Revista:
Pergunte e ResponderemosD. Estevão
Bettencourt, osb
Publicamos,
a seguir, o artigo do Rev. Agrício do Vale Ph. D, professor de História
Eclesiástica no Seminário Luterano Livre de Campo Mourão (PR). Seja consignada
nossa gratidão ao autor, que teve a gentileza de enviar sua colaboração a PR.***
Há um
silêncio que vai além da Palavra. Trata-se de um silêncio adorante, que toca as
fibras mais profundas da alma, quando dentro do espaço da oração e presos pela
Palavra, esta cria um verdadeiro diálogo com cada um de nós. Damo-nos conta de
que a Palavra nos educa suavemente para uma intimidade tão profunda com o
interlocutor que até dispensa as palavras.
Este
silêncio se torna uma ascese. Ascese é um termo grego que corresponde ao
conceito atual de exercício ou treinamento. Quando a pessoa percebe que seu
traje não está adequado para a situação que vai enfrentar, trata de mudar de
roupa. O silêncio (não se trata de uma simples ausência de vibração sonora)
também procura libertar-se das distrações, fantasias e preocupações que não
permitem ao coração colocar-se aos pés do Mestre com a mesma disponibilidade de
Maria, a irmã de Marta, da qual fala o Evangelho de Lucas. Narra Lucas que
Marta, embora bem intencionada em servir o Senhor, está perturbada por mil
preocupações que a impedem de ter atento o ouvido do coração a única coisa
necessária: a Palavra de Deus. É o que constitui o único exercício, a única
ascese cumprida por Maria. O elogio de Jesus neste encontro com Maria torna-se
agora uma exigência para todos: precisamos de nos “alienar” para
obter o silêncio que assegure um terreno apto a semeadura da Palavra de Deus.
Os antigos
cristãos chamavam a este exercício-ascese-treinamento “vida ativa”. A
“vida ativa” consiste sobretudo em sermos honestos e sinceros conosco
mesmos de modo que, protegendo-nos interiormente, tenhamos a coragem de impor
silêncio.
Há portanto
muitas maneiras de viver o silêncio. Há o silêncio de quem quer ouvir
atentamente, para perceber não só os sons do interlocutor, mas também os seus
infra e ultrassons, ou seja, aquele som explicito que percute em nosso ouvido,
aquele som implícito do não dito e que se percebe no coração. Este tipo de
silêncio não é somente silêncio dos rumores, mas na verdade um silêncio que
pode conviver com os rumores do tráfego urbano, por exemplo.
Trata-se de
um silêncio que se identifica com a atenção, a atenção ao outro, não só ao que
diz o outro, mas ao que o outro é em relação a mim. É, pois, um silêncio muito
delicado, que envolve as fibras mais ocultas de nossa alma. É um silêncio que
deveria assegurar a sintonia com a vibração do outro.
Só uma
corda bem distendida consegue vibrar ao mínimo sopro do vento. Este é o
silêncio que devemos conquistar antes de entrar naquele espaço no qual
acreditamos que Deus queira dirigir a sua Palavra diretamente a nós.
A Palavra
de Deus pode chegar através de um terremoto ou de um vento impetuoso, mas o
profeta Elias nos ensinou que ela vem de preferêcia junto com a suave brisa matinal
ou vespertina e que só quem está disponível, quem está no silêncio profundo da
mente e do coração, é que percebe a sua delicada vibração1.
“O
silêncio é sempre belo, e o homem que fala é menos belo do que o homem que
ouve”. Feodor Dostoiévski (1821-1881)
É esse o
ABC do ensinamento do deserto: a consciência do objetivo verdadeiro, não dos
meios espetaculares e acessórios destinados a atingi-lo. A consciência também
da humildade, do recolhimento e do silêncio necessários ao progresso interior
do asceta. Um exemplo preciso, extraído da Vida de Macário 0 Antigo, mostra
claramente como se praticava e se comunicava o ensinamento.
Um
discípulo veio um dia encontrar-se com Macário O Antigo.
“Macário,
que devo fazer para salvar minha alma?”. “Vai ao cemitério, insulta
os mortos” 0 discípulo vai ao cemitério e insulta os mortos e volta a
encontrar-se com Macário. “Que disseram os mortos?”, pergunta
Macário. “Nada”, responde o discípulo. “Volta ao cemitério e
elogia os mortos” o discípulo volta ao cemitério, elogia os mortos e
volta a ver Macário. “Que disseram os mortos?”, pergunta Macário.
“Nada”, responde o discípulo. “Sê como os mortos”, disse
Macário, “não julgues ninguém e aprende a calar-te”
Esse texto
ilustra admiravelmente a maneira como os anciãos, os “velhos na
ascese”, os gerontes, como eram chamados, comunicavam seu ensinamento. Em
poucas palavras e por analogias esclarecedoras. Pois os maiores desses
anacoretas não escreviam (sendo todos iletrados) e falavam pouco. Praticamente
nada deixaram atrás de si, e os azares das escavações ou da história não estão
sós na origem desse silêncio. Essa recusa de ensinar o que quer que seja pela
via tradicional dos escritos, esse conselho de ser semelhante “aos mortos
e as pedras” já indicam que aquilo que chegou até nós com os nomes de
Antão ou de Macário é talvez, em parte, apócrifo. A tarefa do santo é calar o
que descobriu, e ensiná-lo só pelo exemplo de sua vida. A derradeira e última
mensagem dos mestres do deserto é esse silêncio no qual, voluntariamente, eles
se fecharam.
“É no
silêncio que nos podemos libertar de nossa superficialidade” (Georges
Roux).
__________________________________
1 GUIDO I.
GARGANO, Do Nascer ao Pôr-do-Sol. São Paulo: Paulinas, 1995, p.21.