Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis ( III )

I. Eucaristia e iniciação cristã
Eucaristia, plenitude da iniciação cristã
17. Se verdadeiramente a Eucaristia é fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, temos de concluir antes de mais que o caminho de iniciação cristã tem como ponto de referência tornar possível o acesso a tal sacramento. A propósito, devemos interrogar-nos – como sugeriram os padres sinodais – se as nossas comunidades cristãs têm suficiente noção do vínculo estreito que há entre Baptismo, Confirmação e Eucaristia; (46) de facto, é preciso não esquecer jamais que somos baptizados e crismados em ordem à Eucaristia. Este dado implica o compromisso de favorecer na acção pastoral uma compreensão mais unitária do percurso de iniciação cristã. O sacramento do Baptismo, pelo qual somos configurados a Cristo,(47) incorporados na Igreja e feitos filhos de Deus, constitui a porta de acesso a todos os sacramentos; através dele, somos inseridos no único corpo de Cristo (1 Cor 12, 13), povo sacerdotal. Mas é a participação no sacrifício eucarístico que aperfeiçoa, em nós, o que recebemos no Baptismo. Também os dons do Espírito são concedidos para a edificação do corpo de Cristo (1 Cor 12) e o crescimento do testemunho evangélico no mundo.(48) Portanto, a santíssima Eucaristia leva à plenitude a iniciação cristã e coloca-se como centro e termo de toda a vida sacramental.(49)
A ordem dos sacramentos da iniciação
18. A este respeito, é necessário prestar atenção ao tema da ordem dos sacramentos da iniciação. Na Igreja, há tradições diferentes; esta diversidade é patente nos costumes eclesiais do Oriente (50) e na prática ocidental para a iniciação dos adultos,(51) se comparada com a das crianças.(52) Contudo, tais diferenças não são propriamente de ordem dogmática, mas de carácter pastoral. Em concreto, é necessário verificar qual seja a prática que melhor pode, efectivamente, ajudar os fiéis a colocarem no centro o sacramento da Eucaristia, como realidade para qual tende toda a iniciação; em estreita colaboração com os Dicastérios competentes da Cúria Romana, as Conferências Episcopais verifiquem a eficácia dos percursos de iniciação actuais, para que o cristão seja ajudado, pela acção educativa das nossas comunidades, a maturar cada vez mais até chegar a assumir na sua vida uma orientação autenticamente eucarística, de tal modo que seja capaz de dar razão da própria esperança de maneira adequada ao nosso tempo (1 Pd 3, 15).
Iniciação, comunidade eclesial e família
19. É preciso ter sempre presente que toda a iniciação cristã é caminho de conversão que háde ser realizada com a ajuda de Deus e em constante referimento à comunidade eclesial, quer quando é o adulto que pede para entrar na Igreja, como acontece nos lugares de primeira evangelização e em muitas zonas secularizadas, quer quando são os pais a pedir os sacramentos para seus filhos. A este respeito, desejo chamar a atenção sobretudo para a relação entre iniciação cristã e família; na acção pastoral, sempre se deve associar a família cristã ao itinerário de iniciação. Receber o Baptismo, a Confirmação e abeirar-se pela primeira vez da Eucaristia são momentos decisivos não só para a pessoa que os recebe mas também para toda a sua família; esta deve ser sustentada, na sua tarefa educativa, pela comunidade eclesial em suas diversas componentes.(53) Quero sublinhar aqui a relevância da Primeira Comunhão; para inúmeros fiéis, este dia permanece, justamente, gravado na memória como o primeiro momento em que se percebeu, embora de forma ainda inicial, a importância do encontro pessoal com Jesus. A pastoral paroquial deve valorizar adequadamente esta ocasião tão significativa.
II. Eucaristia e sacramento da Reconciliação
Sua ligação intrínseca
20. Os padres sinodais afirmaram, justamente, que o amor à Eucaristia leva a apreciar cada vez mais também o sacramento da Reconciliação.(54) Por causa da ligação entre ambos os sacramentos, uma catequese autêntica acerca do sentido da Eucaristia não pode ser separada da proposta dum caminho penitencial (1 Cor 11, 27-29). Constatamos – é certo – que, no nosso tempo, os fiéis se encontram imersos numa cultura que tende a cancelar o sentido do pecado,(55) favorecendo um estado de espírito superficial que leva a esquecer a necessidade de estar na graça de Deus para se aproximar dignamente da comunhão sacramental.(56) Na realidade, a perda da consciência do pecado engloba sempre também uma certa superficialidade na compreensão do próprio amor de Deus. É muito útil para os fiéis recordar-lhes os elementos que, no rito da Santa Missa, explicitam a consciência do próprio pecado e, simultaneamente, da misericórdia de Deus.(57) Além disso, a relação entre a Eucaristia e a Reconciliação recorda-nos que o pecado nunca é uma realidade exclusivamente individual, mas inclui sempre também uma ferida no seio da comunhão eclesial, na qual nos encontramos inseridos pelo Baptismo. Por isso, como diziam os Padres da Igreja, a Reconciliação é um baptismo laborioso (laboriosus quidam baptismus),(58) sublinhando assim que o resultado do caminho de conversão é também o restabelecimento da plena comunhão eclesial, que se exprime no abeirar-se novamente da Eucaristia.(59)
Alguns cuidados pastorais
21. O Sínodo lembrou que é dever pastoral do bispo promover na sua diocese uma decisiva recuperação da pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia e favorecer entre os fiéis a confissão frequente. Todos os sacerdotes se dediquem com generosidade, empenho e competência à administração do sacramento da Reconciliação.(60) A propósito, procure-se que, nas nossas igrejas, os confessionários sejam bem visíveis e expressivos do significado deste sacramento. Peço aos pastores que vigiem atentamente sobre a celebração do sacramento da Reconciliação, limitando a prática da absolvição geral exclusivamente aos casos previstos,(61) permanecendo como forma ordinária de absolvição apenas a pessoal.(62) Vista a necessidade de descobrir novamente o perdão sacramental, haja em todas as dioceses o Penitenciário.(63) Por último, pode servir de válida ajuda para a nova tomada de consciência desta relação entre a Eucaristia e a Reconciliação uma prática equilibrada e conscienciosa da indulgência, lucrada a favor de si mesmo ou dos defuntos. Com ela, obtém-se « a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados, cuja culpa já foi apagada ».(64) O uso das indulgências ajuda-nos a compreender que não somos capazes, só com as nossas forças, de reparar o mal cometido e que os pecados de cada um causam dano a toda a comunidade; além disso, a prática da indulgência, implicando a doutrina dos méritos infinitos de Cristo bem como a da comunhão dos santos, mostra-nos « quanto estejamos, em Cristo, intimamente unidos uns aos outros e quanto a vida sobrenatural de cada um possa aproveitar aos outros ».(65) Dado que a forma própria da indulgência prevê, entre as condições requeridas, o abeirar-se da confissão e da comunhão sacramental, a sua prática pode sustentar eficazmente os fiéis no caminho da conversão e na descoberta da centralidade da Eucaristia na vida cristã.
III. Eucaristia e Unção dos Enfermos
22. Jesus não Se limitou a enviar os seus discípulos a curar os doentes (Mt 10, 8; Lc 9, 2; 10, 9), mas instituiu para eles também um sacramento específico: a Unção dos Enfermos.(66) A Carta de Tiago testemunha a presença deste gesto sacramental já na primitiva comunidade cristã (5, 14-16). Se a Eucaristia mostra como os sofrimentos e a morte de Cristo foram transformados em amor, a Unção dos Enfermos, por seu lado, associa o doente à oferta que Cristo fez de Si mesmo pela salvação de todos, de tal modo que possa também ele, no mistério da comunhão dos santos, participar na redenção do mundo. A relação entre ambos os sacramentos aparece ainda mais clara quando se agrava a doença: « Àqueles que vão deixar esta vida, a Igreja oferece-lhes, além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático ».(67) Nesta passagem para o Pai, a comunhão no corpo e sangue de Cristo aparece como semente de vida eterna e força de ressurreição: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia » (Jo 6, 54). Uma vez que o sagrado Viático desvenda ao doente a plenitude do mistério pascal, é preciso assegurar a sua administração.(68) A atenção e o cuidado pastoral por aqueles que se encontram doentes redunda, seguramente, em benefício espiritual de toda a comunidade, sabendo que tudo o que fizermos ao mais pequenino, ao próprio Jesus o faremos (Mt 25, 40).
IV. Eucaristia e sacramento da Ordem
Na pessoa de Cristo cabeça
23. O vínculo intrínseco entre a Eucaristia e o sacramento da Ordem deduz-se das próprias palavras de Jesus no Cenáculo: « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). De facto, na vigília da sua morte, Ele instituiu a Eucaristia e ao mesmo tempo fundou o sacerdócio da Nova Aliança. Jesus é sacerdote, vítima e altar: mediador entre Deus Pai e o povo (Heb 5, 5-10), vítima de expiação (1 Jo 2, 2; 4, 10) que Se oferece a Si mesma no altar da cruz. Ninguém pode dizer « isto é o meu corpo » e « este é o cálice do meu sangue » senão em nome e na pessoa de Cristo, único sumo sacerdote da nova e eterna Aliança (Heb 8-9). O Sínodo dos Bispos já se ocupara, noutras assembleias, do sacerdócio ordenado tanto no que diz respeito à identidade do ministério,(69) como à formação dos candidatos.(70) Na presente circunstância importa-me, à luz do diálogo realizado no âmbito da última assembleia sinodal, sublinhar alguns valores que têm a ver com a relação entre o sacramento eucarístico e a Ordem. Antes de mais nada, é necessário reafirmar que a ligação entre a Ordem sacra e a Eucaristia é visível precisamente na Missa que o bispo ou o presbítero preside na pessoa de Cristo cabeça (in persona Christi capitis).
A doutrina da Igreja considera a ordenação sacerdotal condição indispensável para a celebração válida da Eucaristia.(71) De facto, « no serviço eclesial do ministro ordenado, é o próprio Cristo que está presente à sua Igreja, como cabeça do seu corpo, pastor do seu rebanho, sumo sacerdote do sacrifício redentor ».(72) Certamente o ministro ordenado « age também em nome de toda a Igreja, quando apresenta a Deus a oração da mesma Igreja e, sobretudo, quando oferece o sacrifício eucarístico ».(73) Por isso, é necessário que os sacerdotes tenham consciência de que, em todo o seu ministério, nunca devem colocar em primeiro plano a sua pessoa nem as suas opiniões, mas Jesus Cristo. Contradiz a identidade sacerdotal toda a tentativa de se colocarem a si mesmos como protagonistas da acção litúrgica. Aqui, mais do que nunca, o sacerdote é servo e deve continuamente empenhar-se por ser sinal que, como dócil instrumento nas mãos de Cristo, aponta para Ele. Isto exprime-se de modo particular na humildade com que o sacerdote conduz a acção litúrgica, obedecendo ao rito, aderindo ao mesmo com o coração e a mente, evitando tudo o que possa dar a sensação de um seu inoportuno protagonismo. Recomendo, pois, ao clero que não cesse de aprofundar a consciência do seu ministério eucarístico como um serviço humilde a Cristo e à sua Igreja. O sacerdócio, como dizia Santo Agostinho, é um serviço de amor (amoris officium),(74) é o serviço do bom pastor, que oferece a vida pelas ovelhas (Jo 10, 14-15).
Eucaristia e celibato sacerdotal
24. Os padres sinodais quiseram sublinhar como o sacerdócio ministerial requer, através da ordenação, a plena configuração a Cristo. Embora respeitando a prática e tradição oriental diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente considerado uma riqueza inestimável e confirmado também pela prática oriental de escolher os bispos apenas de entre aqueles que vivem no celibato, indício da grande honra em que ela tem a opção do celibato feita por numerosos presbíteros. Com efeito, nesta opção do sacerdote encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus.(75) O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. Em sintonia com a grande tradição eclesial, com o Concílio Vaticano II (76) e com os Sumos Pontífices (77) meus predecessores, corroboro a beleza e a importância duma vida sacerdotal vivida no celibato como sinal expressivo de dedicação total e exclusiva a Cristo, à Igreja e ao Reino de Deus, e, consequentemente, confirmo a sua obrigatoriedade para a tradição latina. O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade.
Escassez de clero e pastoral vocacional
25. A propósito da ligação entre o sacramento da Ordem e a Eucaristia, o Sínodo deteve-se sobre a dolorosa situação que se tem vindo a criar em diversas dioceses a braços com a escassez de sacerdotes. Isto acontece não só em algumas zonas de primeira evangelização, mas também em muitos países de longa tradição cristã. Para a solução do problema contribui certamente uma distribuição mais equitativa do clero; mas, para isso, é preciso um trabalho de sensibilização capilar. Os bispos empenhem nas necessidades pastorais os institutos de vida consagrada e as novas realidades eclesiais, no respeito do respectivo carisma, e solicitem todos os membros do clero a uma disponibilidade maior para irem servir a Igreja nos lugares onde houver necessidade, sem olhar a sacrifícios.(78) Além disso, o Sínodo debruçou-se também sobre os cuidados pastorais a ter principalmente com os jovens para favorecer a sua abertura interior à vocação sacerdotal. A solução para tal carestia não se pode encontrar em meros estratagemas pragmáticos; deve-se evitar que os bispos, levados por compreensíveis preocupações funcionais devido à falta de clero, acabem por não realizar um adequado discernimento vocacional, admitindo à formação específica e à ordenação candidatos que não possuam as características necessárias para o serviço sacerdotal.(79) Um clero insuficientemente formado e admitido à ordenação sem o necessário discernimento dificilmente poderá oferecer um testemunho capaz de suscitar noutros o desejo de generosa correspondência à vocação de Cristo. Na realidade, a pastoral vocacional deve empenhar a comunidade cristã em todos os seus âmbitos.(80) Obviamente, no referido trabalho pastoral capilar, está incluída também a obra de sensibilização das famílias, muitas vezes indiferentes se não mesmo contrárias à hipótese da vocação sacerdotal. Que elas se abram com generosidade ao dom da vida e eduquem os filhos para serem disponíveis à vontade de Deus! Em resumo, é preciso sobretudo ter a coragem de propor aos jovens o seguimento radical de Cristo, mostrando-lhes o seu encanto.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
Adicionar a favoritos link permanente.