direito ou mesmo – quem sabe – se sinta no dever de aproximar-se da mesa eucarística. Mesmo quando não for possível abeirar-se da comunhão sacramental, a participação na Santa Missa permanece necessária, válida, significativa e frutuosa; neste caso, é bom cultivar o desejo da plena união com Cristo, por exemplo, através da prática da comunhão espiritual, recordada por João Paulo II (170) e recomendada por santos mestres de vida espiritual.(171)

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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