Exortação Apostólica pós-sinodal Reconciliatio et Paententia – Parte 4

(87) Mas o Apóstolo, nessa mesma página, quer também pôr em evidência a certeza que provém para o cristão do facto de ser «nascido de Deus» pela vinda do Filho: há nele uma força que o preserva da queda no pecado; Deus guarda-o «e o Maligno não o toca». No caso de pecar por fraqueza ou ignorância, subsiste nele a esperança da remissão, também pelo apoio que lhe advém da oração feita em conjunto pelos irmãos.
Noutra página do Novo Testamento, no Evangelho de São Mateus, (88) o próprio Jesus fala duma «blasfêmia contra o Espírito Santo», que é «irremissível», porque, nas suas manifestações, ela aparece como uma obstinada recusa de conversão ao amor do Pai das misericórdias.
Trata-se, é claro, de expressões extremas e radicais: rejeição de Deus, rejeição da sua graça e, portanto, oposição ao próprio princípio da salvação, (89) pela qual o homem parece fechar voluntariamente a si mesmo o caminho da remissão. Há que ter esperança, porém, que bem poucos queiram obstinar-se até ao fim nesta atitude de rebelião ou até de desafio a Deus, o qual, aliás, no seu amor misericordioso é maior do que o nosso coração, como nos ensina ainda São João. (90) Deus pode, de facto, vencer todas as nossas resistências psicológicas e espirituais, de tal modo que – como escreve Santo Tomás de Aquino – «não há que desesperar da salvação de ninguém nesta vida, consideradas a omnipotência e a misericórdia de Deus». (91)
Mas, diante do problema do embate de uma vontade rebelde com Deus infinitamente justo, não se pode deixar de nutrir sentimentos de salutar «temor e tremor», como sugere São Paulo; (92) e o aviso de Jesus sobre o pecado que não é «remissível» confirma a existência de culpas que podem trazer para o pecador, como pena, a «morte eterna».
À luz destes e de outros textos da Sagrada Escritura, os doutores e teólogos, os mestres espirituais e os pastores de almas distinguiram os pecados em mortais e veniais. Santo Agostinho, entre outros, fala de letalia ou mortifera crimina, opondo-os a venialia, levia ou quotidiana. (93) O significado que ele atribui a estes qualificativos influirá posteriormente no Magistério da Igreja. Depois dele seria Santo Tomás de Aquino a formular, nos termos mais claros que foi possível, a doutrina que se tornou constante na Igreja.
Na definição e distinção dos pecados mortais e veniais, não podia estar ausente para Santo Tomás e para a Teologia do pecado que nele se foi inspirar, a referência bíblica e, portanto, o conceito da morte espiritual. Segundo o Doutor Angélico, para viver espiritualmente, o homem deve permanecer em comunhão com o princípio supremo da vida, que é Deus, enquanto fim último de todo o seu ser e do seu agir. Ora o pecado é uma desordem perpetrada pelo homem contra este princípio vital. E quando, «por meio do pecado, a alma provoca uma desordem que vai até à separação do fim último – Deus – ao qual se encontra ligada pela caridade, então há pecado mortal; de outro modo, todas as vezes que a desordem fica aquém da separação de Deus, então o pecado é venial». (94) Por esta razão, o pecado venial não priva da graça santificante, da amizade com Deus, da caridade, nem, por conseguinte, da bem-aventurança eterna; ao passo que tal privação é exactamente consequência do pecado mortal.
Considerando o pecado, ademais, sob o aspecto da pena que implica, Santo Tomás com outros doutores, chama mortal ao pecado que, se não for remido, faz contrair uma pena eterna; venial, ao pecado que merece uma simples pena temporal (quer dizer, parcial e expiável na terra ou no Purgatório).
Se se atender, depois, à matéria do pecado, as ideias de morte, de ruptura radical com Deus, sumo bem, de desvio do caminho que leva a Deus ou de interrupção da caminhada em direcção a ele (tudo modos de definir o pecado mortal) conjugam-se com a ideia da gravidade do conteúdo objectivo; por isso, o pecado grave identifica-se praticamente, na doutrina e na acção pastoral da Igreja, com o pecado mortal.
Atingimos aqui o núcleo do ensino tradicional da Igreja, recordado muitas vezes e com vigor no decorrer do recente Sínodo. Este, de facto, não só reafirmou tudo aquilo que foi proclamado no Concílio de Trento sobre a existência e a natureza dos pecados mortais e veniais, (95) mas quis ainda lembrar que é pecado mortal aquele que tem por objecto uma matéria grave e que, conjuntamente, é cometido com plena advertência e consentimento deliberado. E impõe-se acrescentar – como se fez também no mesmo Sínodo – que alguns pecados, quanto à sua matéria, são intrinsecamente graves e mortais. Quer dizer, há determinados actos que, por si mesmos e em si mesmos, independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objecto. Esses actos, se forem praticados com suficiente advertência e liberdade, são sempre culpa grave. (96)
Esta doutrina, fundamentada no Decálogo e na pregação do Antigo Testamento e retomada no kérigma dos Apóstolos, e que faz parte do mais antigo ensino que a Igreja tem vindo a repetir até hoje, tem uma comprovação cabal na experiência humana de todos os tempos. O homem sabe bem, por experiência, que na caminhada da fé e da justiça, que o leva ao conhecimento e ao amor de Deus nesta vida e à perfeita união com ele na eternidade, pode parar ou distrair-se, sem abandonar, no entanto, o rumo de Deus: neste caso há efectivamente pecado venial. Este, porém, não deverá ser atenuado, como se, automaticamente, se tratasse de algo que pudesse ser transcurado ou de um «pecado de pouca monta».
Sucede também que o homem igualmente sabe, por dolorosa experiência, que com um acto consciente e livre da sua vontade pode inverter a marcha, caminhar no sentido oposto à vontade de Deus e, desse modo, afastar-se dele (aversio a Deo), recusando a comunhão de amor com ele, afastando-se do princípio de vida que ele é, e escolhendo, por isso mesmo, a morte.
Com toda a tradição da Igreja, chamamos pecado mortal a este acto pelo qual um homem, com liberdade e advertência, rejeita Deus, a sua lei, a aliança de amor que Deus lhe propõe, preferindo voltar-se para si mesmo, para qualquer realidade criada e finita, para algo contrário ao querer divino (conversio ad creaturam). Isto pode acontecer de modo directo e formal, como nos pecados de idolatria, apostasia e ateísmo; ou de modo equivalente, como em todas as desobediências aos mandamentos de Deus em matéria grave. O homem sente que esta desobediência a Deus corta a ligação com o seu princípio vital: é um pecado mortal, ou seja, um acto que ofende gravemente a Deus e acaba por se voltar contra o próprio homem, com uma força obscura e potente de destruição.
Durante a Assembleia sinodal foi proposta por alguns Padres uma distinção tripartida entre os pecados, que haveriam de passar a ser classificados com veniais, graves e mortais. A tripartição poderia pôr em realce o facto de que entre os pecados graves existe uma gradação. Mas permanece sempre verdadeiro que a distinção essencial e decisiva é a que existe entre pecados que destroem a caridade e pecados que não matam a vida sobrenatural: entre a vida e a morte não há lugar para um meio termo.
De igual modo, há-de evitar-se reduzir o pecado mortal a um acto de «opção fundamental» contra Deus – como hoje em dia se costuma dizer – entendendo com isso um desprezo explícito e formal de Deus e do próximo. Dá-se, efectivamente, o pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo escolhe alguma coisa gravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim já está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta-se a si próprio de Deus e perde a caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser radicalmente modificada por actos particulares. Podem, sem dúvida, verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador. Mas da consideração da esfera psicológica não se pode passar para a constituição de uma categoria teológica, como é precisamente a da «opção fundamental», entendendo-a de tal modo que, no plano objectivo, mudasse ou pusesse em dúvida a concepção tradicional do pecado mortal.
Se bem que sejam de apreciar todas as tentativas sinceras e prudentes de esclarecer o mistério psicológico e teológico do pecado, a Igreja tem no entanto o dever de recordar a todos os estudiosos desta matéria: a necessidade, por um lado, de serem fiéis à Palavra de Deus, que nos elucida também sobre o pecado; e, por outro, o risco que se corre de contribuir para atenuar ainda mais, no mundo contemporâneo, o sentido do pecado.
Perda do sentido do pecado
18. A partir do Evangelho lido na comunhão eclesial, a consciência cristã adquiriu, no decurso das gerações, uma fina sensibilidade e uma perspicaz percepção dos fermentos de morte que estão contidos no pecado; sensibilidade e capacidade de percepção, também para individuar tais fermentos nas mil formas assumidas pelo pecado, nos mil carizes com que ele se apresenta. É a isto que se costuma chamar o sentido do pecado.
Este sentido tem a sua raiz na consciência moral do homem e é como que o seu termómetro. Anda ligado ao sentido de Deus, uma vez que deriva da consciência da relação que o homem tem com o mesmo Deus, como seu Criador, Senhor e Pai. E assim como não se pode apagar completamente o sentido de Deus nem extinguir a consciência, também não se dissipa nunca inteiramente o sentido do pecado.
Entretanto, não raro no decurso da história, por períodos mais ou menos longos e sob o influxo de múltiplos factores, acontece ficar gravemente obscurecida a consciência moral em muitos homens. «Temos nós uma ideia justa da consciência?» – perguntava eu há dois anos num colóquio com os fiéis – «Não vive o homem contemporâneo sob a ameaça de um eclipse da consciência, de uma deformação da consciência e de um entorpecimento ou duma “anestesia” das consciências?». (97) Demasiados sinais indicam que no nosso tempo existe tal eclipse, tanto mais inquietante quanto esta consciência, definida pelo Concílio como «o núcleo mais secreto e o sacrário do homem», (98) anda «estreitamente ligada à liberdade do homem (…). Por isso, a consciência, com relevância principal, está na base da dignidade interior do homem e ao mesmo tempo, da sua relação com Deus». (99) É inevitável, portanto, que nesta situação fique obnubilado também o sentido do pecado, o qual está intimamente ligado à consciência moral, à procura da verdade e à vontade de fazer um uso responsável da liberdade. Conjuntamente com a consciência, fica também obscurecido o sentido de Deus, e então, perdido este decisivo ponto de referência interior, desaparece o sentido do pecado. Foi este o motivo por que o meu Predecessor Pio XII, com palavras que se tornaram quase proverbiais, pôde declarar um dia que «o pecado do século é a perda do sentido do pecado». (100)
Porquê este fenómeno no nosso tempo? Uma vista de olhos de algumas componentes da cultura contemporânea pode ajudar-nos a compreender a atenuação progressiva do sentido do pecado, exactamente por causa da crise da consciência e do sentido de Deus, acima realçada.
O «secularismo», que, pela sua própria natureza e definição, é um movimento de ideias e de costumes, o qual propugna um humanismo que abstrai de Deus totalmente, concentrado só no culto do empreender e do produzir e arrastado pela embriaguez do consumo e do prazer, sem preocupações com o perigo de «perder a própria alma», não pode deixar de minar o sentido do pecado. Reduzir-se-á este último, quando muito, àquilo que ofende o homem. Mas é precisamente aqui que se impõe a amarga experiência a que já aludia na minha primeira Encíclica; ou seja, que o homem pode construir um mundo sem Deus, mas esse mundo acabará por voltar-se contra o mesmo homem. (101) Na realidade, Deus é a origem e o fim supremo do homem e este leva consigo um gérmen divino. (102) Por isso, é a realidade de Deus, que desvenda e ilumina o mistério do homem. É inútil, pois, esperar que ganhe consistência um sentido do pecado, no que respeita ao homem e aos valores humanos, quando falta o sentido da ofensa cometida contra Deus, isto é, o verdadeiro sentido do pecado.
Desvanece-se este sentido do pecado na sociedade contemporânea também pelos equívocos em que se cai ao apreender certos resultados das ciências humanas. Com base nalgumas afirmações da psicologia, a preocupação de não tachar alguém como culpado nem pôr freio à liberdade leva a nunca reconhecer uma falta. Por indevida extrapolação dos critérios da ciência sociológica acaba-se – como já aludi – por descarregar sobre a sociedade todas as culpas, de que o indivíduo é declarado inocente. E uma certa antropologia cultural, por seu lado, à força de aumentar os condicionamentos e influxos ambientais e históricos, aliás inegáveis, que agem sobre o homem, limita-lhe tanto a responsabilidade que não lhe reconhece já a capacidade de fazer verdadeiros actos humanos e, por consequência, a possibilidade de pecar.
O sentido do pecado decai facilmente, ainda, sob a influência de uma ética que deriva dum certo relativismo historicista. Pode tratar-se da ética que relativiza a norma moral, negando o seu valor absoluto e incondicionado e negando, por consequência, que possam existir actos intrinsecamente ilícitos, independentemente das circunstâncias em que são realizados pelo sujeito. Trata-se de uma verdadeira «reviravolta e derrocada dos valores morais»; e «o problema não é tanto de ignorância da ética cristã», «mas sobretudo do sentido dos fundamentos e critérios das atitudes morais». (103) O efeito desta reviravolta ética é sempre também o de mitigar a tal ponto a noção de pecado, que se acaba quase por afirmar que o pecado existe, mas não se sabe quem o comete.
Esvai-se, por fim, o sentido do pecado quando – como pode acontecer no ensino aos jovens, nas comunicações de massa e na própria educação famíliar – esse sentido do pecado é erroneamente identificado com o sentimento morboso da culpa ou com a simples transgressão das normas e preceitos legais.
A perda do sentido do pecado, portanto, é uma forma ou um fruto da negação de Deus: não só da negação ateísta, mas também da negação secularista. Se o pecado é a interrupção da relação filial com Deus para levar a própria existência fora da obediência a ele devida, então pecar não é só negar Deus; pecar é também viver como se ele não existisse, bani-lo do próprio quotidiano. Um modelo de sociedade mutilado ou desequilibrado num ou noutro sentido, como é frequentemente veiculado pelos meios de comunicação, favorece bastante a progressiva perda do sentido do pecado. Em tal situação, o ofuscamento ou a debilitação do sentido do pecado resulta: seja da recusa de qualquer referência ao transcendente, em nome da aspiração à autonomia pessoal; seja da sujeição a modelos éticos impostos pelo consenso e costume generalizado, mesmo quando são condenados pela consciência individual; seja das dramáticas condições sócio-económicas, que oprimem grande parte da humanidade, causando a tendência para se verem erros e culpas apenas no âmbito do social; seja, por fim e sobretudo, do obscurecimento da ideia da paternidade de Deus e do seu domínio sobre a vida do homem.
Até mesmo no campo do pensamento e da vida eclesial, algumas tendências favorecem inevitavelmente o declínio do sentido do pecado. Alguns, por exemplo, tendem a substituir posições exageradas do passado por outros exageros; assim, da atitude de ver o pecado em toda a parte, passa-se a não o vislumbrar em lado nenhum; da demasiada acentuação do temor das penas eternas, à pregação dum amor de Deus, que excluiria toda e qualquer pena merecida pelo pecado; da severidade no esforço para corrigir as consciências erróneas, a um pretenso respeito pela consciência, até suprimir o dever de dizer a verdade. E por que não acrescentar que a confusão criada na consciência de muitos fiéis pelas divergências de opiniões e de ensinamentos na teologia, na pregação, na catequese e na direcção espiritual, acerca de questões graves e delicadas da moral cristã, acaba por fazer diminuir, quase até à sua extinção, o verdadeiro sentido do pecado? E não podem deixar-se em silêncio alguns defeitos na prática da Penitência sacramental: tal é a tendência a ofuscar o significado eclesial do pecado e da conversão, reduzindo-os a factos meramente individuais, ou vice-versa, a anular o valor pessoal do bem e do mal para considerar nestes exclusivamente a dimensão comunitária; tal é também o perigo, que nunca foi totalmente esconjurado, do ritualismo rotineiro, que tira ao Sacramento o seu significado pleno e a sua eficácia formativa.
Restabelecer o justo sentido do pecado é a primeira forma de combater a grave crise espiritual que impende sobre o homem do nosso tempo. Mas o sentido do pecado só se restabelecerá com uma chamada a atenção clara para os inderrogáveis princípios de razão e de fé, que a doutrina moral da Igreja sempre sustentou.
É lícito esperar que, sobretudo no mundo cristão eclesial, reaflore um salutar sentido do pecado. A isso levarão uma boa catequese, iluminada pela teologia bíblica da Aliança, a escuta atenta e o acolhimento confiante do Magistério da Igreja, que não cessa de proporcionar luz às consciências, e uma prática cada vez mais cuidada do Sacramento da Penitência.
 
CAPÍTULO SEGUNDO
«MYSTERIUM PIETATIS»
19. Para conhecer o pecado, era necessário fixarmos o olhar na sua natureza, tal como a revelação da economia da Salvação no-la deu a conhecer: ele é o mistério da iniquidade («mysterium iniquitatis»). Mas nesta economia o pecado não é protagonista nem, menos ainda, vencedor. Contrasta, antes, como antagonista, com um outro princípio operante, que – usando uma bela e sugestiva expressão de São Paulo – podemos chamar o mistério ou sacramento da piedade («mysterium», ou «sacramentum pietatis»). O pecado do homem seria vencedor e, por fim, destruidor, e o desígnio salvífico de Deus ficaria incompleto ou mesmo vencido, se este mistério da piedade não se tivesse inserido no dinamismo da história para vencer o pecado do homem.
Encontramos esta expressão numa das Cartas Pastorais de São Paulo, a primeira a Timóteo. Aparece aí, repentina, como por uma inspiração impetuosa! O Apóstolo, na verdade, consagrara em precedência longos parágrafos da sua mensagem ao discípulo predilecto, para explicar o significado da organização da comunidade (litúrgica e, ligada a esta, hierárquica); falara depois do papel dos chefes da comunidade, para se referir em seguida ao comportamento do próprio Timóteo na «Igreja do Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade». E depois, no final da passagem, evoca quase ex abrupto, mas com intuito profundo, aquilo que dá significado a tudo o que escrevera: «É grande, sem dúvida, o mistério da piedade…». (104)
Sem trair minimamente o sentido literal do texto, podemos alargar esta magnífica intuição teológica do Apóstolo a uma visão mais completa do papel que a verdade por ele anunciada tem na economia da Salvação. «É verdadeiramente grande – repitamos com o mesmo Apóstolo – o mistério da piedade», porque vence o pecado.
Mas o que é, na concepção paulina, esta «piedade»?
É o próprio Cristo
20. É profundamente significativo que, para apresentar este «mistério da piedade», São Paulo transcreva simplesmente, sem estabelecer uma ligação gramatical com o texto precedente, (105) três linhas de um Hino cristológico, que – segundo a opinião de autorizados estudiosos – era usado nas comunidades helénico-cristãs.
Com as palavras desse Hino, densas de conteúdo teológico e ricas de nobre beleza, esses cristãos do século primeiro professavam a sua fé no mistério de Cristo, pelo qual
Ele se manifestou na realidade da carne humana e foi pelo Espírito Santo constituído como o Justo, que se oferece pelos injustos;
Ele apereceu aos Anjos, tornado maior que eles, e foi pregado aos povos, como portador de salvação;
Ele foi acreditado no mundo, como enviado do Pai, e pelo mesmo Pai assumido no céu, como Senhor. (106)
O mistério ou sacramento da piedade, portanto, é o próprio mistério de Cristo, E, numa síntese bem densa, ele é o mistério da Encarnação e da Redenção, da plena Páscoa de Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria: mistério da sua paixão e morte, da sua ressurreição e glorificação. O que São Paulo, ao referir as frases do Hino, quis recordar foi que este mistério é o recôndito princípio vital que faz da Igreja a casa de Deus, a coluna e o fundamento da verdade. E na peugada do ensino paulino, nós podemos afirmar que este mesmo mistério da infinita piedade de Deus para connosco é capaz de penetrar até às raízes escondidas da nossa iniquidade, para suscitar na alma um movimento de conversão, para redimi-la, e fazê-la de vela em direcção à reconciliação.
Referindo-se sem dúvida a este mistério, também São João, com a sua linguagem característica, que é diversa da de São Paulo, pôde escrever que «aquele que nasceu de Deus, não peca»: o Filho de Deus salva-o e «o Maligno não o toca». (107) Nesta afirmação joanina há uma indicação de esperança, fundada sobre as promessas divinas: o cristão recebeu a garantia e as forças necessárias para não pecar. Não se trata, pois, de uma impecabilidade adquirida por virtude própria e, menos ainda, ínsita no homem, como pensavam os Gnósticos. É um resultado da acção de Deus. Para não pecar, o cristão dispõe do conhecimento de Deus, recorda São João nesta passagem. Mas, pouco antes, já tinha escrito: «Todo o que nasceu de Deus não comete pecado, porque habita nele uma semente divina». (108) Se por esta «semente de Deus» entendermos – como propõem alguns comentadores – Jesus, o Filho de Deus, então podemos dizer que para não pecar – ou para libertar-se do pecado – o cristão dispõe da presença em si do próprio Cristo e do mistério de Cristo, que é mistério de piedade.
 
O esforço do cristão
21. Mas há no mistério da piedade um outro aspecto: à piedade de Deus para com o cristão há-de corresponder a piedade do cristão para com Deus. Nesta segunda acepção, a piedade (eusébeia) significa exactamente o comportamento do cristão, que à piedade paterna de Deus corresponde com a sua piedade filial.

Sobre Prof. Felipe Aquino

O Prof. Felipe Aquino é doutor em Engenharia Mecânica pela UNESP e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos e atualmente é Professor de História da Igreja do “Instituto de Teologia Bento XVI” da Diocese de Lorena e da Canção Nova. Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, título concedido pelo Papa Bento XVI, em 06/02/2012. Foi casado durante 40 anos e é pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova.
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